terça-feira, 13 de setembro de 2011

Conto - A madrugada denuncia movimentos

Um tranco forte e barulhento da porta no batente acordou metade do prédio. Às duas de uma madrugada estranhamente quieta, Ellen ainda tentou evitar mais alarde. Mas o molho de chaves tilintou ao ser girado, os livros caíram dos braços, a tosse atacou e as sandálias de salto alto denunciaram o caminhar apressado até o elevador.

Eram três livros, mas o único a cair com a capa para cima foi Gabriel Garcia Márquez e o seu O Veneno da Madrugada. Estranho! Ellen fazia uma releitura do romance e na medida em que as páginas eram devoradas, acendia um pressentimento. “De que? Até este ponto não devo nada. Ou devo?”

Rodadas de cerveja e chope com os amigos raramente causam remorsos, mesmo quando alguns limites são esticados. E o trabalho da universidade, tem a ver? Que nada, o que Ellen fez foi reproduzir sem alterações de pontos e vírgulas alguns trechos de autores menos conhecidos. Seguiu recomendações de colegas: “Não copie de autores conhecidos que estes até os professores conhecem...”

Ainda sem explicação para a sensação que a dominava, Ellen certa vez se viu diante da janela da sala espiando os prédios em frente. Não procurava um flagrante de alguém nu ou em situação constrangedora. O que Ellen buscava eram mensagens em faixas ou em pinturas denunciando seus erros. Sim, havia a influência literária. Gabriel Garcia Marquéz a punia pela releitura de sua obra. “Mas sem motivo, autor querido. O que é que eu fiz?”

Estava no livro, perdido em trecho de algum capítulo. A pressa, no entanto, fez Ellen implorar por mais velocidade no elevador, que desceu até a garagem de onde o carro saiu brigando com a demora do portão eletrônico. Os quinze minutos até o seu destino pareceram horas.

E lá, outra vez a aflição: portão eletrônico lento e elevador quase parando. Outra vez um molho de chaves e a porta fechada de leve, sem qualquer som denunciador. Nem ao banho ela foi. Deitou-se ao lado do marido que roncava com a boca aberta e deixava escorrer uma baba nojenta. Ouviu ele rosnar: “Só chegou agora? Bem tarde heim? Por onde andou?”

Respondeu que estava trabalhando na monografia com as colegas. Mas havia chegado em casa faz tempinho. “Estava na sala organizando o material para amanhã”. O marido ainda se deu ao trabalho de dar um beijo na face de Ellen, cheirar as partes como se estivesse conferindo propriedade, virar de costas e retornar ao ronco.

Ellen também adormeceu minutos depois. Só esqueceu de esconder na bolsa o molho de chaves do outro apartamento, que ficou sobre a mesinha da cabeceira. E se deu o que Ellen pressentia. Na manhã seguinte o marido perguntou, furioso, de quem eram as chaves. “Quem é esse Aroldo gravado na plaqueta do chaveiro?”

Nenhum comentário:

Postar um comentário

PARTICIPE: