quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

VIDA...

 Nascer, crescer um pouco, falar, aprender mais ou menos, usar roupas de número maior, conhecer o suficiente, aumentar mais de tamanho, achar que já sabe de tudo o bastante, ir, dar com a cara em portas fechadas, ter que recuar, se perder.

Vida é assim. A diferença é a excessão, ou a vontade de que o corriqueiro seja não apenas o trivial, mas o fora do comum. Sempre...

Vida deveria ser um balanço de corda preso no galho mais alto e forte da árvore que se ergue a cinco passos da varanda dos fundos. E haja nela frutas variadas de acordo com o tempo de cada uma: frio, calor, chuva, estiagem, primavera, verão, outono, inverno. E que o balanço leve a criança tão alto para ela apanhar com a mão uma manga, um abacate, limões para o suco, fartura para a gula e leveza para o estômago, de tão sadio é o que a natureza oferece.

Vida é a chuva quando o sol se põe forte, para correr fazendo de conta que foge das gotas. Vida é a enxurrada que desce e os pés que a menina experimenta nela, descalça, chinelos nas mãos, sem medo da água que parece suja, mas abraça quem a toca como se avisasse estar limpa de qualquer maldade.

Vida é perder o tempo necessário para ver o gato na espreita de um pássaro armar um bode e desistir do ataque porque o menino, sem entender dessas coisas da natureza, se engraçou com o  bichano e alertou, sem querer, a delicada voadora sobre o risco que ela corria.

Vida é o adolescente que pode enxergar, durante qualquer hora do dia, e sob qualquer situação, os pais como exemplos e portos seguros. Vida são os pais que abraçam a filha jovem com a certeza que fizeram dela alguém suficiente e forte para andar confiante nas trilhas que eles pisaram, porém cientes de que outros caminhos são possíveis.

Vida é o adulto olhar para trás e ver que há mais que um velho e uma velha seguindo-o, distantes e lentos, com a certeza de que fizeram daquele que vai na frente uma pessoa certa.

Vida é andar carregando o peso do corpo, mas sem nunca tropeçar nos arrependimentos, por não ter vivido bem para si próprio e as pessoas que o cercam.

E que vida, se assim fosse. Ou, assim seja.

Vida é balançar alto até a fruta lá em cima...

É viajar na poça d'água como se estivesse
dentro do barco de papel...

É ver o céu, 
indo, e voltando...




terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Certos caminhos

Eu venho de conversa demorada com dona Toninha, avó de Alfredo, colega meu faz bons anos, e mãe de Orides e Margarida, vizinhos por par de tempo lá na dobra da rua abaixo da feira livre de terça. Boa gente, todos eles e até parentes que fim de semana aparecem para trocar conversas e provar doce de mamão feito em fogão de lenha improvisado no quintal, rente à cerca que divide a propriedade com a chácara dos Ferreira. Feito por Toninha, até marmanjo se lambuza todo lá onde a colherada caça do fundo do pote o coco ralado, bêbado de tanto mel puro catado lá no matagal que divide o sítio dos japoneses com a terra dos Figueiredos.

Toninha fala. Nessa conversa eu mais ouço que falo. E quando tento diálogo ela corta. Se houvesse anotado tudo daria um caderno bem grosso. Lápis, então, estaria no toco. Essa mulher prendada na cozinha e doutora na costura e nos bordados foi, sei lá, por certas vezes trabalhar nas ruas para políticos na campanha eleitoral. Não sei se eu entendi, mas me disse ela,  com endosso do marido, o Antenor, que os homens pediam os serviços dela porque Toninha era muito conhecida e respeitada na localidade.

O que eu sei é que nem sempre o serviço de Toninha era pago. Mais do que por bondade, ela o fazia por acreditar demais nos outros. "Ela se dá", dizia a cunhada Maria. "Se dá tanto que as pessoas se aproveitam dela", encompridava.

Elogios rasgados, da boca para fora, abundavam. "Sabe essa tal cama de vereadores, dona Toninha?" Se rindo por dentro, mas cuidadosa para não deixar perceber, ela perguntava: "Câmara (?!?!), o que é que tem?".

"Pois é, a senhora dava uma vereadora daquelas..." E ficava nisso. Nem comentário a mulher fazia.

Para mim ela confidenciou uma vez que o pessoal da prefeitura já havia proposto a ela uma candidatura nas próximas eleições. O prefeito ia concorrer à reeleição e precisava de alguém forte para defendê-lo na Câmara. "Preciso de uma liderança forte, gente. Uma pessoa que seja respeitada pela comunidade. Nem precisa entender de política. Alguém, veja lá, como a dona Toninha", anunciou o prefeitos aos seus capachos.

"É, uma pessoa que não fique questionando o que o prefeito faz ou fala", acrescentou, com pinta de intelectual, o assessor de imprensa da Prefeitura. "Então é a dona Toninha. É líder para pedir coisas básicas como um roçada, umas pedrinhas na rua. Mas é bobona nas coisas mais complicadas da política", exemplificou o chefe de gabinete.

