sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Conto - Ir é um caminho de duvidoso retorno

- Você vai contando as pedras brutas que enfeitam o caminho. Elas dividem o jardim e o suco formado de tantos andarem por ali. Eu não posso. Fico aqui, talvez até a sua volta.

- Como posso? Me faltam as pernas. Sinto que quero voltar mesmo antes de ir. E tenho medo de lá chegar e não saber retornar.

- Abra os olhos para a razão e siga. O percurso é longo e a água para acalmar a sede há de esquentar. Só lá saberá se deve fazer o caminho de volta. E lá, sem que perceba, encontrará o percurso quando a hora chegar.

- Mas quantas pedras devo contar? Temo perder a contagem. Já não basta o suor e terei lágrimas que me farão respirar com dor. Os pés serão calos, não sei quanto posso suportar.

- Vai, por favor. Vai sem receio. Não prolongue a partida. Poupe palavras, pois agora permaneço calado. Se tardar surgirão subidas que tornarão sua ida difícil.

- Queria não conseguir. Queria ouvir o pedido de ficar. Sei que a distância é fria e corro o risco de nunca te encontrar. Mas se me pede que vá eu sigo. Já não posso dizer se vou voltar.

- A distância não é muita. Agora digo que vou esperar. E se você não voltar saberei aliviado que lá plantou uma semente e dela nasceu uma flor. Sei dos seus dotes, então a cultivará.

- Nenhuma planta nascerá como a nossa. Adubei com amor e você reforçou com paixão. Se quer que eu vá penso que virei espinho. Me diga se é assim. Quero ouvir, então quem sabe eu caminhe sem nunca olhar para trás.

- Vai, não prolongue a tortura. Talvez eu é que seja o espinho. Sei que quer ir e fico. Não permita que a flor murche mesmo antes de chegar ao destino. Já não posso falar, quero te ver longe.

- Então tudo acabou? O que posso eu dizer agora? Vou, quero esquecer este caminho se lá chegar. Por favor, talvez não compense esperar.

E nada mais disseram. Ele ficou. Observando até conseguir desfazer o nó que se formou na garganta. Ela se foi. Arrastando os pés nos primeiros passos até contar as pedras que interessavam ser contadas. Depois os olhos secaram.

Há quem diga que ele esperou quanto pode. Um dia foi buscá-la, mas ela havia formado outro jardim.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Conto - A guerra da alma dá vitórias estranhas

É uma ponta de faca e não se vê o fio, se corta ou apenas fura, se desfalece ou cambaleia sem levar ao chão. Brilha e amedronta, tem na mira o coração. Mesmo que não o atinja fará sangrar. Então será pelo vazio da alma, em prantos, de uma hemorragia impossível de conter. 

Melhor seria a outra forma, imaginam eles. Tombar e não mais sentir, mesmo que haja outra vida pra lá do fim. Quem sabe a dor que não é da ferida exposta alivie. Talvez cicatrize e nem deixe marca que lembre o que deve ser jogado.

Se há resgate de algum momento fariam com pinça. Catariam um por um até encher o frasco do suficiente. Nada mais interessa, diriam. Nem haveria ponderação sobre isto ou aquilo, guerras, perguntas, cobranças e provocações da lista das coisas não resolvidas.

Pendências nestas questões são dívidas que nunca acabam. O saldo será sempre negativo mesmo que o valor pago tenha contentado na hora do acerto. Depois aparecem novos cálculos e mais cobranças. E volta o montante a incomodar.

Foi bem assim. Situações pequenas ficaram grandes. O beijo esquecido na despedida após o almoço. O nome suspeito na agenda. A ligação telefônica estranha. As desculpas pelos atrasos, a indiferença, a irritação e o tom da voz a denunciar impaciência.

Se é de pinça que cataram as frutas, estas são apenas cenas rápidas no filme que produziram juntos. Começaram com acenos que transformaram em possibilidades. Foram sins e concordâncias. E nem perceberam quando aquilo virou amor e deu fogo à paixão. Só isso.

Na parte que tem que ser filmada, os capítulos serão longos. Enquadrarão que um dia perceberam a paixão apagada. Depois assumiram o amor como um convívio. O respeito mútuo virou obrigação. A intolerância ganhou espaço. E o cotidiano registrou defeitos que nunca antes um tinha visto no outro.

E a ponta da faca alertou. Passava da hora. Foram por caminhos opostos a procura do que não sabiam o que era. A hemorragia passou, mas o coração ficou um buraco estranho de explicar o que é.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Crônica - Nunca questione minha londrinidade

Senti o calor de Londrina aqui de longe, da sacada de um prédio comercial na cidade vizinha onde trabalho. Pensei: nasci lá, sou de lá, não consigo arrebentar as amarras que me prendem a ela, minha cidade. Como é que alguém se dá ao direito de questionar a minha londrinidade só porque trabalho fora de Londrina?

O percurso diário que faço de manhã, de casa ao trabalho, é de cerca de doze quilômetros. Deixo Londrina entre oito e oito e meia da manhã e minutos depois estou na cidade vizinha. Lá por volta das dezoito horas faço o caminho de volta. Indo direto para casa ou passando em qualquer lugar continuo londrinense. À noite, da janela do apartamento consigo ver lá distante a cidade onde trabalho. Sou um observador londrinense.

Toda esta defesa é provocada por um conversa recente com um conhecido. “Mas você ficando fora de Londrina o dia todo está perdendo contato com a cidade. Vai perdendo sentimento, deixa de ter vida na cidade”.

É uma análise de almanaque de farmácia. Claro, não freqüento os bares onde a turma se reúne por opção própria. Há tempos não assisto a uma reunião da Câmara por causa do horário de trabalho. Também é verdade que não posso mais gastar o meu horário de almoço andando pelo Calçadão de Londrina.

Mas isso não dá o direito de alguém roubar a minha identidade londrinense. Se a cidade tem político ruim, continuo londrinense e como tal devo exercer o meu papel de cidadão, no ato do voto, para permitir que alguns dos eleitos sejam bons. E se há bons políticos na minha cidade, tirando-se estes de uma safra de muitos prejuízos, melhor ainda: continuo londrinense do mesmo jeito.

Estive oito meses em Brasília tentando sobreviver com o freelancer. A opção do local foi profissional. Fui por estes oito meses londrinense. Interessante: como lá fora eu percebi claramente a londrinidade que havia em mim.

Trabalhei três anos em Santa Catarina e cheguei a criar confusão por causa da minha londrinidade. Certa vez um colega catarinense provocou: “Então por que você está trabalhando aqui se só existe Londrina? Por que não volta para lá?”

Juro, cheguei até a cantar o Hino de Londrina para os colegas do jornal onde trabalhava, só para mostrar como a letra e a melodia eram bonitas. Bem, a letra eles entenderam, a melodia foi um fiasco...

