segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Conto - É tanta paz que até causa incômodo

Marluci dizia que a paz era uma situação utópica quase no ponto de atingir solidez. Reforçava que era como fazer um bolo: acertar na quantidade de ingredientes, bater no tempo recomendado e errar na temperatura do forno. O bolo estufa acima da borda da forma e depois achata. Fica um pudim estalado no prato.

Definição estranha o dessa menina. Cabia alguém questionar a que paz ela se referia: estabilidade financeira, carro com revisão feita, casa devidamente organizada e limpa, amor aos delírios ou emprego garantido? É muita paz. Mesmo que apenas metade desta lista batesse, poderia se dizer que o ideal estaria no ponto.

Ontem ela relacionou causas e efeitos durante conversa com as amigas da universidade ao redor da mesa de um ambiente requintado. Fez uma narrativa segura usando de argumentos precários, mas convenceu aquele público.

Do tipo: o carro que o pai deu de presente é completo, mas o asfalto da cidade não ajuda; as finanças não preocupam, pois a família deposita a mesada sem atrasos e com reajuste muito acima da inflação – o que enche é a greve dos bancários; a casa a empregada deixa em dia, no entanto a vizinha do andar de baixo insiste em deixar pela fresta da porta recados deselegantes sobre o barulho de saltos altas horas da madrugada; o amor vai se levando, mas é complicado administrar a lista de pretendentes sem criar constrangimentos; e o emprego, depois da formatura o pai dá um jeito, mas será um saco providenciar a papelada para o registro no conselho.

Com tantos senões, realmente é compreensível Marluci ser uma desiludida com a paz. São tantos os incômodos que é de dar pena. Teve naquela conversa um momento de mais fogo. Marluci chegou ao stress quando uma das amigas perguntou se o bolo que ela comparava à utopia era um exemplo extraído de situação própria.

A menina fez aquele jeitinho de indignada e respondeu que nem pensar. Completou a cena com um beiço, virou a cara e só então explicou que era apenas testemunha desse desacerto culinário. A mão na massa era o da empregada e o bolo que virou pudim foi para o lixo depois de um sermão naquela pobre que nem para a cozinha presta.

Mais stressada ficou quando uma colega meio distante, daquelas que não entram no círculo de amizade, passou por ali e com firmeza e voz alta cumprimentou: “Tudo bem com você, Marluci? Há quanto tempo...” A fulana ficou sem resposta e nem o tradicional beijo na face mereceu. É que Marluci, para os mais íntimos, é Malú. E vem aquela chata anunciando para todo o mundo, num lugar de alto nível, que o nome da nossa personagem é Marluci. Como as pessoas gostam de acabar com a paz das outras. Que coisa...   

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