A proposta chegou a ser feita. Como na política os pretendentes à ascenção são parceiros hoje e inimigos amanhã. E mesmo enquanto parceiros traem, pois as regras tornam as traições uma necessidade. E o teor da conversa na reunião do prefeito vazou. "Não é por nada dona Toninha, eu gosto muito da senhora e tenho que ser honesto. Disseram que precisavam da senhora junto com o prefeito porque a senhora é bobona. Não foi assim que falaram, mas foi bem isso".

E ela, sem nada dizer, se recolheu para um choro de tristeza profunda. Não foi um choro qualquer. Foi um choro de pranto seco, soluços que doíam na garganta, decepção queimando a alma. E ela decidiu, sem trocar idéia com alguém, nem mesmo os de mais confiança, que ia crescer como uma pessoa que, por vocação, faz o que pode para ajudar a si própria e aos outros para resolver problemas comuns que parecem pequenos. Tão pequenos que não fosse ela persistiriam, sem solução.

E até a referência a ela como líder comunitária passou a se rechaçada. "Que líder comunitária nada, gente. Isso me dá até calafrios. Eu sou eu, só isso".

E foi mesmo, sou testemunha. Uma grande pessoa dentro de um corpo magro com um metro e meio de altura. Seguindo com vontade o caminho que a sua sabedoria recomendou.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A HISTÓRIA QUE VOVÔ NÃO CONTOU

 

É mais ou menos assim. Aliás, mais do que menos. Ele não inventava e ficava dentro do enredo. Sempre. Fiel narrador, dava detalhes das coisas. Mas ninguém daquele tempo lembra ter ouvido dele aquele epsódio que poucos tiveram ciência, tamanha foi a tristeza que o cercou somada à decepção com os que fizeram parte da trama. Aquilo foi guardado dentro do silêncio, rasgando de raiva o coração e formando na garganta um nó que não se desprendia. Entalando, machucando, doendo e mexendo, como uma espécie de bicho enorme subindo e descendo o corpo por dentro dos músculos e arrebentando as veias.

Ambrósio, eis o nome do sofredor fulano. Sujeito que nasceu pobre e se fez pessoa de bem graças à herança que recebeu dos pais na sua formação. Bom aluno do grupo escolar, fez o então exame de admissão e passou na primeira tentativa. Então se viu no ginásio, de camisa branca, calça de tergal azul marinho, meias pretas e sapatos vulcabrás pretos. Era o padrão recomendado pelo estabelecimento de ensino.

Nunca repetiu de ano e nem chegou a ficar para exame. De repente se viu no colegial. Até os quatorze anos continuou estudando de dia, com o exigido uniforme da rede pública. Até que alcançou a idade da época de poder trabalhar e conseguiu transferência para uma turma à noite.

Escrevia muito bem. Suas redações, vez ou outra, serviam de exemplo nas aulas da professora de português. É porque, trancado na solidão de um menino simples, morador em um bairro de classe média, Ambrósio só tinha colegas na escola. Seus vizinhos, pelo menos a maioria, freqüentavam colégios particulares. Então ele lia muito e lendo inspirava-se nos autores a que tinha acesso para colocar o seus textos no papel. Chegou a um ponto em que rascunhava poesias, peças teatrais, letras de música, contos, crônicas, comentários sobre acontecimentos que testemunhava.

Sem uma máquina de datilografar, que era a tecnologia daquele tempo, passou a registrar o seu conhecimento da escrita e a sua inspiração, e como não também o talento, em folhas extraídas de cadernos de anos anteriores. Depois do primeiro emprego como aprendiz, conseguia comprar cadernos, cujas páginas eram rapidamente preenchidas com histórias.

Ambrósio começou como aprendiz de um laboratório de prótese dentária. Limpava, ajuntava os cestos de lixo, fazia entregas nos consultórios dentários, saia para depositar cheques no banco e, na sobra de tempo, os mais velhos, sensibilizados pelo interesse do menino, ensinavam a vazar as moldagens com gesso, esculpir de brincadeira alguns dentes e, no sério, deixar o lugar em estado de perfeita limpeza. Varrendo, lavando, ajuntando o lixo.

Quando os patrões acharam que ele já merecia uma promoção, o então adolescente anunciou que já tinha idade para trabalhar num banco e ia tentar uma vaga. Não foi tão fácil, mas conseguiu graças ao esforço e a persistência. E quando os chefes do banco, anos depois, achavam que deviam ter uma conversa com o mocinho para que ele prosseguisse os estudos na faculdade em áreas úteis à instituição financeira, Ambrósio saiu na lista de aprovados do curso de comunicação. Os chefes ficaram decepcionados, mas decidiram manter o rapaz empregado, sem a possibilidade de qualquer promoção. "O que um cara formado nessa tal comunicação pode fazer pelo banco", se perguntavam, às vezes, na gargalhada.

Nos primeiros anos do curso Ambrósio foi indicado por um dos professores para fazer parte da equipe de jornalismo de uma emissora de televisão. Ele aceitou e sofreu muito para se adaptar ao texto do jornalismo da emissora, pois como contista e cronista escrevia e muito. Nos jornais da TV precisa ser conciso. Pegou o jeito, depois de levar algumas advertências dos superiores, que significavam o risco de nem passar pelo período de experiência.