Então, meu caro conhecido. Você veio lá da Bahia ainda menino. Sei que seu sonho é chegar à aposentadoria e retornar à Bahia. Ainda assim, em respeito a sua presença em Londrina por anos, estou devolvendo: você é um baiano bem londrinense. Isso é um baita elogio, seu safado!

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Conto - Acerto as letras que formam seu nome

É assim. Letra por letra, palavra e palavras, pontos, vírgulas, reticências e indagações. Não se incomode se esqueci a exclamação. É proposital e no singular, não quero que me leia eufórico e pluralizado.

Cuide-se, minha amiga. Aqui não abro parênteses para detalhar coisas. Sou direto e pretendo ser cristalino. As vezes que recorri ao estilo minimalista me dei com a cara. Você é profunda nos questionamentos e nem perdoa os minúsculos escritos por opção.

Não que eu me incomode com sua atitude. Até me interessa um conflito verborrágico por causa de forma, gênero e enfim, mensagens meticulosas que poderiam ser trocadas por vogais e consoantes tão fáceis de recorrer.

Pois está aqui o meu caderno de anotações. Aberto, não registra o seu nome em nenhum momento, nem que as páginas sejam viradas devagar. É melhor que corra o olho, não dou bandeira em qualquer lugar. Mas se for da sua vontade perca tempo, passe pelas folhas procurando escritas que me denunciem.

São rascunhos sim, bela amiga. Garranchos são armas, pode ser que as idéias amadureçam e exijam atualizações. Nunca, porém, voltar atrás. Nesse caso seriam rabiscos sobre períodos completos que fariam das frases eliminadas um desperdício de espaço.

Até aqui dei argumento para te irritar. E se eu te encontrar disposta é capaz de você achar defeito. No mínimo, vai me acusar de ganhar tempo usando o abecedário inteiro para pronunciar alguma coisa. E que coisa poderia ser dita com um vocabulário restrito?

Faço uso dos substantivos e nem sempre gasto em artigos definidos ou indefinidos. Isso tanto no feminino quanto no masculino.

Caso não tenha reparado, já recorri aos adjetivos quando me referi a você. Isso é privilégio e como sou tosco na forma de elogiar, acredite: se o faço é sincero.

Então, minha bela amiga. Aquele caderno de anotações que eu te mostrei não é o que eu tenho de você. Ali eu disponho de uma bengala para colocar tudo: endereços, telefones, tarefas diárias, pentelhações, cobranças, pagamentos e indefinições. Nada a esconder.

O que escondo está aqui, olha, no meu peito. E em cada linha tem o seu nome. Só não vai saber quando é que te escrevo em maiúsculo ou minúsculo. Jamais saberá também o que saiu garrancho e o que mereceu um rabisco. Veja, meu amor. Você ainda acha que me lê nos meus textos?  

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Velhos quintais das casas dos bairros de outrora

Os pelos brancos do vira-lata preto Bilú davam uma volta no pescoço e desciam igual babador nos peitos do cachorrinho sem raça e sem origem definida. Apareceu um dia e lá ficou, entre gatos e galinhas soltas, comendo sobras até conquistar o direito de uma refeição própria em prato feito de lata de marmelada.

Não incomodou e nem foi incomodado. Esperto, optou pelo silêncio até fazer amizade e ser considerado de casa. Nenhum latido. E até copiou os felinos na hora do cocô, cavando buraco no chão de terra e depois cobrindo a sujeira. Pulguento, consumiu muito inseticida em pó até ficar livre das coceiras. E nunca reclamou dos banhos de água fria depois de cada aplicação, embora molhasse tudo ao redor ao se sacudir para apressar a secagem.

O gato cinza era quase do mesmo tamanho. Tinha uma cara quadrada, era um macho respeitado. Nem carinho dos meninos aceitava, preferia o isolamento. Às vezes ao sol, outras à sombra, deitava o corpo preguiçoso e ficava com os olhos cerrados sem dar na cara que dormia ou apenas cochilava. Quando os abria na claridade, os cristalinos deixavam de ser um redondos. Viravam filetes na vertical.

Na família dos felinos era o homem da casa, sustentando três gatas companheiras, a amarela, a pretinha e a mesclada. Mas pulava a cerca de madrugada até outros quintais onde fêmeas no cio davam bandeira. Assim o cãozinho Bilú se incomodava e latia, aumentando o barulho dos animais: cachorro latindo, gato miando e galo com relógio adiantado cantando o dia que ainda estava longe.

Por falar nisso, quais das galinhas caipiras serão escolhidas para o Natal? Os antigos diziam que galinha não era assado de Ano Novo, porque cisca para trás e isso é atraso de vida. Mas ali naquele terreno nem na ceia natalina galinha entrava no forno. As crianças não permitiam. E os pais tinham que recorrer, de última hora, aos carroceiros que passavam na véspera com as aves prontas para o abate doméstico.

Como matar e sangrar a Duquesa se ela fazia parte do local? Que judiação abater Pancosa! Mãe, vamos comer peixe no Natal e deixar a Rajada no quintal? Era assim e chegava-se a um acordo. E a bicharada percebia isso, é certeza. Viravam membros da comunidade familiar e agiam como tal: solidários e partícipes principalmente na hora de repartir o pão.

Nem tanto nas demais ocasiões, pois o quintal era grande, com cerca enfeitada de folha de maracujá doce, um pé de abacate, três mangueiras rosa e um pé de limão. Após o almoço cada bicho escolhia o seu canto e a paz reinava sob sol aliviado com plantas. Era uma vez, uma casa de madeira numa rua sem asfalto...


sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Conto - Jogo de placar carimbado

A bola é minha, mando eu no jogo. Tira lá aquelas pedras e bota um tijolão. Marca bem com ele o travessão direito... Conta os passos, é pé por pé, sai com o calcanhar encostado no latão e vai no rumo da moita de capim limão. Assim, conta direito pra não dar reclamação.

Monta lá, ô folgado... Igual este aqui, olha o tamanho certo, usa os restos daquela construção, cata lá no canto pedra, tijolinho, pedaço de pau e faz o travessão.

E anda logo, deixa de marcação. A bola é minha, mando eu nos times... Vem cá, ô. Hoje eu não quero o gol. Vou na frente, chuto de direita e se precisar corro pra lá, acerto de esquerda, tanto faz, jogo um bolão. Manda um terrão ali atrás, tapa o buraco, anda com isso ligeiro, acerta o campo, pô... Senão dá azaração.

Corre aqui, ô... Entra pra descer pela esquerda, me passa a bola, não dá uma de artilheiro, a bola é minha, eu chuto e marco, mando eu no ataque e sem zagueiro é que não fico, volto e defendo, avanço e vou pros lados, faço o campo inteiro e nem faço questão.

