Deu a outra face quantas vezes e mal podia dizer em qual delas a mancha da dor ardia. Havia conferido nos livros e ouvido na escola que era bom para aliviar o peso da alma.
Coisa que vai crescendo conforme o tamanho do que é errado, mas feito. Por descuido ou teimosia mesmo. Como desobedecer a mãe e o pai. Brigar com os irmãos. Jogar lixo no vizinho. Aproveitar a distração de um colega da sala de aula e embolsar a caneta do próprio.
Vez ou outra a mãe, desenhada em sua cara a preocupação materna, em tom de bronca perguntava: "Que pecado você cometeu para te doer tanto o dente?"
E ele, mãos trêmulas enfiadas no saco dos últimos acontecimentos, resgatava episódios diversos sem saber o parâmetro de tempo a ser usado. Hoje, ontem, semana passada, quando?
Teria sido a borracha da irmã mais nova gasta ao ser desaforadamente passada no cimento da parede? O bolinho de chuva que a avó havia guardado para o primo e ele comeu? Ou a remexida na gaveta do irmão mais velho para espiar as revistas com mulheres sem roupa?
Alguém teria dito dias desses que tudo era pecado. Ele não se lembra quem nem quando. Mas se o dente dói tanto tem a ver. Se confessar para a mãe vai ter bronca e até uns tapinhas ardidos. Mas fazendo isso o dente vai parar de doer?
Embora nenhuma resposta concreta tenha havido para tamanha dúvida, o menino passou a adolescente, depois virou jovem, prosseguiu adulto e envelheceu fazendo e desfazendo.
Pequenos pecados que lhe renderam, além de dor de dente, tendinite, asma, sinusite e outras dores. Assim como fases de desemprego, prestações atrasadas e sonhos nunca alcançados.
Eram, na sua concepção, castigos disfarçados de dissabores. E ele, para dormir tranquilo, tentava se purificar das maldades bobas que cometia dando a outra face. E mais tapinhas ardidos, como aqueles que a mãe dava, recebia da vida. Aliás, rotineiramente.
Já aquele outro, muito bajulado pelas professoras do antigo grupo escolar, como era antigamente, paparicado pela direção do estabelecimento e cobiçado pelas meninas que vinham de áreas mais nobres do bairro. Aquele virou político.
É muito falado. Tem notícias dele quase todos os dias na televisão. Corrupção, corrupção e mais corrupção. O Ministério Público vai atrás, a polícia intimida. Mas quando a coisa vai na Justiça emperra. E o fulano fica protegido. Nas próximas eleições receberá votos de avisados e desavisados. E se não for eleito será nomeado para alguma coisa que renda um bom salário e uma vida de faz nada. É assim, tanto na terra quanto no céu.
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