segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Conto - Cerveja, cigarro e monólogo com o doutor

Sou um cara reto, doutor. Bebo um dedinho de vez em quando. Nada destilado. Só na espuma mesmo. O único defeito é que quando bebo acendo um cigarro. E depois vai outro e mais outro. E chega quando eu nem percebo que acendo na bituca porque nem carrego isqueiro. E sabe como é, doutor. Não gosto de incomodar os outros pedindo isqueiro emprestado.

Ah, quando eu fumava não lembro de ter saído sem isqueiro no bolso. Mas também eu não gostava de emprestar o meu. Era parar na frente da loja e acender um que lá vinha alguém pedindo emprestado. Se fuma tem que carregar isqueiro e cigarro, não é doutor?

Agora é assim. Só quando dou uma talagada de cerveja eu fumo. Sei que não presta, doutor. O senhor mesmo já disse que não faz diferença fumar um cigarro ou o maço inteiro. O mal é o mesmo. Mas é de vez em quando, doutor. Posso dizer que, se não fosse a cerveja, desse mal eu já estaria curado.

Mas é só de vez em quando, heim, doutor. Sou franco com o senhor. Aliás, devo a vida ao senhor. Depois que parei de fumar foi uma bênção, nem tem comparação com antes. Ando, subo, desço, jogo uma bolinha quando dá, corro ali e nada. Até consigo visitar mais a patroa e nenhum cansaço. Claro, depois que eu bebo cerveja e fumo o dia seguinte é um martírio. Daí é que eu sinto que o senhor tem muita capacidade. Amolece tudo, dá tontura, parece labirintite. Não sei como é que eu teimo ainda, né doutor? Mas o senhor tem razão. 

Fumar um cigarro e um maço inteiro não tem diferença não. Então que outro dia, na sexta, cheguei ao bar lá pelas seis e meia da tarde. Nem horário de verão era ainda e o escuro caiu cedo. Comecei com uma amarguinha só para abrir. Mas foi só para abrir mesmo, viu doutor? Um trago que não deu um dedinho. Engoli de vez e esperei descer.

Queimou, viu doutor. Depois que a gente desacostuma dói. Ardeu daqui da garganta até lá embaixo. Senti depois o corpo tremer e pensei que estava com doidura. E esperei um bom tempo para pedir a seqüência. Foi uns cinco minutos até eu chamar o dono do bar para ele abrir uma garrafa. E demorei para esvaziar a danada. Claro, não deixei perder o gelo, mas demorei sim senhor.

E naquela hora decidi que seria sem cigarro. Só geladinha. Mas depois de começar atrapalha tudo e a gente fica meio fraco, isso eu confesso. Nem lembro quando pedi o maço que só encontrei no bolso, vazio, quando cheguei tempo depois em casa. Também não garanto que fumei tudo sozinho, viu seu doutor? Eu acho que devem ter cerrado a metade. Impossível eu ter fumado tanto em tão pouco tempo. Só fiquei no bar até lá pela uma da madrugada.

E então doutor? O que dá para fazer agora? Mais exames? E olha que eu não exagerei mesmo, doutor. O senhor me conhece. Aquela recomendação que o senhor me passou na última consulta fica aqui na cabeça martelando. O duro é que pelo menos uma vez na semana tem que terminar a noite com amigos. E é quando chega a cerveja e depois o cigarro correndo atrás.

Ta certo, doutor. Semana passada foram três noites. Cerveja e cigarro atrás. Exagerei um pouquinho. Aceito que o senhor me reprove. Mas não é sempre assim. Semana retrasada foi apenas duas noites. Claro que na anterior, por causa do feriado, foi quase a semana toda. Mas agora estou normalizando, né doutor?
E então? O senhor não está dizendo nada. Só eu falo, doutor. O que eu faço com essa dor no peito? Deve ser coisa normal, né doutor? O senhor me passa um remédio e fico pronto...

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Crônica - Se o cão pensasse todos seriam loucos

 É sol de chuva. Quente e abafado, é cruel com todos: faz suar, respirar apertado, andar mole, prosseguir lento e suplicar por sombra. Ali na porta da repartição tem um cão. Boca aberta e língua de fora, ele se põe preguiçosamente bem onde as pessoas passam. Pachorrento, a sua indiferença parece um recado: os incomodados que façam o contorno.

Na calçada em frente tem gente subindo e gente descendo. Na portaria onde o cão descansa há quem entra e há os que saem. Ali é local de serviço. Apressados entregadores correm com encomendas. Impacientes motoristas vão e vem enquanto aguardam seus passageiros. Os serviços gerais, mais tolerantes, contam os minutos no ponteiro do relógio para ver quanto falta para encerrar o expediente.

O cão é imprevisível. Às vezes olha os que cheguem. Outras vezes está atento ao que passa lá longe e parece nem perceber que alguém se desviou dele num susto. Tem gente que chega sozinha e quieta, mas o cão encara sem qualquer ameaça.

A impressão é que ele tem apenas curiosidade. E quando se aproxima uma turma barulhenta, falando em tom de voz mais elevado que o de costume, nem imaginem que o cão se levanta temendo um confronto e preparando a defesa. Ele fica na dele.

Coincide certo momento de chegar ou sair pessoas quando o cão late. Mas descobre-se que sua manifestação foi por outras causas. E se vê lá adiante outro cão de rua invandindo o território do cão que faz o descanso na porta da repartição. A interferência dele é com a sua espécie. Os humanos, se o cão da portaria se importasse, que façam o que bem quiserem desde que não me incomodem.

Foi quando apareceu um grupo de autoridades, cercado de assessores, simpatizantes, puxa-sacos, aliados que traem, parceiros que camuflam e interesseiros. Um falando mais que o outro. Fazendo um zuado insuportável com palavras jogadas fora em falsos elogios, pedidos de comissões, quebra-galho daquilo, emprego para o cunhado e bobagens. Tantas...

E o cão nem deu licença. Deixou a turba passar espremendo-se na porta, fugindo de eventuais pulgas e com cara de nojo da pelagem suja do animal. O cão, olhar altivo lá na frente na defesa de seu espaço, se realmente pensasse estaria matutando: e esse povo ainda acredita nessa cambada de embusteiros...

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Crônica - Eu tô politicamente correto, pô...

Troquei de carro. A cor do outro tinha alta concentração do pigmento escuro melanina. O de agora até aparenta ser rosado devido a vasos sanguíneos sob a pele. O outro tinha de potência uns setenta e dois mamíferos hipomorfo da ordem dos ungulados. Este tem cento e dois, todos importados e devidamente quarentenados conforme manda a lei. É ração! Mas são trinta a mais puxando carroceria do mesmo tamanho e isso é politicamente correto.