Espera o segundo tempo, pô... A bola é minha, mando eu no banco. Entra depois no lugar do outro, agora é ele, pra descer pelo meio, mandar pra esquerda, receber de volta e lançar na altura do meu peito que eu marco, bola minha eu conheço, vai direto no canto do travessão.

Tira a camisa ai, ô... A bola é minha, time meu joga vestido, o outro lado entra só de calção. Guarda a chuteira, pô... Aqui ninguém vai dar bicudão. Entra de tênis, evita choramingão. Escora de sola, envia de lado, eu mando de chutão.

Defende ai, pô... Cadê meu zagueirão? A bola é minha, mando eu na substituição. Bota a camisa, entra no lugar do Chicão, senão perdendo não vai ter continuação. A bola é minha, mando eu, ninguém vai aprontar chiação.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Por trás das metáforas e das entrelinhas

“Tenho nos olhos quimeras / com brilho de trinta velas / do sexo pulam sementes / explodindo locomotivas / tenho os intestinos roucos / num rosário de lombrigas / os meus músculos são poucos / pra essa rede de intrigas / meus gritos afro-latinos / implodem, rasgam, esganam / e nos meus dedos dormidos / a lua das unhas ganem...”

O trecho da música E Daí?, de Milton Nascimento e Ruy Guerra, é uma espécie de perfeição quando se fala em metáforas e entrelinhas. Recursos muito usados na poesia e na música a partir de 1964, para driblar a censura imposta pelo Regime Militar, a figura de estilo, mais apropriada à metáfora, mobilizou brasileiros por vários anos nos shows organizados pelos movimentos de oposição.

Mesmo fora desse círculo algumas canções chegaram a ser executadas em programações das emissoras de rádio e ganharam popularidade. Cálice, de Chico Buarque, é um exemplo:

“Como beber dessa bebida amarga / tragar a dor, engolir a labuta / mesmo calada a boca, resta o peito / silêncio na cidade não se escuta / de que me vale ser filho da santa / melhor seria ser filho da outra / outra realidade menos morta / tanta mentira, tanta força bruta...”

E relacionam-se mais. Taiguara, que cantava o amor, é um dos artistas brasileiros que mesmo com as metáforas e as entrelinhas sofreu muito com a ditadura militar ao se colocar contra as arbitrariedades da época. Diferente de Geraldo Vandré, que quando compunha uma música de protesto era direto. Pra não dizer que não falei das flores foi uma mensagem esfregada na cara do sistema. Geraldo Vandré pagou caro por essa coragem. Enfrentou tortura e exílio político. Retornou ao Brasil após a abertura e não quis mais saber de canções.

Se no Brasil a censura ditava o estilo, em outras partes as metáforas também tinham prestígio. Joan Baez, conhecida como a voz de soprano que encantou os grandes shows da época do movimento pacifista norte-americano, lançou em 1975 a música Diamonds And Rust, que havia sido composta no ano anterior.

Quase quatro décadas já se passaram, mas ainda há divergências em relação à letra pelo menos em um ponto: Joan Baez escreveu Diamantes e ferrugem pensando em seu ex-marido, David Harris, ou em seu novo amor, Bob Dylan?

No trecho abaixo a tradução é baseada na versão gravada por Judas Priest, que fez pequenas alterações na letra. Mas a essência é a mesma:

“...agora você está me dizendo que você não está com saudades / então me dê outra palavra para isso / você era melhor com palavras / e em deixar as coisas vagas / porque eu preciso daquelas coisas vagas de novo / tudo isso volta claramente, sim, eu te amo / e se você está me oferecendo diamantes e ferrugem, eu já paguei...”

 Claro, a metáfora de Diamonds And Rust não foi para driblar a censura política. Foi para acomodar os conflitos de um coração. Com esta música Joan Baez abre alguns de seus mais importantes shows, inclusive cantando versão em japonês.

 Agora, cá pra nós, as nossas metáforas são bem mais estilosas, concordam?

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O meu casaco tem zíper no bolso e muito amor

Luiza costurava a vida numa máquina de pedalar. Preta, a velha Vigorelli era a sua ferramenta de trabalho. Rústica, a danada não deixava a costureira falhar na entrega da sua produção. Em linha reta a bichinha ajuntava os panos sem entortar, parte por parte, até ficar um vestido. E só faltava o acabamento a mão, que além da agulha, da tesoura e da linha dependia do capricho e dos óculos de enxergar perto.

A fita métrica tinha lugar certo. Como um xale, envolvia o pescoço com as pontas jogadas à frente. Era um modo de manter o indispensável sempre perto. Conferir a medida era uma prática. De uma casa a outra, para que os botões ficassem na mesma distância. Ou de todas as caídas da saia, para garantir comprimento igual em toda a circunferência.

O tempo ditava a moda e Luiza mantinha uma meia dúzia de figurinos, com revistas raramente atualizadas. Algumas freguesas recorriam a elas para fazer seus modelos. Havia improvisos: a parte de cima de um desenho, a parte de baixo de outro. Atrás de um jeito, a frente de outro.

Desenhado numa folha de caderno, o modelo ganhava as medidas: quadris, busto, altura das mangas, cintura, comprimento. Haveria depois uma prova, quando as freguesas pediriam para ajustar mais aqui, dar uma folga ali, franzir menos, trocar o zíper por botão, fechar mais o decote.

Sim, algumas faziam a prova acompanhadas dos maridos e até para definir o local dos joelhos onde a barra deveria ser dobrada dependiam de consentimento. Se ele achasse que não, dobrava-se mais embaixo marcando com agulhas de cabeça.

E ela, numa distração do companheiro, sinalizava com as mãos que a costureira devia subir dois dedos, três dedos, um dedo ou algum tiquinho. Só para o vestido pronto ter sabor de vitória, além do prazer de uma peça nova a ser usada na próxima festa que houvesse.

Luiza casou costureira, criou os filhos costureira, viu netos nascer costureira e morreu costureira. Eu guardo um casaco de veludo que não me cabe. Guardo porque foi ela, minha mãe, quem costurou.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Trecho biográfico - Pulmões pedem e ganham ar

(capítulo do livro Sou Cidadã, que conta a história da líder comunitária Rosalina Batista)

            O coração aumenta e diminui nas batidas. A respiração pede esforço. A mulher caminha desnorteada pela rua da região central de Londrina. Por instinto, vai pelo percurso que normalmente a leva para casa. A pé, tenta trocar os passos com rapidez para encurtar a distância. Mas anda devagar, como se não quisesse ir.

