segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Conto - As coisas triviais e as outras nem tanto

A última vez parece ontem. Foi um tiquinho de tempo. Nada mais que um olhar de relance num algo qualquer que atravessou o caminho. Um momento de distração, para ser franco, quando se descuidou de um bem.
Ela sabia. Seria o fim de um evento que nem começo teve. Ainda assim apareceu radiante. Sorriu e falou com admirável propriedade. Expôs pretensões, mas nunca relacionadas a coisas comuns. Como o amor, por exemplo.

Uma viagem, um projeto acadêmico, uma meta profissional e assim por diante. Nada de sentimentos. Vida a dois? Dissimulou apenas, ao ensaiar que quando a teve não suportou. Justificou sem exigir que os outros concordassem que a presença física de alguém havia sido desgastante. Foi um aviso: conversa encerrada.

Debateu literatura como uma crítica literária. Em certos detalhes aprofundou conversa. Mas deixou capítulos inteiros em aberto, como se partes do livro tocassem em questões triviais e, assim, desinteressantes. Foi como folhear um grosso livro usando luvas de lã, quando as páginas passam de monte. E das folhas que viraram juntas nem todas falavam de amor.

Ainda assim elogiou obras em que os autores destampam cenários políticos sobre panos de fundo com epsódios de amor. Ou desamor. Mencionou “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera. Lembrou também de “Dr. Jivago”, cujo filme foi baseado em romance de Boris Pasternak. Pediu concordância que estes eram referência, numa forma delicada de sugerir que evitassem solicitar outros títulos.

Ninguém o fez, a mensagem foi compreendida. E ela continuou altiva, dominante, no centro das atenções. Por horas cativou, mas nunca se deixou cativar. Repeliu com certo humor e desdém elogios, principalmente quando estes tratavam de sua beleza e simpatia. Falou mais que ouviu e nem assim chegou ao descontrole. Brilhou até o último gole de vinho na companhia das pessoas.

Só depois, sozinha num quarto de hotel, desabou ao se ver longe daquele por quem ela imaginava poder confidenciar sobre coisas triviais e desimportantes, como o amor. Pudera! Foi a parte que ela se propôs esconder dele pensando ser estratégia certa. E ele julgou diferente e se foi sem dar chance de um começo.

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