Só que o manual do fabricante desprezou informação importante: seriam eles da subespécie Equus ferus, cujas fêmeas são as éguas, os machos garanhões e os filhotes potros? Aprofundamentos técnicos às vezes são dispensáveis. Mas seria politicamente correto não tê-los? Eis a questão.

E as portas? O outro tinha apenas duas. Este tem quatro. Os corretores e as lojas de revenda argumentam, na hora da negociação, que quatro portas tem mais saída. Assim, em caso de sinistro, se não der para sair pela frente, pula-se o banco e foge-se por uma das portas de trás. Pensei também entrar na era do câmbio automático. Mas o carro disponível estava com defeito. Só tinha dois pedais...

E aquela árvore que plantei no terraço do prédio? Tive, infelizmente, que derrubar. É que as folhas esconderam a lâmpada-piloto, aquela que avisa o comandante do avião que aqui embaixo tem um prédio com gente dentro, pô! E veio a fiscalização com uma notificação politicamente correta: corta, recebe multa ou transfere a planta para o quintal do vizinho ambientalista... fiz o que era melhor. Como é que eu ia replantar o abacateiro carregado bem onde o vizinho guarda o carro?

E fui saber o que é o sistema de cotas. Disseram que não consta nada em relação aos amarelos. Insisti. Falei do sushi e do sashimi, perguntei se já haviam provado tsukemono. Responderam que só gostavam de lombinho de porco agridoce. Politicamente correto, esclareci que este prato não é do Japão. É chinês, pô! E porco não se come. Se lava, pô!

E na conversa com a moça do guichê? Usei palavras adequadas, em tom formal e convincente, fala devidamente pausada nas vírgulas e nos pontos. Caprichei na exclamação e enfatizei a interrogação. Quando terminei o discurso e abri os olhos a moça estava lá fora fumando um cigarro.

E assumi também postura mais coletiva em relação aos vizinhos. Chamei a mulher do 904 no canto, ao lado da porta do elevador, e recomendei que ela tivesse cuidado com um tal de Pedro Bial. E a senhora perguntou o motivo. Informei que o indivíduo invade as casas das pessoas com um bando de mulheres sem roupas e um grupo de homens que ficam de olho nos outros homens. E nisso passou o vizinho do décimo quarto. Sabe-se lá o que ele fazia a pé na escadaria. E mandou ver com um recado: estávamos discriminando gênero e o nosso destino seria o fogo do inferno durante o Valentine’s Day. Inglês aqui não, pô!

E fomos ainda ensinar à filhinha da mulher do térreo uma cantiga. Para contribuir com o resgate de uma brincadeira antiga. Cantei um trecho do atirei um pau no gato-to-to e a fulana da mãe me deu um sermão de vinte minutos na frente da viúva do 501, aquela por quem eu tinha um apreço. E ela, a viúva, politicamente incorreta debochou tanto da gente que o botox perdeu o efeito e escancarou umas rugas grossas no rosto quando ela gargalhou. Pô...

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Crônica - Duas palavras para reforçar o amor

Quem dera fosse eu um poeta desses que mancham com a essência da alma a folha de papel. Imagino que teria como mudar a curva do rio para este lado, à direita do grande arbusto que daqui o vemos longe, para que sua sombra fosse possível às nossas intenções.

Tornaria a água cristalina e cataria pedras toscas do leito, fazendo delas jóias preciosas a ornamentar o seu jardim. Buscaria os pássaros e construiria rimas com os seus cantos. Pintaria a velha casa de madeira da cor dos seus cabelos. Enfeitaria o seu pomar com frutas suficientes ao nosso deleite.

Mais adiante usaria as palavras para traçar um caminho de terra ladeado de flores e grama. Dispensaria a métrica. Seria um poema concreto com versos que falam e não se declamam.

E as flores seriam o seu perfume. As folhas reservariam orvalho para a sua sede. A mancha verde da vegetação rasteira serviria como lençol. E a minha alma traçada no papel seria o sinal do meu inegável apreço, como se nele apenas eu houvesse escrito: quero você.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Conto - O amor platônico é a marca que fica

Foi um amor platônico porque não aconteceu. Nunca houve beijos e afagos. Mas sobraram vontade e intenção. Nada mais além disso, pois as portas da possibilidade se fecharam sem estrondo, porém rápidas.

Cecília sabia disso e aceitava. Nas aulas de filosofia omitia-se quando o tema versava sobre essas coisas. Amor socrático. Ou amor platonicus, como se utilizava lá, muito longe, nos séculos passados. Em ambos os casos, o amor sem motivo para o pudor. O amor da amiguinha pelas amiguinhas. O amor do amiguinho pela amiguinha. Podia ser o amor da mãe para o filho. Ou do filho para a mãe. Enfim o amor sem pretensão física, de irmão para irmão, colega para colega. Na palavra espetada e direta, amor sem sexo.

É, porque há quem diga que uma coisa tem a ver com a outra. Cecília, porém, tinha um conceito muito bem alicerçado. Em circunstância normal rebatia com firmeza a todos que se referiam ao sexo como amor. Do tipo, fiz amor com o meu namorado. Ou a minha namorada queria fazer amor comigo ontem. Como se o amor fosse algo a ser feito. Amor é sentimento. Sexo sim, se faz.

Às vezes Cecília até aceitava quando alguém dizia que sem amor não havia como ter sexo. Mesmo admitindo que este tipo de fala é discursivo. Pois se não houvesse sexo sem amor a prostituição iria à falência. Isso é coisa só de homem? Cecília era uma pessoa de bom senso. Para ela, a necessidade física confundida como amor é comum a todos os gêneros. A diferença é que a mulher é mais segura e, portanto, controlada. E muitas vezes essa postura é reflexo do que a própria sociedade pensa: quando o assunto é sexo, mulher não pode fazer o que o homem faz.

Isso era o cúmulo para Cecília. Pensamento arcaico e discriminatório. Postura de atrasados. Cultura de rodapé. Ela mantinha que mulher faz e pode sim senhoras e senhores. Mas desde que por vontade e ciente que vai extrair daquilo resultados desastrosos. Como o nojo por ter encontrado um parceiro porco. O vício pelo fato do parceiro ter sido satisfatório. O medo porque o parceiro não soube quebrar a dor com o prazer. E enfins.

No nível dela, Cecília, uma moça de pouca leitura, músicas de emissoras FM e filmes de televisão, poderia se dizer que eram conceitos avançados. A própria defesa dos direitos iguais, inclusive na prática do sexo, era demonstração disso.