            Há menos de cinco minutos Rosalina fora demitida do emprego. Haveria conformismo e aceitação se o motivo fosse profissional. Falha na limpeza da casa, falta de assiduidade e indisciplina, por exemplo. Assim ela havia aprendido. A ex-patroa, porém foi clara: Rosalina perdeu o emprego por morar na Jardim Franciscato, bairro da região sul da cidade.

            E agora, o que dizer para a família em casa? Informar que foi demitida por ser de um lugar pobre soaria como uma desculpa. Não são os pobres que trabalham para os ricos? Ou são os ricos que fazem a faxina, lavam e passam a roupa e preparam as refeições dos pobres? Onde Rosalina teria que morar para merecer uma vaga no mercado de trabalho?

            Não havia revolta contra a pessoa que a demitira. O que Rosalina sentia era uma dor muito mais intensa do que aquela provocada por um ferimento na pele, pois cutucava diretamente a alma. Era angústia, desespero, aflição, medo, raiva do indefinível e um vazio que mexia o raciocínio.

            Rosalina seguiu andando até o Bosque central de Londrina, onde funcionava o terminal de transporte coletivo. Fez a descida da Rua Fernando de Noronha, atravessou as duas pistas da avenida JK e enfrentou a subida de quatro quarteirões até atingir a avenida Higienópolis. Dali, foram mais quatro quarteirões descendo até o ponto de ônibus.

            Nesse último trecho recuperou o raciocínio e começou a analisar os acontecimentos. De tudo que passou pela cabeça reservou uma posição firme: ela, Rosalina, teria que fazer alguma coisa para mudar a sua situação e a de sua família.

            Missão difícil. Analisou que de nada adiantaria ela e os seus estarem bem, enquanto amigos, conhecidos e vizinhos, parceiros na luta para colocar mais um tijolo na construção da moradia, aumentar o número de pratos na mesa durante as refeições, conseguir uma vaga na escola e brigar por um atendimento melhor no posto de saúde, continuariam a enfrentar dificuldades.

            Então Rosalina pensou por todos. Os passos a serem dados teriam que ser mais abertos e ousados. O caminho a ser percorrido seria mais longo, com maior quantidade de barreiras.

            Estava lançada a idéia e traçado o objetivo. Nasceu naquele momento uma pessoa disposta a romper os torrões de terra e pronta para conversar com os poderosos no mesmo tom de voz. Surgiu uma líder comunitária, Rosalina da Cruz Teixeira Batista.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Crônica - Um jeito de enxergar o que é belo

Uma é linda. A outra é mais linda. Isso confunde, porque às vezes a que é linda fica mais linda e a que é mais linda fica muito mais linda. Isso se sucede com freqüência e velocidade, coisa de fechar e abrir os olhos.

Fechar quando uma é linda. Abrir quando a outra é mais linda. Fechar no instante em que a linda está mais linda. Abrir quando a que é mais linda está muito mais linda. Fechar. Manter os olhos cerrados para não ter dúvidas após criar a imagem de ambas, que são lindas. Só então abrir.

É isso, chegou-se a um achado. Não é a visão que dá tanta beleza as duas. Certo que uma é linda e a outra é mais linda. E na sucessão do que se enxerga, como já dito e se repete, a linda fica mais linda, a mais linda está muito mais linda.

Isso intriga e assusta, pode parecer loucura. Mas a sã consciência às vezes esconde o belo, algum poeta já declamou assim. Ou, na hipótese mais direta, sanidade nem sempre tem a ver com sensibilidade.

E os olhos vão mostrar apenas objetos, um mais lindo que o outro. Esse jeito de ver é claro na superfície para todos os gêneros, estilos, conteúdos e coisas afins: mulher, carro, árvore, passarinho, leão, rinoceronte, prédio e objetos do desejo. Então sim, é um jeito de olhar insano, de tão direto que é. Vê-se o que está diante e faz-se a declaração quase insossa: “Que coisa linda!”

É muito superficial. Não encralaca. Passa rápido que nem andar: um passo a frente, o outro atrás; outro passo a frente, de nova aquele atrás. Como se fosse inveja de uma perna da outra.

Diferente da linda que é linda, enquanto a outra é mais linda. Isso é enxergar. Por isso a que é linda fica mais linda e a que é mais linda torna-se muito mais linda, numa troca que roda, vai e volta, até perturba.

Sim, incomoda muito. A ponto de se ver mais do que é visível. E se mostra nesta busca do olhar o coração das duas, uma que é linda, outra que é mais linda e assim se vai, numa sucessão gostosa que leva até a única conclusão verdadeira: ambas são muito lindas.

Este ensaio louco é um tributo a vocês duas, irmãs. A que já fuça o meu blog faz um tempo e a que buscou comigo os endereços agora mesmo. Recebam esta minha gratidão. Aqui eu coloquei muito carinho.

Opinião - A paz livre de certas manipulações



Vi pessoas indo e vindo. Não formavam uma multidão expressiva, mas compunham um grupo consciente. Mulheres, homens, crianças, jovens, idosos...

Pessoas a pé, gente de bicicleta, turmas em cadeiras de roda, deficientes visuais, praticantes de canoagem e muito mais gente. Correndo, andando, passeando e compondo mais gerúndios, que são permitidos quando as ações que eles descrevem são promissoras.

Este grupo consciente de londrinenses se encontrou às 10 horas do domingo, dia 18 de setembro de 2011, nas margens do Lago Igapó 2. Participaram do Abraço da Paz ao cartão de visita da cidade, atividade que fez parte da 11ª Semana Municipal da Paz de Londrina.

O mais importante disso tudo: eventos costumam ser analisados com desconfiança pelas pessoas. Quem organiza? Há interesse político ou partidário? As autoridades vão discursar promessas? Alguém da coordenação quer ser candidato a alguma coisa?

São perguntas frequentes, tantas são as decepções de nós, povo, em acontecimentos do gênero. Mas neste, que teve a frente o Movimento Pela Paz e Não-Violência (Londrina Pazeando), se houve algum tipo de interesse por traz dos bastidores, tenham certeza senhores: as cerca de 2.400 pessoas participantes foram com o propósito de abraçar uma grande causa e, por isso, aquele ato em torno do Igapó foi mais forte do que eventuais tentativas individuais.

E vejam que no meio da multidão se viu o prefeito, secretários municipais, pretensos candidatos a vereadores. A causa, ainda assim, foi suprema. Assim é o londrinense! Felizmente!

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Conto - Nem há sol no destempero da poesia

Eram raios deitados sobre arranjos da cama. Preguiçosos... caídos nos lençóis esquentavam o frio. E no calor, sejam bem-vindos!

Havia rima para todo tempo. Sem métricas e terminações parecidas, como lapidar o tosco era igual limpar o infinito: o pincel carregava as nuvens de azul e o céu voltava.