Até que ganhou a confiança e, a seu modo, adaptou a sua escrita ao jeito que o meio de comunicação achava que era o certo: texto seco, dando os fatos e dispensando detalhezinhos. Foi demitido quatro anos depois. O diretor de redação justificou que por escrever demais o texto dele era "meio comunista" e a diretoria da empresa não queria ter problemas com as autoridades.

Após quebrar o galho em pequenas publicações impressas, chegou anos depois a um jornal de porte médio. Aos poucos conquistou espaço e fez inimizades. Certa vez foi chamado por um superior para assumir vaga disponível num grande setor do jornal. Aceitou e, à noite, levou a novidade, junto com um lanche especial, à família.

A felicidade, porém, durou pouco. Um colega de trabalho que fazia parte daquele setor procurou-o para dar o seguinte recado, na bucha: "Você é um foca. Se aceitar a vaga que o fulano te ofereceu nós vamos te f..."

Foca era o termo que se usava para um profissional da área em início de carreira. À noite, sem dizer nada à família, Ambrósio se enrolou na cama por não conseguir dormir. Mas decidiu que ia aceitar o desafio: "Não sou um rato, vou encarar”, pensou.

E também rememorou a ameaça, em seu sentido mais pleno: “Se você aceitar a vaga vamos fazer você trabalhar só em porcaria, e de montão. Você não vai ter tempo e nem condição de produzir material bom”.

Como isso seria possível, pensou Ambrósio. "Se me derem só porcaria para fazer eu consigo transformar a minha produção em coisa boa", imaginava. “Eu vou mostrar como se faz porcaria virar coisa boa”.

Mas se deu mal. E muito. Foi, durante o período que se manteve no setor, castigado com o excesso de produção, a falta de condição para aprofundar os assuntos, a pressão psicológica por trabalhar vigiado por colegas e a frustração de não conseguir impor-se profissionalmente.

Até que, sentindo-se derrotado, pediu ao superior que o transferisse para outro setor. "Eles venceram, eu substimei. Não achei que a maldade tivesse tanta força", pensou consigo mesmo. E pouco tempo depois recuperava o seu vigor, o seu talento, a sua vontade e capacidade. Já conseguia escrever aquilo que quem o lia gostava de ler.

Eu sei dessa história porque achei no meio dos rascunhos de Ambrósio as anotações, em letras espichadas, mas legíveis, de como tudo aconteceu. Não sei quantos netos e quantas netas Ambrósio tem. A bem da verdade, eu nem ao menos sei se ele tem netos e netas. Mas pelo modo como o rascunho estava escondido, imagino que ele, que gostava de falar sobre as suas produções, jamais comentou com familiares, parentes ou amigos este epsódio que tomo a liberdade de contar no lugar dele.

E sei também os nomes daqueles que participaram da trama. Mas não falo. Se Ambrósio se calou eu fico quieto e também levo comigo, e só comigo, o que contém atrás de cada um dos envolvidos. São coisas que acontecem em diferentes ambientes de trabalho onde há pessoas armadas escondidas atrás das escrivaninhas ou dos balcões. Se é que ainda usam isso, escrivaninhas e balcões.

De qualquer forma, deixo esta verdade escrita e publicada, para que os "amigos" do Ambrósio saibam que foram derrotados.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

CORAÇÕES SUJOS

Deu a outra face quantas vezes e mal podia dizer em qual delas a mancha da dor ardia. Havia conferido nos livros e ouvido na escola que era bom para aliviar o peso da alma.

Coisa que vai crescendo conforme o tamanho do que é errado, mas feito. Por descuido ou teimosia mesmo. Como desobedecer a mãe e o pai. Brigar com os irmãos. Jogar lixo no vizinho. Aproveitar a distração de um colega da sala de aula e embolsar a caneta do próprio.

Vez ou outra a mãe, desenhada em sua cara a preocupação materna, em tom de bronca perguntava: "Que pecado você cometeu para te doer tanto o dente?"

E ele, mãos trêmulas enfiadas no saco dos últimos acontecimentos, resgatava episódios diversos sem saber o parâmetro de tempo a ser usado. Hoje, ontem, semana passada, quando?

Teria sido a borracha da irmã mais nova gasta ao ser desaforadamente passada no cimento da parede? O bolinho de chuva que a avó havia guardado para o primo e ele comeu? Ou a remexida na gaveta do irmão mais velho para espiar as revistas com mulheres sem roupa?

Alguém teria dito dias desses que tudo era pecado. Ele não se lembra quem nem quando. Mas se o dente dói tanto tem a ver. Se confessar para a mãe vai ter bronca e até uns tapinhas ardidos. Mas fazendo isso o dente vai parar de doer?

Embora nenhuma resposta concreta tenha havido para tamanha dúvida, o menino passou a adolescente, depois virou jovem, prosseguiu adulto e envelheceu fazendo e desfazendo.

Pequenos pecados que lhe renderam, além de dor de dente, tendinite, asma, sinusite e outras dores. Assim como fases de desemprego, prestações atrasadas e sonhos nunca alcançados.

Eram, na sua concepção, castigos disfarçados de dissabores. E ele, para dormir tranquilo, tentava se purificar das maldades bobas que cometia dando a outra face. E mais tapinhas ardidos, como aqueles que a mãe dava, recebia da vida. Aliás, rotineiramente.