Mas perpetuou-se que a teoria era tanta que a prática sempre dava em frustração. Cecília curtiu um amor platônico por um rapaz por quase um ano. Ela nunca se declarou. E quando ele se foi por algum outro motivo Cecília se tocou que havia perdido muitos beijos, abraços, afagos e sexo do melhor por ter cultivado um amor que não é transformado em acontecimento. Soube-se, tempos depois, que o rapaz nunca desconfiou do amor platônico de Cecília por ele. Aliás, ele sim tinha um sentimento platônico por ela e, por isso, a considerava como uma irmãzinha.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Conto - Quando a loira Luciana se chama Antônio

Nem a lua da unha Marina enxerga hoje. As mãos estão sem trato e adquiriram uma aspereza irritante. Parecem encapadas em luvas de lixa grossa, tão salientes que dariam para alisar os calcanhares que não permitem mais o uso de sandálias.

Há certa consciência sobre o descuido físico. Marina relaxou a partir daquele momento. Entregou-se ao desmazelo de si própria. Permitiu que a manta da estima chegasse ao chão por motivo banal, o amor, como disseram pessoas próximas.

Deu motivos para comentários inclusive irônicos. Maldosos, houve quem perguntasse sobre a situação das axilas, que esconderiam tufos de pelos. E das outras partes, sem as depilações que eram rotineiras, imaginaram que houvesse uma mata.

Comentários de gente sem ter o que fazer. Pessoas que procuram desgraça para alimentar boatos. Ao ponto de dizerem que ela tinha buço, aquele bigodinho marcante que se esconde com um bom produto de maquiagem e acertos da face.

Marina namorou Camilo por dois anos e uns sete meses, se contar que tudo começou num jantar de confraternização de fim de ano que reuniu afetos e desafetos de um mesmo ambiente de trabalho. Loucura esse tipo de acontecimento. O sujeito briga o ano todo com colegas e depois é obrigado a trocar presentes.

Oficialmente o namoro foi de pouco mais de um ano e meio. Em seguida o noivado. E já se falava em casamento. E olha que Marina nunca foi de se desprezar. Morena, estatura média, cabelos exageradamente lisos depois da chapinha, mas ajeitáveis sem ela. Nem gorda e nem magra. Um tipo apresentável. Dependia da roupa que usava, mas às vezes chamava atenção.

O próprio Camilo dizia que Marina era um tipo de mulher que fisicamente não tinha aquela belezura de endoidar. E se gabava pela parceira não ser daquelas de resvalar em libidos. Para o noivo Marina era apenas bela, ajuntando belezas do corpo e da alma.

Parecia uma relação consistente. Beijinhos de despedida de manhã, telefonemas na hora do almoço, abraços e beijos no encontro do final de expediente, benzinho pra lá, fofinha pra cá, flores, restaurantes e planos do tipo de gesso para a sala de jantar.

Até que surgiu Luciana, nova vizinha de frente do apartamento onde Camilo morava no décimo segundo andar de um condomínio de classe média. Loira, alta, corpo de modelo, olhos azuis quando o sol batia de frente e verde quando se punha atrás das nuvens, esta mulher de uns quarenta e poucos batia realmente em muitas meninas de vinte.

Camilo era do tipo galanteador e metido a besta. Se com as vendas da empresa fazia uns mil e oitocentos de comissão, nas conversas com os vizinhos multiplicava por três, no mínimo, além do fixo, só para dizer que estava estabilizado. E Luciana vislumbrou um bom partido.

Coincidências no elevador para catar o molho de chaves que ela deixava cair, encontros inesperados na garagem do prédio, idas ao supermercado próximo no mesmo horário e batidas na porta para emprestar chave de fenda, trocar uma lâmpada ou desligar o chuveiro que estava com problemas tornaram-se rotina.

E foi mesmo no banheiro de Luciana que Marina pegou Camilo. Lá estava ele, de bermudão e sem camisa, acertando a temperatura da água de Luciana, que na verdade se chamava Antônio e sem a peruca era um ruivo siliconado.

Foi o bastante. Marina, que sustentava até a possibilidade de ser traída pelo parceiro por qualquer outra morena, já que Camilo sempre dizia que detestava as loiras, não suportou ser trocada por um homem. E relaxou. A ponto dela mesma admitir que a partir daquele epsódio só namoraria com outra mulher. E olha que aquela vizinha da esquina em frente anda falando que Marina dá um bom caldo.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Conto - Jogo de bola quadrada e de casca grossa

Veio uma bola quadrada e bateu de quina no peito do zagueiro. No rebate ela arredondou, mas foi no pé esquerdo do atacante adversário que aliviou, escorou e levantou para o outro lado, onde o lateral direito descia fugindo do marcador.

Era um jogo de correria. Lances rápidos e certeiros do outro lado. Vacilos pra cá. De bola tocando a canela e fugindo. Aqui ela vinha quente, queimando. E não havia quem a controlasse. Lá ela deitava submissa e sentia o chute como uma carícia.

Aos vinte e sete do primeiro tempo teve um lance estranho. Ela veio no chuveirinho e nem zunia. Apenas se oferecia para ser deitada suavemente na grama, até ser devolvida para o goleiro.

O nego, confiante, subiu para aliviar a trajetória e até planejou um enfeite. Aliviaria a pressão da bichinha pouco acima da testa e faria ela rolar pelas costas, de forma a chegar ao calcanhar, ser rebatida com destreza e lançada por cima, lá para o meio do campo. Ele chamava aquilo de bicicleta invertida, embora fosse uma chaleira.

E veio a bola descendo no rumo do côncavo da cabeça, bem no meio. Era certeza de jogada certa. Mas não é que a bichinha entortou a três palmos e pegou de lado, quase no olho direito? Foi um susto e depois o tempo para recobrar a consciência. Já desperto nego viu o seu goleiro pegando a bola quase em cima da risca. Ao lado os companheiros cuspindo, amaldiçoando, mandando ele ir para o chuveiro. Lá adiante a torcida quieta, feito platéia de funeral.

E nego, lá sozinho, levantou a saia da camisa larga e desengonçada para limpar o suor do rosto. Ou esconder a cara. Depois do jogo levou para casa a goleada do time adversário por 7 a 2 sobre a equipe da casa. Dizem os mais calmos que apesar da falha no primeiro tempo ele defendeu bem e não foi o responsável por nenhum dos gols sofridos. Mas os radicais não perdoaram. Nada falaram a ele durante o banho. Os olhares de desconsideração é que disseram tudo.

No caminho a pé até a casa de um bairro simples, nego percebeu a quietude solidária da mulher. Mas o filho, franco e pronto, tentou aliviar: “Pai, aquela bola desceu como se fosse feita de cimento. Não tinha mesmo como dominar”.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Conto - Acender a esperança e esperar...

Ela telefonou hoje para ele. Depois de muito tempo e espera. A ausência durou algumas temporadas de chuva, veranicos em pleno inverno, mudanças abruptas de temperatura e angústia.