Até a chuva era motivo. De correr, despentear e a linha de chegada ser um abraço. Ou ir, devagar, contando os pingos contornar as curvas do rosto.

As flores nunca envelheciam. Qualquer pétala era um recado. Todas as folhas respondiam. As plantas, fiéis, guardavam segredos.

Pedras catadas ao acaso contavam histórias. O garfo com o dente afastado tinha enredo. Se a cadeira dançava havia uma causa. Toda cortina fechada escondia intimidades.

E os locais da casa... o canto escuro da sala, a esquina cega da cozinha, o lado macio do sofá, o chão do corredor.

Nada parecido com o concretismo desta hora. Seco e acusador, está na agenda em letras nervosas. Esbraveja e cobra, denuncia... acaba com o sol na cama, devolve o frio, tira a cor das nuvens e rouba o céu.

Nenhuma história, os enredos somem. As cortinas estão abertas. Nos cantos da casa nem o silêncio quebra a voz que tortura: “Você me ganhou e a minha vida ficou de cabeça pra baixo... e nunca se importou...”

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Expectativas e histórias escondidas numa data

Estamos no terceiro milênio, século vinte e um, década de dois mil e dez, ano de dois mil e onze. O dia é quinze de setembro e por aqui fez sol forte. Há oitenta e três anos Alexander Fleming anunciou a descoberta da penicilina. Há sessenta e sete anos, a Força Expedicionária Brasileira partiu para a guerra na Itália. Há quarenta e seis anos surgiu o novo Código Florestal Brasileiro.

Nasceu num quinze de setembro do ano de um mil, novecentos e trinta e seis aquele que tempos depois seria o jogador Quarentinha. Em um mil, novecentos e sessenta e seis nasceu a atriz brasileira Fernanda Torres. É a mesma data de nascimento da cantora Rose Nascimento.

E tem mais e muitos: nasceu Bocage, Marquês de Sapucaí, Agatha Christie, Lya Luft, um monte de ator, uma penca de futebolistas, uma touceira de políticos, reis, rainhas e escravos aos milhares.

Morreu Lírio Mário da Costa, em um mil, novecentos e noventa e cinco. E quem é este? Destaque, o humorista Costinha. Valia mil vezes mais do que as tentativas de humoristas de agora, versões canabravas.

Ah, é aniversário da Lua, de acordo com a mitologia chinesa. No Japão o quinze de setembro é o dia do idoso. Por aqui, vejamos: Miracatu comemora o Dia da Padroeira, Nossa Senhores das Dores. Açucena, em Minas Gerais, comemora o Dia de Nossa Senhora da Piedade, festa que também toma conta de Barbacena.

A lista é extensa: Boa Esperança em Minas, Cruz das Almas na Bahia e vai por cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Mato Grosso, Paraíba e Paraná. Onde?  Jaguariaíva e Ponta Grossa. Tem feriado por ai vizinhos?

Aqui passa de cinco e meia da tarde. O aparelho de ar condicionado enche com seu barulho modorrento. É um zuado sem altos nem baixos. Parece um chevrolete engatado na primeira indo na mesma velocidade em quase subida, devagar...

O site de datas comemorativas, de onde tudo isso foi copiado descaradamente, avisa que faltam cento e sete dias para o fim do ano. Vejamos: a Lua chinesa até que assanha. O que uma Lua faz com um homem...

A penicilina nem se discute. Fernanda Torres é uma glória. Quarentinha, no futebol, tem história de resultados: campeão pelo Botafogo por três vezes, Torneio Rio-São Paulo por duas, Torneio de Paris e muito mais. O nome do cara: Waldir Cardoso Lebrêgo, lá de Belém do Pará.

O que mais nesta tarefa de casa? Código Florestal, será que cumprem com ele? Marina Silva, batalhadora que é, o diga. Bocage? Quem não leu pelo menos trechos mesmo que por curiosidade? Este é o parágrafo das perguntas, recurso de quem não está em condições de responder. Este foi o texto com os números escritos por extenso.

Mais indagações e estas são finais Quantos nasceram hoje? Quantos se foram? Quantos encontraram a felicidade neste quinze de setembro? Quantos estão chorando? Faltam cento e sete dias para terminar o ano. Quantos esperam a primavera com um bocado de ansiedade? Talvez no próximo quinze de setembro haja mais respostas.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Conto - Dias de chuva e de imaginação

Descia chuva lá adiante, ele via o sinal muito além das casinhas que a visão permitia. Longe, depois do amontoado de árvores, quase onde o céu encontrava com o chão depois de fazer a meia esfera da bola que é a terra.

Se choveria perto ele não sabia. Mas se chovesse a pipa não subiria, isso era certeza. Teria que arranjar outra ocupação. E se chovesse forte a imperfeição da rua sem asfalto formaria lagos que teriam peixes imaginários, monstros aquáticos, barcos de papel e pescaria.

A chuva, então, não seria de todo mal, embora formasse barro no quintal e provocasse broncas da mãe a cada par de chinelos enlameados. Valeria a pena a repreensão materna, mesmo que o encardido da roupa demorasse dias para deixar de ser motivo de reclamação.

Depois chegariam os insertos anunciando a estiagem. Ocupariam os ares no lugar das pipas de linhas sujas enroladas em latas. E se brincaria de guerra, com aviões bombardeando vilarejos.

Viriam também as minhocas e estas seriam transformadas em enormes gibóias combatidas por valentes lutadores. Aos poucos os pássaros voltariam a cantar e as cigarras a ensurdecer.

E o sol, no seu retorno lento, levantaria fumaça ao bater na terra úmida. E ele pensaria na pólvora queimada do brincar de guerra antes, durante e depois da rápida precipitação que mexeu com a sua nostalgia. Foi questão de minutos olhando o lá fora atrás do vidro da janela de um apartamento muito distante do chão, lá embaixo, que tinha cara de ter vida.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Conto - A madrugada denuncia movimentos

Um tranco forte e barulhento da porta no batente acordou metade do prédio. Às duas de uma madrugada estranhamente quieta, Ellen ainda tentou evitar mais alarde. Mas o molho de chaves tilintou ao ser girado, os livros caíram dos braços, a tosse atacou e as sandálias de salto alto denunciaram o caminhar apressado até o elevador.

Eram três livros, mas o único a cair com a capa para cima foi Gabriel Garcia Márquez e o seu O Veneno da Madrugada. Estranho! Ellen fazia uma releitura do romance e na medida em que as páginas eram devoradas, acendia um pressentimento. “De que? Até este ponto não devo nada. Ou devo?”

Rodadas de cerveja e chope com os amigos raramente causam remorsos, mesmo quando alguns limites são esticados. E o trabalho da universidade, tem a ver? Que nada, o que Ellen fez foi reproduzir sem alterações de pontos e vírgulas alguns trechos de autores menos conhecidos. Seguiu recomendações de colegas: “Não copie de autores conhecidos que estes até os professores conhecem...”