Já aquele outro, muito bajulado pelas professoras do antigo grupo escolar, como era antigamente, paparicado pela direção do estabelecimento e cobiçado pelas meninas que vinham de áreas mais nobres do bairro. Aquele virou político.

É muito falado. Tem notícias dele quase todos os dias na televisão. Corrupção, corrupção e mais corrupção. O Ministério Público vai atrás, a polícia intimida. Mas quando a coisa vai na Justiça emperra. E o fulano fica protegido. Nas próximas eleições receberá votos de avisados e desavisados. E se não for eleito será nomeado para alguma coisa que renda um bom salário e uma vida de faz nada. É assim, tanto na terra quanto no céu. 


segunda-feira, 30 de novembro de 2020

UM DIA DE CÃO

 Foi isso mesmo. Sem por nem tirar. E considerando as possíveis variáveis com direito a erros na interpretação de quem lê ou escuta o título deste texto: Um dia de cão.

Tudo começou após o fracasso nas negociações dos humanos para fazer um cachorro da vizinhança parar de latir, de noite, na madrugada e também de dia, em intervalos curtos e com barulho irritante. Instalado num apartamento do quinto andar de um prédio fincado em região alta de um bairro de classe média, o latido ecoa longe, quatro, cinco ou seis quadras abaixo. Imagine os ouvidos de quem mora mais perto?

O síndico do prédio foi acionado pelos vizinhos. Mas assumiu a sua incompetência,  atrás de justificativas hiláricas. Até comentaram alguns que a dona do barulhento era novinha e morava sozinha. Maldade...

Outra sugestão foi a de acionar os vereadores eleitos com fotos de cachorros nas camisetas e promessa de defender os coitadinhos. Mas os contrários argumentaram que vereador é político e, de regra, usa a promessa durante a campanha eleitoral e depois aproveita material que sobrar para limpar a bunda. Sim, com o perdão da vulgaridade, foi bem assim que disseram e ninguém discordou.

"Então vamos fazer um abaixo-assinado, coletar um montão de dinheiro para custas judiciais e o advogado. Vai ficar caro, mas quem sabe..."

Foi quando um vizinho, dado como esperto na comunidade, sugeriu, na gozação: "Se é coisa de cachorro vamos deixar os próprios latirem sobre isso".

E não é que, mesmo na ironia, a proposta  pegou? Virou primeiro conversa de balcão lá na mercearia de uma porta, escondida no meio de uma rua de cinquenta metros, onde mulher não entra e homem, quando sai, tropeça nos próprios pés. Decidiram, ali, organizar uma sessão de julgamento do latidor barulhento.

Como juiz escolheram o cachorro do Anésio, um pastor alemão que o dono dizia ser puro de raça, mas de capa preta o animal tinha nada. O promotor nomeado foi o Basset de boca branca, focinho negro e orelhas marrons do Gilberto. O advogado de defesa foi o border collie do Freitas, sob a alegação de que o bichinho levava jeito.

E o bichon frisé do Andrade, coitado, foi nomeado para ficar na portaria durante a sessão de julgamento, com a missão de cheirar todas as traseiras dos cachorros que adentrassem no local.

O julgamento foi agendado para uma sexta à noite, depois de uma rodada de cerveja, na esquina da rua do prédio onde o cão barulhento vivia. Na noite e na hora marcados todos chegaram. O cão porteiro cheirou as traseiras para identificar os presentes. O juiz deu um latido. O promotor deu outro. O advogado de defesa rosnou forte, ameaçador.

Passaram dois carros com vereadores eleitos com motes de defesa dos animais para espiar o que acontecia. Os donos dos cães envolvidos ficaram do outro lado da rua. Até que o cão juiz deu um latido forte, cheirou o martelinho de bater na mesa e encerrou a sessão.

Pela explicação do Anésio, dono do pastor alemão juiz, o cachorrinho barulhento foi inocentado. A condenação em primeiro grau foi sentenciada para a madame, dona dele. O síndico também foi condenado.

A madame terá que contratar um adestrador, daqueles que cobram por minuto, para colocar seu cão na linha. O síndico pegou seis meses de serviço condominial e vai ter que cuidar nesse período do cão da madame quando ela sair para o trabalho ou para as noitadas com os amigos.

E o cachorrinho continua no quinto andar do prédio. Latindo de dia, de noite e de madrugada.

Agora falando sério: os cães cheiram a traseira de outros cachorros para o reconhecerem. Eles também cheiram, com o mesmo objetivo, as partes íntimas dos humanos, pois é onde estão as glândulas sudoríparas, que também existem nas axilas.

Pela Lei 3.688/41, em seu Artigo 42, IV (Lei das Contravenções Penais), ao provocar ou não procurar impedir barulho produzido por animal de quem tem guarda a pessoa comete o crime de perturbação do sossego alheio e a pena vai de 15 dias a três meses ou multa. O excesso de barulho ou ruído é proibido em qualquer horário.

O que sobrou da sessão de julgamento, no local onde o evento foi realizado...