Ele conferiu por meses o registro de chamadas perdidas no celular. Havia a expectativa de uma ligação não ter sido percebida. Remexeu a caixa de entrada do e-mail caçando mensagens que não foram enviadas. Chegou a pensar em desistir de esperar.

A ruptura foi drástica. Ela partiu decidida a seguir em frente e ele era o atraso, a volta para o ponto de partida de um círculo. Sair de um ponto e chegar ao mesmo lugar depois de uma torturante caminhada, assim ela havia classificado a relação com ele.

Isso foi dito de um jeito a evitar réplicas. Qualquer direito de resposta seria uma vã tentativa. E junto o recado quase explícito dela: não telefone, não mande mensagens, não passe em frente de minha casa e se me vir na rua faça de conta que não percebe.

Ele agüentou o quanto pode. Por dias, semanas e meses conteve a necessidade de ligar, escrever, visitar, ver, acariciar, ser, mostrar que a queria de volta. Rascunhou mensagens e deletou. Apertou nas teclas do celular os dígitos que formam o número dela e cancelou. Ousou fazer o percurso que levava a ela e andou até quase lá. Procurou-a em locais onde ambos se viam e até confundiu pessoas que se pareciam com ela.

E quando fraquejou foi consciente. Mandou a ela uma música que é um pouco daquilo que ambos experimentam longe um do outro. Fez isso sabendo que acenderia nele próprio uma esperança perdida. Mas, quem sabe... e fez isso correndo o risco de um silencia dela.

Hoje ela telefonou para ele, que ainda não sabe se ela entendeu o recado quase explícito na letra da música. Mas ouvir a voz dela e perceber o tom brando é motivo para esperar. Quem sabe...

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Crônica - O silêncio é a balbúrdia dos solitários

Dei-me ao direito de ser egoísta na hora do almoço. Elimine, por favor, qualquer possibilidade de prato cheio, carne de primeira tirada quente da grelha, fartura na salada e caloria transbordando da bandeja. O que escolhi foi o silêncio do ambiente de trabalho num momento de solidão. Ninguém na escrivaninha da frente. As mesas do lado estão vazias. Nenhum rangido da porta.

Este direito estende-se, inclusive, às contradições e choques de conceitos. Como definir a solidão ao isolamento justo quando tanto se diz que tendemos a ser solitários no meio da multidão. Estar só, portanto, não quer dizer que escapamos da balbúrdia, que nos atormenta a seu modo, sem pedir licença e marcar data e hora. Disfarçada, costuma nos visitar nas madrugadas travestida de insônia.

Foi a esta balbúrdia que me entreguei em troca da refeição do meio do dia. Egoísticamente e sem pudor, fazendo daquilo um deleite. O barulhoço interior tinha que ser só meu. Eu e os meus fantasmas escorados no encosto duro da cadeira, sem onde descansar as pernas e a necessidade de adormecer, misturado com o temor de ser importunado numa hora especialmente individual.

Não há improviso que compense. A cabeça pende para trás e o pescoço dói. Os olhos querem fechar, mas o cérebro acorda ainda mais. Ele traz as fichas de cada situação, com anotações em destaque dos erros e acertos. Nomes, instantes, fisionomias e sensações aparecem cobrando o que não foi feito e o que se fez além do que devia ser.

São notificações feitas com rigor por aquele eu que está quase em transe, num estado estranho entre o adormecido e o desperto. Muito diferente do fim do sonho ruim, quando damos graças por aquilo ter sido apenas um pesadelo. Aqui é o contrário: queremos dormir, mas temos medo de perder o instante.

E se num vacilo ele se for, não teremos como analisar as nossas fichas e arquivá-las depois numa ordem que nos permita acesso e reflexões sobre o que fomos, o que somos e o que queríamos ser. É capaz de essa perda significar uma eterna fuga, quando sabemos que chegará o momento de pararmos para olhar o passado sem temor.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Conto - Água e esfregão só eliminam manchas

O café derramado na camisa branca nem mancha deixou no tecido. A peça foi lavada com urgência, na unha, com o esfregar típico de mãos firmes que eliminam o encardido mesmo que as mãos enruguem com o excesso de água.

Foi um acidente, esta seria a explicação conveniente. Na verdade, um esbarrão de passagem. Mas é de se considerar que havia espaço suficiente para dois corpos se cruzarem sem atrito. O líquido preto e quente espirrou na batida e caiu na altura dos peitos, descendo escuro pela barriga.

Alguém viu de longe a cena e imaginou que era uma agressão: em vez de um soco, uma copada. Elizabete nega ter havido intenção. Aliás, ela garante não lembrar de nada. Admite que estava com muita pressa e diz que não sabe se estava com o café na mão. Nem imagina ter esbarrado em alguém. Portanto, desconhece ter sujado a camisa branca de Leandro.

Ambos mantinham um namorico, algo que começou com uma palavra, passou para duas, subiu para três e ganhou jeito de capítulo que nunca acaba. Antes secreto, aquilo passou a ser percebido mesmo antes da admissão de ambos. E vieram as conversas maldosas, as ironias e as insinuações a espetar o sossego do ambiente.

Como também as provocações. Tanto Elizabete quanto Leandro passaram a ser mais assediados por colegas. Eram formas de trazer a situação à tona por descuido de um dos dois. Diríamos que Elizabete passou a receber cantadas, na cara dura, de homens que ela nunca havia percebido se interessarem por ela. E Leandro até abraços mais demorados passou a merecer de algumas meninas.

Mas os namorados secretos decidiram segurar-se sobre a onda, embora aceitassem que algumas provocações iam longe e criavam constrangimentos e até ciúmes. O café na camisa branca foi resultado disso.

Eleonora provocou Leandro com um beijo no rosto dado sem ocasião que o justificasse. Elizabete viu e ficou cega. Partiu em direção aos dois com o firme propósito de acabar com a palhaçada. E nem precisou de um esbarrão para fazer o líquido espirrar do copo plástico. Ela só errou o alvo. O café era para atingir os dois, mas só Leandro ficou manchado.

Sorte que a água devolveu a alvura ao tecido. O duro foi o rapaz ser acusado de ter dado mole à colega que o beijou na face, quase na boca. E faltou mesmo muito pouco, nisso Elizabete tinha razão.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Conto - É tanta paz que até causa incômodo

Marluci dizia que a paz era uma situação utópica quase no ponto de atingir solidez. Reforçava que era como fazer um bolo: acertar na quantidade de ingredientes, bater no tempo recomendado e errar na temperatura do forno. O bolo estufa acima da borda da forma e depois achata. Fica um pudim estalado no prato.