Ainda sem explicação para a sensação que a dominava, Ellen certa vez se viu diante da janela da sala espiando os prédios em frente. Não procurava um flagrante de alguém nu ou em situação constrangedora. O que Ellen buscava eram mensagens em faixas ou em pinturas denunciando seus erros. Sim, havia a influência literária. Gabriel Garcia Marquéz a punia pela releitura de sua obra. “Mas sem motivo, autor querido. O que é que eu fiz?”

Estava no livro, perdido em trecho de algum capítulo. A pressa, no entanto, fez Ellen implorar por mais velocidade no elevador, que desceu até a garagem de onde o carro saiu brigando com a demora do portão eletrônico. Os quinze minutos até o seu destino pareceram horas.

E lá, outra vez a aflição: portão eletrônico lento e elevador quase parando. Outra vez um molho de chaves e a porta fechada de leve, sem qualquer som denunciador. Nem ao banho ela foi. Deitou-se ao lado do marido que roncava com a boca aberta e deixava escorrer uma baba nojenta. Ouviu ele rosnar: “Só chegou agora? Bem tarde heim? Por onde andou?”

Respondeu que estava trabalhando na monografia com as colegas. Mas havia chegado em casa faz tempinho. “Estava na sala organizando o material para amanhã”. O marido ainda se deu ao trabalho de dar um beijo na face de Ellen, cheirar as partes como se estivesse conferindo propriedade, virar de costas e retornar ao ronco.

Ellen também adormeceu minutos depois. Só esqueceu de esconder na bolsa o molho de chaves do outro apartamento, que ficou sobre a mesinha da cabeceira. E se deu o que Ellen pressentia. Na manhã seguinte o marido perguntou, furioso, de quem eram as chaves. “Quem é esse Aroldo gravado na plaqueta do chaveiro?”

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Crônica - As palavras iludem se o tom abranda

Então você disse um oi e eu entendi proximidade. Diferente do bom dia costumeiro e formal. Ou do boa tarde enfadonho, quase obrigação. Quisera se houvesse ainda uma boa noite. Ainda que longe da informalidade significaria que em pelo menos três períodos de um ciclo de dia, noite e madrugada eu teria tido a oportunidade de te ouvir.

Sim, só ouvir. Não pretendo mais que isso. Uso a sua voz para abrir a porta da alma, esta que emperra sob o efeito de uma ferrugem que me faz quieto e acomodado diante das coisas que nos rodeiam.

“Vê se você se cuida, tá bom?” É o que diz quando nos despedimos cedo, tarde ou noite. Por que você me diria isso? Seria um conselho para equilibrar minhas extravagâncias? Com o que? Até este ponto exagero apenas na necessidade de te ouvir. Por isso cobro mais. Quero ouvir você dizendo: “Almoce certinho. Não coma bobagens...”

E penso que nem o almoço saciaria a fome que tenho de ouvir e interpretar o tom que você dá as palavras. E se eu fosse por um caminho sem sombras e ouvisse você dizer: “Vá pela sombra...”

Foge-me, na sem sensatez, a capacidade de qualquer interpretação. Mas confesso: soaria tão comum... Talvez isso me leve a ser insensato, o que daria na conclusão que você me quer bem e pede-me para ter cuidado com as coisas que dizem respeito a nós dois.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O Fisco e o Grande Irmão de George Orwell

O Fisco é, sem contestação, o grande irmão que controla com eficiência inquestionável a vida financeira de todo o cidadão brasileiro. Não corra, não fuja, nas adie nada do que está relacionado a ele. Com ou sem CPF você está no enquadramento da câmera que filma, segundo a segundo, tudo o que está entrando no seu bolso.

Quando publicou em 8 de junho de 1949 o romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (em inglês, Nineteen Eighty-Four), o escritor Eric Arthur Blair, conhecido como George Orwell, provavelmente não imaginara que sua história se desse de forma tão perfeita com o do grande irmão brasileiro.

Eliminemos as tontices, para que não haja dúvidas: nada a ver com o BBB de uma grande emissora de tevê deste país, cuja espia é somente da mostração e da sacanagem. É mesmo do Fisco que estamos falando.

Claro, sonega-se e muito ainda. Mas só foge do foco da câmera os que sabem escapar técnica e politicamente das luzes do spot de iluminação. O trabalhador assalariado, por exemplo, jamais deixará de ser enquadrado e sempre aparecerá nas imagens. Idem para o empresários consciente de suas obrigações. Nada, absolutamente zero para parte dos políticos que usam laranjas para esconder suas riquezas.

Leio na edição desta sexta-feira da Folha de Londrina, capa do caderno de Economia: “Impostômetro se aproxima de R$ 1 trilhão”. A matéria, assinada pelo repórter Victor Lopes, diz que no próximo dia 13 de setembro, por volta das 11 horas, os brasileiros já terão arrecadado aos cofres públicos em tributos federais, estaduais e municipais R$ 1 trilhão. E que esse valor será atingido 35 dias antes do que no ano passado.

Ao desavisados (e há muitos), cabe reforçar que o Impostômetro é uma confiável ferramenta desenvolvida pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário e mantida pela Associação Comercial de São Paulo. Eu o acompanho pela internet, faz parte das páginas que visito com freqüência. Porque acredito.

Quanto ao grande irmão, este Fisco que nos fisga, é eficiente no seu mecanismo de controle da sua renda. Mas permite que fraudadores roubem o seu CPF e até financiem carros, com a conivência de financeiras suspeitas, para enriquecer quadrilhas que jamais serão enquadradas pelas filmadoras.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Conto - É de pisar e esfregar com força no chão

O cotidiano profissional de Rita era de estresse. Chegar ao local de trabalho e ter que puxar a cadeira, que estava encostada à mesa, incomodava. Será que ninguém, sabendo que ela chegava naquele horário, podia fazer o favor de deixar tudo no jeito? Poxa! Que falta de coleguismo...

Já sentada, mais coisas para fazer. Ufa! Abrir a gaveta para pegar a caneta, ligar o computador, beber água da garrafinha descartável de refrigerante, mudar o lugar da agenda de telefones da esquerda para a direita da escrivaninha e pensar. Que trabalheira!

Mas pensar em que? Como de hábito, em quem jogar a culpa por alguma coisa que ela considerava errado na sua rotina: “Deixei o apontador aqui ontem. Quem mudou de lugar?” Assim por diante. Mudanças fundamentais que se ocorressem, por exemplo, num departamento de estado ou no Ministério do Exército de algum governo, resultariam na deflagração da guerra.