Garrafas vazias de etílicos, com certeza restos encontrados
no local onde os donos dos cães aguardaram o julgamento
Foi tanta aflição durante a espera que um dono de cão participante do julgamento 
não aguentou e se borrou todo
Este foi assistir e não aguentou. Dormiu, roncou e babou...




quarta-feira, 25 de novembro de 2020

PEDAÇOS DO MUNDO

É um caminho que desce, de vez em quando, mas faz subir por longa caminhada. Aqui eu andei muito, o par de conga azul tirando o mindinho do pé esquerdo para fora. Culpa do pano envelhecido do calçado, tão velho que fez um furo e virou rombo. Faz tanto tempo...

Era a idade da vida nascendo com o sol, de manhãzinha, ou da chuva batendo na madeira do janelão feito de tábuas. O compromisso da manhã: ajuntar a sujeirada feita no quintal ontem. Tarefa de meia hora, com tempo de sobra para correr no dever de casa e evitar castigo da professora à tarde. Dava ainda para aprontar travessuras antes do almoço e da escola.

Chegar meia hora mais cedo, antes do portão ser aberto, era regra. Um trato entre os colegas, para suas brincadeiras e correrias nas proximidades. E nada de receber elogios dos comerciantes próximos. Já as ameaças de contar aos pais e conversar com a direção da escola sobre as travessuras ficavam, na maioria das vezes, só na conversa.

Mesmo nas brincadeiras sem correrias as vitórias eram comemoradas com gritos e as derrotas com xingamentos. Como o jogo de bafo, as apostas valendo figurinhas de coleções e a habilidade com as bolinhas de gude. Depois das aulas outro rito: seguir em turma, longe das meninas, aprontando. Um tapa nas costas de um colega só para invocar e provocar revide, um puxão no guarda pó do outro, um empurrão, um puxão no cabelo, uma aposta de última hora para ver quem chegava primeiro na próxima árvore da calçada.

E chegavam as ruas residencias com casas de.madeira, a.maioria sem varandas na frente e algumas com escadas de tábuas na porta. Os terrenos desocupados, em grande quantidade, eram campinhos de futebol. Mas as brincadeiras prosseguiam mesmo nas ruas que não tinham asfalto e nem movimento de carro. Às vezes um carroceiro nem incomodava, pois morava na vizinhança. E se corria muito no pega pega, no pé na lata, na mãe da rua, no esconde esconde e nas peladinhas com uma bola de borracha.

Havia o horário do banho, ainda cedo, porque as mães enfureciam se atrasasse o horário do jantar. Os programas noturnos de rádio não tinham como ser ouvidos durante a lavagem da louça. Os adultos se sentavam na mesa ao redor do aparelho barulhento de onde a voz do homem dava as horas, tocava as músicas de sucesso e anunciava alguns acontecimentos do dia. Também lia cartas da comadre fulana mandando abraços para a comadre sicrana e o esposo e os filhos. "Aqui nois está todo bem, viu comadre", lia o homem do rádio. "Só o véio por uns par de dia tossiu que nem boi adoidado. Mas nem precisou de chá. Mordeu uns alhos e curou".

E lá fora, os moleques aprontando nos quintais. Já com roupa de dormir, chutando a bola na parede, gritando, rindo, arrancando galhos das árvores só para fazer sujeira e, pior, atrapalhando os ouvintes da caixinha de madeira que trazia pedaços do mundo para dentro de casa, na voz de um locutor que parecia estar na sala, falando e olhando para cada um dos presentes.




segunda-feira, 16 de novembro de 2020

ESQUINAS...


Logo adiante, o comércio oferece sorvete direto da fábrica. A que preço a senhora que mora no quintal vizinho mereceria tal vantagem? Ou, desvantagem.

Na esquina mais próxima, o muro da escola de ensino fundamental é ornamentado com desenhos de aluno. Na frente e na lateral. Ligia, Pedro Joaquim, Marcos, João, Hellyan e tantos outros assinam a obra. Que é, aliás, bastante visível, mas questiono quantos não a enxergam com a devida importância de quem a concebeu. Canta Marisa Monte, na música Gentileza: "Apagaram tudo / pintaram tudo de cinza..." Letra previsível num lugar que pinta escolas com as cores da campanha eleitoral dos políticos da vez. Hoje vermelho, amanhã azul, depois verde...

Nas minhas costas, a mureta do estacionamento me oferece um lugar para sentar. Não me expulsam de lá, por provável cortesia, ou pouco caso, quem sabe por me virem potencial cliente, isso culpa da minha idade.

As placas das ruas que se cruzam balançam ao vento, como se fossem elas as responsáveis pelo tempo das sinaleiras. Verde Vasco da Gama,vermelho São João, amarelo para ambas, ao mesmo tempo.

Vasco da Gama. Seria o próprio, aquele do caminho das Índias, emprestando seu nome à tão usada via pública? De quem foi a idéia? Infeliz, hilárica ou louvável? Quem diria...

E o outro, São João? É o mesmo do folclore, das festas juninas que perderam os fogos de artifício por causa dos cachorros? Nunca o cachorro animal têm culpa ou mérito de erros e acertos. Sempre o cachorro homem, aquele que pensa com a traseira e ladra, este sim decida equivocado por desfilar pretensões avessas.