Definição estranha o dessa menina. Cabia alguém questionar a que paz ela se referia: estabilidade financeira, carro com revisão feita, casa devidamente organizada e limpa, amor aos delírios ou emprego garantido? É muita paz. Mesmo que apenas metade desta lista batesse, poderia se dizer que o ideal estaria no ponto.

Ontem ela relacionou causas e efeitos durante conversa com as amigas da universidade ao redor da mesa de um ambiente requintado. Fez uma narrativa segura usando de argumentos precários, mas convenceu aquele público.

Do tipo: o carro que o pai deu de presente é completo, mas o asfalto da cidade não ajuda; as finanças não preocupam, pois a família deposita a mesada sem atrasos e com reajuste muito acima da inflação – o que enche é a greve dos bancários; a casa a empregada deixa em dia, no entanto a vizinha do andar de baixo insiste em deixar pela fresta da porta recados deselegantes sobre o barulho de saltos altas horas da madrugada; o amor vai se levando, mas é complicado administrar a lista de pretendentes sem criar constrangimentos; e o emprego, depois da formatura o pai dá um jeito, mas será um saco providenciar a papelada para o registro no conselho.

Com tantos senões, realmente é compreensível Marluci ser uma desiludida com a paz. São tantos os incômodos que é de dar pena. Teve naquela conversa um momento de mais fogo. Marluci chegou ao stress quando uma das amigas perguntou se o bolo que ela comparava à utopia era um exemplo extraído de situação própria.

A menina fez aquele jeitinho de indignada e respondeu que nem pensar. Completou a cena com um beiço, virou a cara e só então explicou que era apenas testemunha desse desacerto culinário. A mão na massa era o da empregada e o bolo que virou pudim foi para o lixo depois de um sermão naquela pobre que nem para a cozinha presta.

Mais stressada ficou quando uma colega meio distante, daquelas que não entram no círculo de amizade, passou por ali e com firmeza e voz alta cumprimentou: “Tudo bem com você, Marluci? Há quanto tempo...” A fulana ficou sem resposta e nem o tradicional beijo na face mereceu. É que Marluci, para os mais íntimos, é Malú. E vem aquela chata anunciando para todo o mundo, num lugar de alto nível, que o nome da nossa personagem é Marluci. Como as pessoas gostam de acabar com a paz das outras. Que coisa...   

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Crônica - A quem me ensinou a desenhar letras

Bom dia dona Marilda! Acordo apertado por uma curiosidade: quantas pessoas aprenderam a ler e a escrever com a senhora? Veja que o ser humano, às vezes, tem que ser espetado com força para saber valorizar coisas importantes do passado. Confesso que é assim também comigo. Só me veio a indagação porque conferi no calendário colado à cabeceira da cama que hoje é 15 de outubro. Sim, Dia do Professor, isso nunca esqueço.

Então me pus a relacionar nomes de todas as pessoas que na minha vida escolar ocuparam a mesa em frente da sala de aula, com o quadro-negro às costas. Redesenhei perfis e momentos com muito critério. A hora da chamada, os instantes de fúria com os alunos bagunceiros, os óculos sustentados pelo nariz, a indignação pelo flagrante de uma cola, as estratégias diante da lousa para surpreender a turma que fazia guerra de papéis enquanto a professora ou o professor ficavam de costas.

Olha, dona Marilda! Tem nomes que não recupero. E sem nomes me fogem as fisionomias, o tom da voz, o jeito de lidar com a turma e muito mais. Fica uma vaga, como se eu tivesse pulado direto por aquela série. Tenho a impressão que esse esquecimento é um efeito psicológico: mestres que nada me acrescentaram estão fora do meu arquivo.

Sim, porque as professoras e os professores que consigo resgatar ou são merecedoras e merecedores de um apreço especial ou de uma raiva que não é aquela que machuca. É uma raiva que não consigo definir se é de mim mesmo. Verdade, dona Marilda! Não abrando e nem santo sou para posar de arrependido pelas travessuras que aprontei.

E me chegam alguns nomes: a professora Ana escolhia os meninos e as meninas mais bem vestidos para apagar a lousa, buscar giz na secretaria, chamar a diretora para a sala quando preciso. A professora Denise era diferente: nunca percebi preferências nela. Também nunca a vi sorrir. Exceto as diferenças físicas, a professora Conceição é outra que na consigo resgatá-la sorrindo. Como também tratava cada aluno com igualdade, inclusive os bagunceiros. Mas a professora Denise era mais baixa e gorda que a professora Conceição, exageradamente magra e bem mais alta.

E Edezina? Séria, mas nem por isso poupava o sorriso leve e meigo de vez em quando. Magra, quase mulata e de estatura média, conquistava sem fazer exageros a simpatia da turma. O professor Juliano tinha o perfil de um autêntico mestre. Mas aproveitava alguns momentos de descontração para falar de seu filho, o goleiro Ado, que chegou a fazer sucesso num grande time de São Paulo e foi convocado para a Seleção Brasileira.

Na mesma época veio o professor Olympio, com uma frase de costume manifestada após as perguntas respondidas pelos alunos nas argüições. Quando a resposta estava certa, o professor dizia: “Quem sabe o mal que se esconde atrás dos corações humanos”. No caso de resposta errada, ele perguntava: “Tem certeza?” E se o aluno respondia que sim, o professor Olympio completava: “Confessou, azarou...”

Já na faculdade, puxo o arquivo e trago os nomes da professora Luzia, da Sonia, da Maria Rosa, da Leange, do Chico, da Linda, do Robério, do Romélio e assim vai. A Linda um dia escreveu na minha prova que não era para eu ficar papagaiando. O Romélio, de curta passagem pelo curso de Comunicação da UEL, um dia me chamou num canto e disse que o meu texto era comunista. O Chico me levou para o primeiro emprego no jornalismo. A Leange me ensinou a diagramar no papel. A Luzia foi uma grande incentivadora.

Então, dona Marilda! Acha que o primeiro nome que citei é o seu por ter sido a minha primeira professora? Está enganada, isto seria muito simplista. Ainda tenho a imagem daquela professora jovem e determinada ensinando cada aluno da turma a desenhar as primeiras letras. E foi preciso uma data comemorativa para eu lembrar da senhora...


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Opinião - Circo sem pão e sem arte é palhaçada

Sem lona e nem pipoca, o circo eletrônico do entretenimento é um aparelho de TV. Não há como se mencionar a velha frase aplicada aos casos e eventos relacionados ao uso da comida e do lazer em troca de vantagens, como os votos na política, por exemplo: pão e circo e ganha-se uma eleição.
 