“Fico irritada quando vocês mudam a posição que eu deixo a cortina. Tem que ficar assim...” Passada a primeira crise, Rita assumia no seu canto do escritório um silêncio até irritante. Há quem diga que era a fase do reajuste espontâneo, quando ela percebia ter sido extremamente inconveniente com os colegas. Alguns deles contestariam em voz alta: “Que inconveniente que nada. Chata mesmo. Babaca...”

Após consultar os e-mails – e nem sempre Rita reclamava da demora da internet – ela fazia ligações importante. Telefonemas que se deixassem de ser feitos causariam grandes prejuízos, devido aos impactos no bom andamento do trabalho.

E uma lista extensa se abria: tia, amiga, colega, amiga, parente, amiga e vai aquela conversa mole: novela, ocorrência policial, idade da cachorra, bexiga presa, flatulência incontinente, corte de cabelo, pintura das unhas e mais e mais. Caramba! E ainda falta uma hora e meia para o almoço...

“Ninguém vai acertar aquele relógio da parede?” A resposta era o silêncio. Acabou copinho de café. Ninguém vai buscar?” Mais silêncio. “Alguém pegou minha caneta? Se pegou devolve...”

E a hora não passa mesmo, inclusive para os que estão atarefados tamanha é a aporrinhação de Rita. “Falando ela é um saco. Ficando quieta é um saco. O que a gente faz?” O comentário e a pergunta, claro, foram feitos aos sussurros.

E a turma torcia para a hora do almoço ser abreviada. Ninguém se continha quando ela pegava a bolsa, passava pela fresta da porta e ia embora. E o ambiente ganhava clima de um bom local de trabalho. Ah, ela passava pela fresta da porta, mas a bolsa não. Mala e chata, quer ter classificação melhor?

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Longe do Ipiranga um grito se fez mais forte


Igrejas, sindicatos e entidades levaram para a Avenida Leste-Oeste um grito muito mais forte do que aquele de 189 anos atrás, à margem do Ipiranga. O Grito dos Excluídos marchou com dezenas de participantes no desfile da Independência em Londrina.

Ele levou cores e ofereceu alegria às crianças


Figura típica das festas populares como o desfile de 7 de setembro, o vendedor de brinquedos aguçou o desejo das crianças de levarem para casa objetos tão simples e belos. Para ele, o vendedor, foi um momento de inclusão, embora precário. Com certeza o vendedor foi, por instantes, o centro das atenções dos pequenos.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Conto - Caminho de todos os dias

É um trecho curto de cá até lá. Dá vinte minutos, pouco mais pouco menos, no passo normal de andar. Nem sai suor. Faz quase uma reta e só ali, adiante da calçada com tronco de árvore cortada rente ao piso, tem subida. Mas nem tanto. Muito antes de chegar ao topo as batatas das pernas amolecem. Coisa assim, de ir sem sentir, quase percebendo o quanto já se caminhou. Vence o percurso numa esticada. Saiu, chegou.

O sol se agüenta. Bate forte nas costas, até queima. Mas pra lá tem sombra. Pior quando vem de lá pra cá, pois pega no olho, então perturba. Já fiz percurso de volta nessa altura do dito cujo e a claridade até cega. Então empapa a camisa, escorre água dos fios do cabelo e desce nas costas. Mas chega, do mesmo jeito, se sair no tranco e manter coragem.

Teve também chuva na ida e na volta. No meio nem tem onde esconder se a bichona engrossa. Tem que seguir e olha que na correria o pano da roupa pesa. Se as gotas pegam de frente até dói na pele da cara. Arde e nem deixa respirar. Assim se vai feito besta, de olhos quase fechados e boca aberta, porque é por ali que se toma ar.

Na escuridão isso aqui dá medo. Já corri de carro lotado que passou por mim e quase encostou bem ali, perto do cercado azul, pouco atrás da moita de espinheira santa. Passava das dez e dei no pé por precaução, nem vi quando cheguei ao portão de madeira lá daquela casa de muro laranja. Fiz trajeto em dez minutos e nem cansei.

Eu ando muito por aqui. Ida e volta, volta e ida e assim gasto solado. Conheço cada buraco da calçada, vou desviando sem olhar pro chão. Às vezes entendia e demora mais. Nunca chega no destino, até dá fadiga. Outras vezes é um pulo. Faço o trecho sem perceber. Mas sempre chego e inteiro. Nunca fiquei no caminho.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Conto - As coisas triviais e as outras nem tanto

A última vez parece ontem. Foi um tiquinho de tempo. Nada mais que um olhar de relance num algo qualquer que atravessou o caminho. Um momento de distração, para ser franco, quando se descuidou de um bem.
Ela sabia. Seria o fim de um evento que nem começo teve. Ainda assim apareceu radiante. Sorriu e falou com admirável propriedade. Expôs pretensões, mas nunca relacionadas a coisas comuns. Como o amor, por exemplo.

Uma viagem, um projeto acadêmico, uma meta profissional e assim por diante. Nada de sentimentos. Vida a dois? Dissimulou apenas, ao ensaiar que quando a teve não suportou. Justificou sem exigir que os outros concordassem que a presença física de alguém havia sido desgastante. Foi um aviso: conversa encerrada.

Debateu literatura como uma crítica literária. Em certos detalhes aprofundou conversa. Mas deixou capítulos inteiros em aberto, como se partes do livro tocassem em questões triviais e, assim, desinteressantes. Foi como folhear um grosso livro usando luvas de lã, quando as páginas passam de monte. E das folhas que viraram juntas nem todas falavam de amor.

Ainda assim elogiou obras em que os autores destampam cenários políticos sobre panos de fundo com epsódios de amor. Ou desamor. Mencionou “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera. Lembrou também de “Dr. Jivago”, cujo filme foi baseado em romance de Boris Pasternak. Pediu concordância que estes eram referência, numa forma delicada de sugerir que evitassem solicitar outros títulos.

Ninguém o fez, a mensagem foi compreendida. E ela continuou altiva, dominante, no centro das atenções. Por horas cativou, mas nunca se deixou cativar. Repeliu com certo humor e desdém elogios, principalmente quando estes tratavam de sua beleza e simpatia. Falou mais que ouviu e nem assim chegou ao descontrole. Brilhou até o último gole de vinho na companhia das pessoas.

Só depois, sozinha num quarto de hotel, desabou ao se ver longe daquele por quem ela imaginava poder confidenciar sobre coisas triviais e desimportantes, como o amor. Pudera! Foi a parte que ela se propôs esconder dele pensando ser estratégia certa. E ele julgou diferente e se foi sem dar chance de um começo.

domingo, 4 de setembro de 2011

Crônica - Cada um se vira como pode

A estátua viva tem nos braços uma boneca que imita uma criança. A estátua, que é viva, imita uma santa. A estátua, que vive, pede a atenção das pessoas, por isso é uma estátua viva com uma boneca nos braços.