Verde e vermelho, Vasco e João. Vermelho e verde, João e Vasco. Amarelo para ambos, ao mesmo tempo. "Escola linda de bonita", escreveu um aluno que ajudou a ornamentar o muro da escola com a sua frase.

Metros atrás, dois pontos de ônibus abrigam sob suas coberturas pretensos passageiros que esperam pela condução faz tempo. Um carro de passeio dá a seta para subir, enquanto o motorista contrário aproveita a parada para limpar o nariz. Deu tempo para tirar a sujeira e limpar a ponta do dedo na manga da camisa. Mas deu flagrante para a mulher de motocicleta, ao lado, que fez cara de nojo. Visível, apesar do capacete. Risível, segundo a expressão do motorista da Van, que assistiu aos dois atos.

Verde, vermelho ou amarelo? Trânsito calmo na Vasco que cruza João e que faz o mesmo com o primeiro. Uma é rua, outra é avenida. Mas o estatus pouco importa. Vale ênfase registrar o que acontece no lugar desta cidade onde o explorador marítimo e o santo se dão de cara. Logo aqui, tão longe dos dois.

Ossos do ofício. Há quem diga, escrever tanta bobagem... Mas vi duas borboletas de asas amarelas voando naquele cruzamento na hora da calmaria no trânsito. Culpa do Vasco e do João, explorador e santo.

E ainda enxergo bem, por isso escrevo. Ainda vejo e conto o que visualizo.





domingo, 15 de novembro de 2020

ERA UMA VEZ...


...no reino das matas em chamas, havia um rei que dizia mas não falava, ouvia mas não escutava, olhava mas não enxergava, ia mas não chegava. Em seu majestoso recinto e entregue às enormes e aveludadas braçadeiras de seu trono, o rei consumia as horas dos dias com seus brinquedos: bonecos plásticos de soldados, réplicas de armas de fogo, e seu inseparável smartphone de última geração.

Falava sozinho, mesmo que houvesse cuidadores próximos ao trono, porque uns escutavam mas faziam de conta que não ouviam. Cansados de brincar com o rei, simplesmente o ignoravam.

Então o rei, preguiçoso na sua tarefa de exercitar o raciocínio, esticava os dedos tocando na tela do telefone. E xingava, e gabava-se de seus xingamentos, enumerava inutilidades, ria sozinho de suas travessuras, fazia caretas para se fotografar em selfies.

E ameaça os bobos da corte, que se apresentavam com suas próprias canetas, conforme recomendava a justiça eleitoral para votar em prefeitos e vereadores durante a pandemia. E também se apresentavam à majestade com seus próprios banquinhos de plástico comprados em loja de departamentos cujo dono amava o rei, para fazerem as suas travessuras.

E contam que o rei ria tanto das encenações sem graça que mostravam a ele. E sabiam os bobo da corte que se o rei não risse de suas graças teriam os seus empregos no reino tomados sob o pretexto de serem maricas.

E o rei, de pé em frente ao seu trono, às vezes com o peso do corpo apoiado na perna direita, mas por distração compensando ao jogar, eventualmente, o peso sobre a perna esquerda, dobrava o braços direito na altura do peito, esticava o dedo indicador para frente e o polegar para cima, simulando atirar nos súditos.

E foi numa conversa vazada após uma apresentação que um bobo da corte se queixou de sua performance: "Preciso melhorar senão o rei manda pólvora em mim e, se eu sobreviver, fico desempregado”. Por que, perguntaram os colegas: “Porque ele está doido para assumir a minha vaga de bufão".

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

LEVE A CANETA E O BANQUINHO


Pare. Proibido virar à esquerda. Siga em frente. Conversão à direita temporariamente interrompida. Contorno em manutenção. Use o retrovisor e vá de retro.

Não devia, mas sinais de trânsito parecem, nestes tempos de pandemia política, advertências ideológicas. Esquerda, direita, centro, avanço e retrocesso balizam algumas tendências ou estratégias.

O melhor caminho, às vezes, têm que ser visto como aquele que não é o pior, numa evidência escandalosa da precariedade dos seus argumentos e consequentes discursos. Soluções obvias para questões pontuais.

O oportuno é tão farto de razão quanto o criteriosamente planejado. Depende do lampejo. Ou da hora. Quem sabe, da situação lá fora. As vezes é como dizer um monte de coisas e não falar nada.

Pare. Siga. Não ande, não vire, não recue. Use a faixa. Ligue a seta, sinalize em qualquer circunstância. Ande e, se precisar, corra. Cuidado ao atravessar a próxima viela. Não descuide ao entrar num beco. Volte se a placa avisar que é uma rua sem saída.

E siga, sempre. Cuidado para não dar com o bico do chinelo de dedo na ponta de uma calçada rachada. Permita a ultrapassagem de quem te segue com atitude suspeita.

Bote o lixo no recipiente. Vote o voto na urna ou empurre o mesmo com força para dentro do teclado da máquina de votar.

Cuidado, obra a cem metros com carranca de execução pretensiosamente política. Habilidade nas curvas, o mandato desastroso é por mais três anos.

Vire à direita, é uma opção. Vire à esquerda, é outra opção. Saia do meio, a rua é de vai e vem e o centro é perigoso para ambos os extremos. Pare e pense. Vá e recue. Erre e acerte. Ideologia não é sair rodando pneus até o desgaste.