O circo eletrônico, ao contrário, cobra mais do que oferece. Ou cobra e pouco ou nada oferece. E quem tem acesso aos seus espetáculos gasta na compra dos aparelhos receptores dos sinais de televisão, na energia elétrica consumida, no conjunto de sofá e poltronas a ser pago em parcelas mensais, no teto que abriga os equipamentos e os telespectadores e, com voraz ganância, explorando os proprietários de linhas fixas ou de celulares que atendem os apelos das grandes redes para doar, participar, votar, opinar e, enfim, participar de algum programa pagando para isso o custo de uma ligação.

É a falsa e besta interatividade. E aqui a pergunta: besta é quem cai na conversa e enriquece as redes de televisão e as operadoras telefônicas? Ou besta é quem engana descaradamente o telespectador com esta interatividade idiota?

Aos domingos, um apresentador de uma das grandes redes de TV chama praticamente todo o cidadão comum de babaca. Faz isso em troca do seu salário de muitos zeros, que passa da casa de um milhão de reais entre o fixo pago pela emissora que o contrata e a participação proveniente dos patrocínios.

Para este apresentador, é babaca o trabalhador que aos domingos veste-se com uma bermuda e entre um número sem graça do programa que ele apresenta e outro número ainda mais sem molho tira um cochilo. É babaca quem o assiste porque ronca enquanto cochila. É babaca o trabalhador que leva um tombo e entra na videocassetada. É babaca a mulher gorda, o homem barrigudo, a criança que não tem condições de um bom tratamento dentário e está banguela. São babacas todos os brasileiros. E há milhões de aparelhos de televisão sintonizados no programa dele. Portanto, babacas que o sustentam com um salário milionário.

O circo sem pão e sem arte não é só isso. O telespectador precisa saber que na mesma rede as tardes de sábado são recheadas de casos chorosos, de pobres que tem carros recuperados, casas reconstruídas, empregos arranjados e outras coisas que surgem como milagres. Não existe apresentador santo. Existem patrocinadores que pagam além do salário do apresentador os prêmios oferecidos. E o telespectador precisa ter consciência que alguns patrocinadores são do poder público, principalmente bancos estatais. É, portanto, dinheiro público pagando mentira.

E nem é preciso falar dos reality show, como os BBBs e os A Fazenda. São programas que dão lucros exorbitantes aos apresentadores, as emissoras de TV e as operadoras de telefonia, expondo os inconscientes participantes ao ridículo e fazendo de conta que nos oferecem atrações. É circo sem pão e sem arte, mas com muita palhaçada. E nós, babacas, pagamos por isso achando que estamos ganhando muito em troca. Nós suamos para pagar isso. Eles riem do nosso suor e ironizam as marcas molhadas que aparecem nos nossos sovacos.


quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Conto - O coitadinho é pobre, feio e tão carente

A vida lhe deu bordoadas, isso é sabido. Vê-se na expressão que pula de segundo a outro do matreiro ao angustiado. Os olhos carregam no tom questionador, mas há quem confunda estas mudanças.

Faz um tico de tempo e uma dessas manifestações equivocadas sobressaiu. Disseram, algumas mulheres, que ele tem cara de tarado enrustido. Chegaram a afirmar que é daqueles que assombra, amoita e fica pronto para dar o bote. E que quando agarra a presa vai às profundidas e arma no coração dela uma sobrecarga que pode levar ao circuito.

É muito folclore, embora ele tenha lá o seu jeito de lidar com as mulheres. Começa com a postura de coitadinho, aquele com o coração despedaçado de tanta solidão. Carente, e isso é muito verdade, como reflete a cara tristonha de pedinte de amor e compreensão. E de repente surge ela, a presa, disposta a catar cada pedaço daquele coração desmantelado e colar, pacientemente, tratando de acertar com a lixa fina do apreço qualquer saliência que denuncie os reparos. Então ele age.

Que injustiça. Também disseram outras que ele é um maníaco. Que depois da conquista apressa-se no descarte. Que satisfeito com estas sequências vangloria-se intimamente e despreza-as, como se nada tivesse acontecido.

Tudo mentira. Ele é um sujeito singularmente acomodado nessas coisas. Mas admite que é sucessivamente incomodado por assédios femininos e, na fraqueza, cede. Garante que nunca percebe quando a coisa acontece mais ou menos assim. Ele, uma pessoa simples, pobre e feia, entrega-se às mulheres como um amigo sem mais pretensões. De repente, sente-se envolvido e amarrado aos sentimentos delas, que solicitam amor. E sem saída sucumbe.

Versões tantas. Cá entre nós é possível acreditar nas duas partes. Na delas cai-se fatalmente na do come quieto e ele é bem isso mesmo: arma com jeitinho e manda ver. Na dele é por ser muito compreensível mesmo: o cara é realmente pobre do bolso, feio de rosto e nem músculo para elas admirarem existe naquele corpo.

Sobra então a terceira parte, esta confidenciada por uma amiga: o cara tem uma alma rica de conteúdo. E nos afagos faz qualquer uma tremer de ponta a ponta enquanto vira os olhinhos. E lá vai ele, achando-se vítima daquilo que ele chama de bordoada após cada telefonema de uma delas reclamando da falta de assistência.

  

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Conto - E foi-se o querer de Sebastião por Doroti

Eu vi Sebastião andar a conversa em círculo para falar a Doroti que sentia algo por ela. Era um vai não vai de palavras enroscadas que não chegava à frase. Brecava muito antes de ter rumo porque a razão fugia. Dava um branco no coitado que até eu, se pudesse, entraria no meio daquele assunto para clarear e dar vazão para o que ele queria dizer a Doroti.

Sebastião até cogitou receber treinamento comigo. O que eu pude ensinar transmiti, sei não se ele entendeu: Você estufa o peito, Sebastião. Faz de conta que ali está uma riqueza que você tem que conseguir de todo jeito. Se perder não há de encontrar outra. Se ganhar está com o futuro feito. Assim eu disse a ele, Sebastião.

E ele perguntou se era só isso. Imagine, Sebastião. Estufar o peito é só a pose. Mas estufa o peito feito um pombo que fica aquela bola quase no pescoço. E depois tem que falar. Então Sebastião quis saber o que falar e como. Mas de que jeito é que se conversa, Sebastião? Tem que falar o que está sentindo na hora de abrir a boca. E tem que tirar do coração, puxando com a respiração, sabe? Igual tirar ar do pulmão, tem que dar sentido na frase enfiando a mão lá dentro e esticando pra fora.

O problema é que Sebastião dispensou ensaiar o ensinamento. No horário combinado para a conversa definitiva com Doroti, já que ela já estava descrente de alguma pretensão por parte dele, Sebastião desceu garganta abaixo duas latas de cerveja e de tira gosto mandou três sardinhas fritas daquelas vendidas no bar do Afonso. E foi limão esprimido e muito sal junto.