O sanfoneiro imita que sabe tocar uma canção que só conhece a metade. O sanfoneiro, que é bom imitador, toca uma música pela metade. O sanfoneiro toca outras metades de outras canções para ver se a caixa de sapatos colocada aos seus pés tem o fundo coberto de moedas atiradas por quem passa e não percebe que o sanfoneiro é bom até a metade.

O vendedor de líquido milagroso vende a cura para tudo o que é nome de doença. O vendedor de milagre diz que seu produto é bom para alergia. O vendedor de cura promete aliviar inchaço. O vendedor só não tem remédio para ficar rico de modo a não ter que vender o que não pode curar a doença que faz os que procuram milagres a comprarem promessas em vidros, em cédulas eleitorais, em anúncios políticos e em outros frascos descartáveis.

Informalidades. Filhas da crise e do desemprego, madrastas dos excluídos. Duras para quem se vê obrigado a se submeter. Cobiçadas pelos profissionais do vamos ver no que dá, dentre eles aqueles que sobem nos palanques e prometem milagres para tornar a informalidade menos informal. Como se isso resolvesse...

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Uma ré sem defesa no dia do julgamento final

“A dona Margarete lutou tanto, coitada!” Exclamada com ênfase, a frase teve mais do que um sentido nos ouvidos da meia dúzia de pessoas ao redor. Seria um elogio à mulher?
Ou um sentimento de pena? Sim, poderia ser isso. Provalmente Margarete entregou-se a algumas batalhas cujas vitórias lhe daria o alcance de um objetivo nobre e importante. Mas impedimentos no percurso haviam tornado a meta inatingível.

Objetivos e metas, quanta distância entre dois pontos. Seguiram-se relatos feitos cochichos, com as mãos tapando as bocas para evitar que o som das falas propagasse acontecimentos mais íntimos a quem não devesse ouvir.

Que dona Margarete trabalhara desde cedo, ainda meninas de pés no chão, quando a família vivia com a renda de uma pequena propriedade rural. E isso se pode comentar em tom mais alto.

Que a mulher teve acesso à escola muito tarde, porque as tarefas domésticas, que incluíam os cuidados com os irmãos mais novos impediam Margarete de estudar. E este assunto foi dito em tom mais brando, como se fosse confidência.

Que dona Margarete, apesar do pouco estudo, sempre teve uma inteligência de dar inveja e por isso merecia atenção de todos nas conversas durante as reuniões festivas da família. “Ela falava de um a tudo como se tivesse estudado sobre o assunto”, diziam os parentes. E isso foi dito em bom tom.

Que a mulher, quando adolescente, desbancou muitas candidatas referenciadas na disputa de uma vaga de costureira numa indústria de confecções, porque as pessoas encarregadas da seleção levaram em conta a humildade de Margarete em admitir que nem sabia como fazer a máquina funcionar sem pedal, “mas é só eu ver alguém fazendo que aprendo rápido”. E nisso não houve cuidados quando se comentou.

Que Margarete, pouco mais de um ano depois, foi promovida a chefe das costureiras, pois além de produzir acima da meta nunca teve uma peça devolvida pelo controle de qualidade e mantinha relacionamento exemplar com as colegas. E este tópico mereceu tom alto e ouvidos atentos, com acenos de concordância da cabeça após exposto.

Mas havia uma outra versão deste epsódio, cuja manifestação foi feita restritamente, com as mãos feito conchas escondendo as bocas, as orelhas em pé e em sussuros: que Margarete tinha, sim, muita capacidade profissional. A promoção, no entanto, foi fruto de uma relação amorosa com o patrão que era casado. “Quer dizer, ela teve que fazer muitos serões para ser promovida a gerente”, cochicharam as três senhoras encostadas no pé do caixão onde Margarete jazia serena.

E como nesses encontros as frases ditas em voz mais alta raramente se completam por serem esquecidas na medida em que as conversas se avolumam, ninguém se preocupou em acrescentar complementos à exclamação inicial: “A donaMargarete lutou tanto, coitada!”

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O silêncio é, às vezes, um grito forte e agudo

Quando ela sorri nem sempre o sorriso é interpretado como um sentimento de alegria. É apenas um aceno, como se ela dissesse um olá, como vai? O olhar é sereno. Os lábios apenas esboçam leve movimento. Então não se sabe se Leonice está feliz. Ou se ela disfarça um choro que não é de lágrimas.
Talvez Leonice carregue no trajeto de casa ao serviço muito mais do que a bolsa cujas alças pressionam os ombros com força, de maneira que aquilo não seja cobiçado por algum descuidista. Os mesmos ombros devem arcar com o peso de preocupações diversas: as crianças despachadas para a escola, o aluguel da casa, a prestação do sofá, o vencimento da conta de água e o atraso no pagamento do salário, por exemplo.

Sim, um parceiro em casa para dividir as contas e repartir alguns momentos de alívio. Ou Leonice é só? Talvez a falta de um sorriso tenha a ver com solidão. O que se sabe dela é aquilo que se vê. E não há intimidade tanta para perguntar se ela é feliz ou triste. Haveria alguma oportunidade para fazer uso da solidariedade e indagar? Qual o risco da atitude ser confundida com curiosidade vulgar?

Leonice aparenta uma idade que depende da roupa que ela usa. Quarenta, cinqüenta ou pouco mais. Não há rugas no rosto, a pele é lisa. Mas há, com certeza, rastros na superfície morena de muito sol ao longo dos anos, chuvas de temporada, frio, vento gelado e suor. Talvez até lágrimas que não se vejam de dia, mas desçam à noite. Quem é que sabe?

Hoje ela desceu do ônibus e seguiu pela avenida até a casa onde trabalha como doméstica. No caminho passou por uma escola, onde alunos enfileirados cantavam o Hino Nacional enquanto a bandeira era hasteada. No tempo em que reduziu os passos para assistir de relance a comemoração da Semana da Pátria ouviu, após a música, alguém declamar um poema sobre o grito às margens do Ipiranga.

Leonice caminhou impassiva, ainda devagar. Parece que sorriu. Há, porém, quem diga que aquilo foi uma expressão de tristeza. E se imaginou, entre as dezenas de pessoas que faziam o mesmo trajeto, que aquela mulher manifestou em seu silêncio um grito muito forte. E de tão forte aquele grito despertou a atenção de pessoas que enxergam as expressões de outras pessoas e se perguntam: Por que tanta alegria? Qual a razão de tamanha tristeza?

Pensei o dia todo que aquele grito foi por liberdade. Diferente daquele da margem do Ipiranga, o grito da liberdade, o de Leonice ecoou mais longe.