Mas aqui e agora, do jeito que parece estar, é quase necessário pensar tudo isso como se os avisos de trânsito, na vertical ou na horizontal, ditam as regras desse jogo estranho.

Nunca por mera semelhança. Tudo por culpa de todas as partes que integram este palco. Eu que voto, fulano que espera ser votado, a caneta que tem de ser levada de casa para marcar o número do escolhido, a falsa preocupação com os idosos, estes que se antes já eram, agora, com o novo coronavírus, são os velhos que além de terem muita idade integram um grupo de risco.

Dito da forma como fazem as autoridades sanitárias, alguns especialistas da área médica e profissionais dos meios de comunicação, estão, os idosos, perfilados e com as metralhadoras em mão. Prontos para os disparos.

Faz de conta que ainda estamos falando de política e as situações aqui desenhadas, inclusive nas entrelinhas, formam uma ideologia estranha e sem sentido. E viva o 15 de novembro, nunca por causa das eleições municipais. Um pouco por causa da proclamação da República e um tanto enorme para pensar nas canetas borrando. Leve também, velhinho, a sua cadeirinha para enquanto espera na fila a hora de usar a caneta tinteiro desengavetada do velho armário.

A escolha dos novos prefeitos e vereadores é cara. Mas não se preocupem. Os mesários são voluntários. Brasil...




Becos, ruas sem saída, vielas: o que pode acontecer até chegar ao outro lado? Quem garante que aquilo leva a algum lugar? Melhor acreditar na placa: Rua Sem Saída, dê a volta e se manda




A linha que traz e leva a força e a luz, como diziam os antigos; o limite de velocidade e, no meio das duas pistas, a avenida que passa lá no fundo: o que vem de baixo também atinge, esse é o risco


SUBIDAS E DESCIDAS

 

A grande regiăo do Jardim Califórnia, em Londrina, têm lugarejos interessantes em seu entorno. E, ao mesmo tempo, incógnitos. Bairros e conjuntos habitacionais como o Nova Conquista, Ok, Jardim Kobayashi, San Fernando e São Izidro dividem características particulares, apesar de vizinhos. De uma rua a outra, e em alguns casos já na mudança de quarteirão, o panorama se modifica.

Se ali têm casas em alvenaria concebidas através de projetos arquitetônicos, inclusive algumas no estilo de sobrados, lá têm construções em madeira, a maioria bem simples. Há também edificações em alvenaria, mas é visível que elas foram levantadas em etapa, de acordo com a disponibilidade do proprietário para investir na obra. E há, inclusive, sobradinhos, que por falta de espaço levaram a construção para cima. Localizadas em sua maioria nas baixadas, estas moradias, olhando de cima, se amontoam lá embaixo.

Outras diferenças se destacam. Os bairros das casas mais nobres têm ruas silenciosas, limpas e arborizadas. Um estranho como eu caminhando a pé numa dessas vias deve gerar indagações. “Será que está sondando por aqui para voltar outra hora e...” Dá para pensar assim, percebendo os olhares furtivos por detrás das cortinas.

No lado mais simples, há também quem encare o desconhecido com desconfiança e até certa postura de intimidação. Mas prevalecem as senhoras e os senhores de idade, em plena manhã de um dia da semana, sentados nos bancos de madeira fixados na calçada de terra em frente de seus quintais. Estes até respondem ao meu cumprimento de bom dia,

Me incomoda, porém, a existência de um ponto de entrega voluntária de material reciclável bem na parte mais pobre. É o PEV da região Leste de Londrina, no finzinho da Rua Capitão João Busse, uma via longa e de construções requintadas que começa em parte nobre próxima ao Aeroporto de Londrina. O PEV

Leste funciona em terreno de esquina com a Rua Guilherme Negro, no Conjunto Nova Conquista. O ponto de entrega fica no baixadão. A Rua Guilherme Negro contorno uma imensa área que deveria ser destinada ao lazer. Mas a academia de ginástica ao ar livre fica bem em frente de uma das entradas do local onde ficam depositados os materiais recicláveis. Basta atravessar da academia o prolongamento da Rua João Busse para dar de cara com o depósito.

Há um parque infantil, na imensa área gramada, de tamanho suficiente para um campo de futebol. As crianças brincam no local, que reparte espaço com sacos de lixo de papel, alumínio, plástico e outros descartados. São materiais mantidos fora do PEV, que é responsabilidade do poder público municipal.

No extremo oposto ao da academia ao ar livre há uma quadra de futebol de salão, cercada de tela de arame. Ali, atravessando a rua, uma moradora varre a calçada e responde, um tanto desconfiada, a pergunta que eu faço.  Diz que o material deixa o seu bairro feio. Completa que insetos, roedores e outros peçonhentos são temidos.

Lá atrás, onde passei perto de três homens conversando, percebo que um deles me olha. E seu olhar é nada amistoso. Agradeço a senhora, dou bom dia e saio de fininho. Na primeira esquina viro à esquerda e dou de frente com uma subida. A pequena rua parece uma escada. Chego lá em cima e confiro o resultado da minha escalada. O homem está lá embaixo, olhando para cima. Aceno com a mão para ele e vou rapidinho pela rua que é longa, mas pelo menos não tem subida.






segunda-feira, 26 de outubro de 2020

JÁ DIZIA O POETA...