Na hora Sebastião tentou puxar lá de dentro mas errou de onde. Foi um arroto bem no momento que baixava expectativa. Eu só vi Doroti sair correndo. E como xinga aquela danadinha...  

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Conto - O amor deixa marcas se não acontece

A última mensagem pediu um tempo. Tentou esconder no pedido de desculpas pela ausência um não vai dar. Mas as palavras e as entrelinhas foram entendidas. Como desfecho, a promessa que alivia o tom da despedida e não se cumpre; “Depois eu telefono...”

Faz muito tempo. Difícil saber se Letícia ainda espera. Às vezes ela estremece ao sentir a vibração do telefone celular na bolsa. Diariamente confere os e-mails que chegam na caixa de entrada. Justifica para si mesma que são hábitos. Resquícios de um tempo e de uma circunstância cuja herança ainda mexe e atormenta.

E se viesse uma ligação ou uma mensagem, qual seria a reação? Atender ou responder como se houvesse normalidade poderia ser vã tentativa. A voz denunciaria algum sentimento. E escritas, as palavras evidenciaram abalos.

O primeiro amor é eterno. Será? Letícia aceitava isso mais como uma concordância de conveniência nas conversas com as amigas. Recurso para encerrar assunto e falar de outras coisas. Mas o tema sempre tendia a ficar, encompridando, largando rabos que incomodavam.

Se bem que aquele tempo solicitado havia se perdido. Tanto que Leticia experimentou novas relações e nelas até se permitiu mais. O primeiro amor foi de beijos ardentes e afagos. Nada mais. O segundo foi mais. E mais ainda o terceiro, todos deixando marcas que não foram somente sentimentais, pois a sensação física foi intensa e presente.

Depois, um branco. Como se aquilo que se deixou para trás fosse um evento de momento. Então por que aquele namoro sem desfecho nos cantos escuros dos quintais pertuba tanto ainda?

Foi, na verdade, quase um amor platônico. E este costuma deixar rabisco grosso e extenso justamente porque não aconteceu. Talvez seja isso, pensou Letícia no justo momento em que conferiu o telefone e a caixa de entrada para ver se havia mensagens.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Carta de um pai criança aos filhos adultos

Desculpem crianças! Este não é o meu melhor texto. Até tentei de outras formas, mas diante de vocês sinto a minha capacidade de escrita reduzida. Eu, que sempre vinculei o conteúdo da redação ao sentimento de quem escreve, emperro agora nas vírgulas, estes sinais tão corriqueiros e normais. Os parágrafos fecham devagar e invariavelmente tem que ser refeitos. Troco palavras e altero a estrutura da frase. Nada me convence.

Imponho-me, portanto, uma condição: será da maneira que sair e na forma que a espontaneidade permitir. Prometo que serei coloquial, embora receie fazer uso de palavras que são do meu tempo e soem estranhas e distantes para o vocabulário de agora.

Pois é. Seria tão fácil um diálogo... se tivéssemos insistido com aquela relação do passado eu pouparia esta carta. Conversaria, olho no olho, sobre as coisas boas e ruins. Os assuntos seriam variados e até divergeríamos em alguns sem constrangimentos e medo de contrariar um ao outro. Como nas brincadeiras de bola no campinho do bosque próximo de casa. Ou nos passeios familiares de bicicletas, cujo percurso dependia de muitas discussões para ser definido.

Duvido que vocês sintam hoje em dia a mesma nostalgia que eu. Na verdade a culpa é minha. Na medida em que vocês cresciam eu fui me afastando, preocupado com o nosso futuro. O financiamento da casa em aberto, a necessidade de ter um carro, a possibilidade de melhor emprego, a luta diária por mais renda foram me afastando das coisas simples que repartíamos nas horas de folga.

Ao mesmo tempo eu passei a enxergá-los como adultos. Fiz de você homens e mulheres precocemente feitos para as batalhas da vida. Deixei de comprar brinquedos ao supor que não havia sentido presentear adultos com coisas de crianças.

Sim, joguei responsabilidades e me portei como um gerente. Esqueci de administrar o outro lado, aquele mais frágil, feito um laço a enfeitar um pacote de presente. Puxado por uma das pontas ele se desfaz e sobra uma fita. Qualquer que seja a sua cor, se opaco ou se brilhante, dessa fita outro laço sairá com defeitos por não ser o primeiro.

São anos perdidos crianças! Eu, adulto, fiz vocês crianças se tornarem adultas. Jogamos tantos brinquedos fora. Quantas pipas deixamos de montar? Eu nem ensinei a vocês como usar a cera de abelha no barbante para deixar a fieira de rodar pião no ponto. Na época eu achava que os jogos eletrônicos eram suficientes.

Então! Cá estou, agora criança. Decidi recuperar pelo menos parte do que perdi, após dar com a cabeça em paredes e pouco ter conseguido nos projetos que me colocaram às vezes contra os patrões ou os colegas. Não fiquei rico, mas criei inimigos. Experimentei por mais de uma vez a solidão sem saber qual era a causa. Iludi e me iludi. Machuquei e me machuquei. Até busquei a fama na profissão e descobri que não sou nada.

Tenho ainda a chance de tê-los crianças, para que os erros que cometi não os peguem lá adiante? Asseguro que a pipa que eu montar hoje terá muito mais do que papel, varetas e linha para mantê-la no ar. Agora sou criança de verdade e vou confeccioná-la com amor.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Conto - O tempo das perguntas sem respostas

O peso é pouco e nem marca deixa no assento da poltrona de modelo antigo. Confortável, a peça tem braços em madeira trabalhada. Imita o colonial com certa perfeição, embora alguns traços denunciem a fabricação contemporânea pela falta de detalhes na produção com o uso de torno. Nada ali é artesanal, vê-se muito bem.

A senhorinha de cabelos grisalhos, miudamente acomoda nela, nem faz questão. O que importa é que tem encosto com inclinação e maciez na medida adequada. Nem mole e nem dura, evita que o corpo vergue e a espuma forme um côncavo ou um convexo. Fosse assim causaria dores nas costas em pouco tempo. Nem reta e timidamente diagonal, permite que o corpo fique quase ereto e não incomode a coluna.

A altura do assento parece ter sido planejada. As plantas dos pés ficam inteiras no chão. Não é preciso escorá-las pelos dedos ou, quando cansar, plantar os calcanhares para evitar que fiquem pendurados. É importante, assim, avaliar que a gramatura da espuma é da mesma forma adequada. As nádegas caem bem e as coxas das pernas se acomodam horizontalmente, sem alto e nem baixo.

