sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Uma ré sem defesa no dia do julgamento final

“A dona Margarete lutou tanto, coitada!” Exclamada com ênfase, a frase teve mais do que um sentido nos ouvidos da meia dúzia de pessoas ao redor. Seria um elogio à mulher?
Ou um sentimento de pena? Sim, poderia ser isso. Provalmente Margarete entregou-se a algumas batalhas cujas vitórias lhe daria o alcance de um objetivo nobre e importante. Mas impedimentos no percurso haviam tornado a meta inatingível.

Objetivos e metas, quanta distância entre dois pontos. Seguiram-se relatos feitos cochichos, com as mãos tapando as bocas para evitar que o som das falas propagasse acontecimentos mais íntimos a quem não devesse ouvir.

Que dona Margarete trabalhara desde cedo, ainda meninas de pés no chão, quando a família vivia com a renda de uma pequena propriedade rural. E isso se pode comentar em tom mais alto.

Que a mulher teve acesso à escola muito tarde, porque as tarefas domésticas, que incluíam os cuidados com os irmãos mais novos impediam Margarete de estudar. E este assunto foi dito em tom mais brando, como se fosse confidência.

Que dona Margarete, apesar do pouco estudo, sempre teve uma inteligência de dar inveja e por isso merecia atenção de todos nas conversas durante as reuniões festivas da família. “Ela falava de um a tudo como se tivesse estudado sobre o assunto”, diziam os parentes. E isso foi dito em bom tom.

Que a mulher, quando adolescente, desbancou muitas candidatas referenciadas na disputa de uma vaga de costureira numa indústria de confecções, porque as pessoas encarregadas da seleção levaram em conta a humildade de Margarete em admitir que nem sabia como fazer a máquina funcionar sem pedal, “mas é só eu ver alguém fazendo que aprendo rápido”. E nisso não houve cuidados quando se comentou.

Que Margarete, pouco mais de um ano depois, foi promovida a chefe das costureiras, pois além de produzir acima da meta nunca teve uma peça devolvida pelo controle de qualidade e mantinha relacionamento exemplar com as colegas. E este tópico mereceu tom alto e ouvidos atentos, com acenos de concordância da cabeça após exposto.

Mas havia uma outra versão deste epsódio, cuja manifestação foi feita restritamente, com as mãos feito conchas escondendo as bocas, as orelhas em pé e em sussuros: que Margarete tinha, sim, muita capacidade profissional. A promoção, no entanto, foi fruto de uma relação amorosa com o patrão que era casado. “Quer dizer, ela teve que fazer muitos serões para ser promovida a gerente”, cochicharam as três senhoras encostadas no pé do caixão onde Margarete jazia serena.

E como nesses encontros as frases ditas em voz mais alta raramente se completam por serem esquecidas na medida em que as conversas se avolumam, ninguém se preocupou em acrescentar complementos à exclamação inicial: “A donaMargarete lutou tanto, coitada!”

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