 



As lixeira lotadas me negam Bom Dia! Inertes, exceto no leve tremular de algo ao vento, encerram conversas que nunca foram iniciadas. Se ao menos me pedissem aliviá-las do esgotamento, quem sabe eu até o faria. Não sei para onde levaria o lixo. Num canto da praça pública onde qualquer obstáculo escondesse imperfeições naturais ou descartes? Bem ali, onde qualquer pessoa que passa durante as caminhadas matinais evita. Por causa da sujeira, do desenho da grama destruída, da casca de banana jogada, dos copos plásticos amontoados.

O avô caminha em companhia da neta. Na certa, acha engraçado alguém falando sozinho diante das lixeiras lotadas. Pudera eu explicar que converso com as coisas socadas nas lixeiras. Porque estas, as lixeiras, eu já tentei diálogo que me foi negado. E o lixo, bem sei que ele ainda têm vida, mas nenhum interesse de falar com quem não lhe convém.

Nenhuma chance desse maluco ser reciclador, diz o saco de biscoito à garrafa de água mineral, usando um jargăo da gíria dos policiais de plantăo: maluco. Tipo, "pára aí maluco, qué morre..." Palavras, vidas, sobressaltos.

As lixeiras lotadas não incomodam os passantes. São moradores do bairro onde a praça oferece pista de caminhada, bancos sinuosos de concreto sob árvores acolhedoras, alguns aparelhos de exercícios físicos e lixo, muito lixo transbordando das lixeiras. 

Obra, talvez, do cotidiano, que faz as pessoas acostumarem com as coisas que permanecem ali, no lugar de sempre, todas os dias da semana, de manhã e à tarde, com sol ou chuva, frio ou calor. O poder público também passa por aquele lugar. Sim, passa...

E a vida corre sob arquiteturas variadas. O novo imitando o velho numa certa edificação e o velho tentando ser novo em outra, ambas lado a lado.

A cidade é moderna, dizia o cego ao seus filhos... Assim cantava o poeta em música dele, Milton Nascimento, junto com o parceiro Ronaldo Bastos, de 1975. “...os olhos cheios de terra / o bonde fora dos trilhos / a aventura começa no coração dos navios / pensava o filho calado / pensava o filho ouvindo / que a cidade é moderna / pensava o filho sorrindo / e era surdo e era mudo / mas que falava e ouvia”.


sexta-feira, 23 de outubro de 2020

O MARCO É ZERO

 

Nesta cidade tomada pela incerteza de sua gente no amanhã, o monumento em homenagem aos desbravadores mais que escancara a pretensão política dos que o conceberam. E, hoje em dia, também os que pretendem ganhar a simpatia dos desatenciosos e pendurar seus agasalhos em cadeiras públicas eletivas.

Fincado naquele dia e hora, e por obra dá exatidão geográfica naquele lugar, hoje a chapa de concreto sobe verticalmente a partir de sua base, tanto parecida com um recorte de calçada, rumo às copas de frondosas árvores.

A metade de cima da estrutura que se ergue comporta o pedaço de metal com nomes e causas. Quem foi fulano e o que ele fez? Os anônimos, preocupados com suas atribuições, nada escreveram e tampouco foram escritos.

Correram anos. Chuvas e sóis venceram folhas e galhos da vegetação para ensaiar bons dias e encerrar as tardes com boas noites.

O Marco Zero não anda e nem fala. É apenas o símbolo de onde a cidade começou, no então chamado Patrimônio Três Bocas, em 21 de agosto de 1929. “Naquela data, em nome da Companhia de Terras Norte do Paraná, um punhado de homens aqui chegou e, com o coração cheio de energia e confiança no futuro, de joelhos plantaram suas primeiras sementes”, diz parte da mensagem, conforme mostram, caladas, as letras cunhadas no metal.

Nem pode, por isso, o Marco Zero reclamar do mau estado de onde habita sozinho varando diferentes situações. Ali bem perto o cercado ruiu em um trecho. As folhas das plantas formam um tapete natural e enfeitam. Mas embalagens plásticas em alguns pontos, junto com outros lixos urbanos, enfeiam.

Fora o barulho dos carros e de obras em prédios próximos, ouve-se a sinfonia do vento regida pela mata. Pássaros acrescentam com suas diferentes cantorias. O silêncio vem por conta da ausência dos escolares, que deixaram de visitar o local no período da pandemia do novo coronavírus.

É uma quase verdade. Pois às crianças voltarão quando a doença for embora e a bem-vinda algazarra dos pequenos com eles virá ao monumento e à vida da cidade.

Os que permanecerão calados sãos aqueles que só entendem o Marco Zero como um símbolo de metal e concreto feito no meio do mato. São dez candidatos a prefeito e 564 a vereadores em Londrina. Mesmo que alguns desses sejam indeferidos, ainda sobrarão muitos.

Quais deles sabem sobre a história das pessoas que constroem está cidade e cujos nomes não constam, tal qual o dos anônimos, em nenhum concreto ou metal comemorativo?