Sim, os braços de madeira exigem improvisos. Duas toalhas, uma de cada lado, sustentam os cotovelos enrugados e aliviam a pressão. Nada mais do que isso é necessário. A senhorinha pouco exige. É o seu lugar de ficar quando não está deitada. Ela acorda cedo, muito antes do dia clarear. Mas só troca a cama pela poltrona quando os adultos despertam e alguém a carrega de um lugar a outro. Nem à mesa pode ir para o chá da manhã, as pernas não permitem. E vem a bolacha doce molhada no chá morno, tudo digerido numa velocidade muito menor do que o organismo exige.

E vem a higiene feita por uma mulher de expressão doce, mas calada. De nada adiantaria a empregada dizer qualquer coisa. A senhorinha não conseguiria responder. E vão as crianças para a escola. E saem os adultos para o trabalho. A senhorinha fica. Fica esperando o tempo passar devagar, para quando a noite esconder a claridade ela voltar para a cama, onde o sono chega rápido, mas vai embora depressa.

Então ela espera o sol esconder a noite para voltar à poltrona, onde o dia demora cada vez mais para acabar. E a poltrona é boa, mas se a claridade se alonga o corpo quer deitar. Assim vai a senhorinha confusa entre saber se o dia é bom ou se a noite é melhor.


terça-feira, 4 de outubro de 2011

Conto - O silêncio da outra guerra dos meninos

Então os dois meninos brincavam de guerra na calçada de um bairro residencial. Os postes eram barricadas e de um a outro só cimento no chão. Nenhuma planta para fazer de conta que a batalha corria num lugar de vegetação abundante, onde os troncos das árvores seriam escudos.

Era um confronto sem muitos recursos bélicos. Bans, buns e tatatás faziam o barulho de armas disparadas em seqüências que o fôlego permitia, além de bombas, canhões e metralhadoras cuspindo fogo sem cessar.

As armas eram imitadas com pequenas peças de plástico ou madeira. Até o cabo solto de uma panela servia. E nesse embate era regra: ninguém caia por terra, pois senão a brincadeira acabava. Mais tarde, quando a exaustão molhava as roupas de suor, os meninos encerravam a guerra sem vitorioso e sem perdedor. Nunca acontecia rendição de uma das partes, apenas havia a contagem, sempre inexata e impossível de comprovar, de quem atingira o outro por tantas vezes.

A matemática tosca e imaginária, feita sem lápis e sem papel, punha fim à batalha e ao conflito, sem que se soubesse o que havia originado a briga. Política econômica, disputa de faixa territorial ou ideologia, quem é que se importava com isso naquela guerra de sons feitos pelas gargantas?

Às vezes a batalha que se repetia todos os dias durava minutos. Outras vezes extrapolava a hora. Dependia do sol. Se fraco, permitia-se mais tempo. Se forte o cansaço chegava mais cedo. Com chuva havia uma trégua.

Também dependia das outras brincadeiras. Carrinhos em miniaturas soltas de cima da rampa em frente aos portões apostavam corridas. E pouco mais havia. Nem as pipas subiam na rua cujo espaço aéreo era tomado por fios de alta tensão, telefonia, internet e tevê a cabo. E bicicletas, lá fora, só quando acompanhados por adultos que prestam atenção no trânsito.

Então a guerra ainda não incomodava, apesar dos bans, buns e tatatás barulhentos. Até que um dia alguém indagou: “De onde é que estes meninos aprenderam a brincar de guerra? Que filmes os pais estão permitindo que eles assistam?”

As duas perguntas ganharam repercussão de um vizinho a outro. As balas disparadas por armas simuladas começaram a atingir os adultos. As bombas começaram a explodir em seus quintais. As metralhadoras passaram a atrapalhar os capítulos das novelas.

E a guerra acabou porque os meninos não puderam mais brincar de soldados. O cabo solto da panela foi para o lixo, pois arma, nem de brinquedo, deve cair nas mãos de uma criança.

Então ambos foram brincar no computador, onde os monitores mostram futilidades de adultos para meninos que, sem malícia e com imaginação, faziam de sua guerra uma brincadeira sem disputa.


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Conto - Todas as evidências são enganosas

Peças íntimas espalhadas no corredor dizem coisas. Relaxo típico de quem reparte a casa com a solidão, por exemplo. Ou pura mostração de quem quer dizer sem palavras que eu sou assim mesma. Na melhor das hipóteses resultado de uma noite de delírios e muita pressa, de roupas jogadas nos cantos para ganhar tempo.

Tudo é hipótese. Nenhuma das alternativas, porém, é válida para Evelise, mulher ainda menina para os trinta e poucos anos de vida. Ontem ela fez serão no serviço. Nada do que os impuros constroem sobre os outros. Evelise trabalhou além do horário organizando processos que deveriam estar em ordem nos primeiros minutos após o início do expediente.

E nem se deu conta quando alguém alertou que a meia fina estava rasgada na altura da batata da perna direita e uma voz masculina sussurrou maliciosa, em seguida: “E lá em cima tem algum rasgo?”

Curiosidade besta. Foi o único pensamento que veio. Em nenhum momento Evelise cogitou uma provocação, talvez uma cantada sem criatividade. Ou sondagem para medir a recepção: se responder com rispidez é jogo encerrado; se for o contrário é possível prosseguir.

Evelise não era de se jogar fora. Mas mantinha-se cercada por parâmetros de austeridade. Claro, com exceções criteriosas. Assim só saberia se as meias tinham furos abaixo ou acima, perto da linha de perigo, quem passasse pelo seu processo seletivo.

Foi por isso que uma amiga perguntou em determinada ocasião: “Então tem que passar por um concurso?” Não era bem assim, mas títulos valiam muito na escolha. Nada a ver com especialização, mestrado, doutorado e MBAs da moda, com cinco ou seis idiomas e muito prestígio no mundo acadêmico. Títulos financeiros, estes dariam um bom futuro. Então as coisas aconteciam muito raramente.

Outra amiga cutucava: “Se for rico a gente consegue transformar o feio no homem mais belo do mundo”. Conceito idiota em teoria. Na prática... “Bem, na prática eu chamo ele de mumuzinho”, dizia uma espevitada de uma colega.

Conversas de mulheres, não é Evelise? Então aquele comentário feito pela sua empregada, sobre uma noite de afobação e momentos de murmúrios, tem lá o seu fundamento. Quem diria...

Mas que nada. Ela saiu apressada pensando na montagem dos processos e na distribuição das tarefas para a equipe. Disciplinada, Evelise tinha que ser sempre a primeira a chegar ao serviço. Em caso contrário sentia uma espécie de decepção consigo mesma.

E na saída da porta do banheiro o bico fino das sandálias de salto chutaram o saco com as peças íntimas guardadas para lavar no fim de semana. Calcinhas, sutiã, meias e outras coisas ficaram pelo corredor.

E Evelise levou a fama na vizinhança de pessoa bem abastecida e resolvida. Se assim fosse...