quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Crônica - O silêncio é a balbúrdia dos solitários

Dei-me ao direito de ser egoísta na hora do almoço. Elimine, por favor, qualquer possibilidade de prato cheio, carne de primeira tirada quente da grelha, fartura na salada e caloria transbordando da bandeja. O que escolhi foi o silêncio do ambiente de trabalho num momento de solidão. Ninguém na escrivaninha da frente. As mesas do lado estão vazias. Nenhum rangido da porta.

Este direito estende-se, inclusive, às contradições e choques de conceitos. Como definir a solidão ao isolamento justo quando tanto se diz que tendemos a ser solitários no meio da multidão. Estar só, portanto, não quer dizer que escapamos da balbúrdia, que nos atormenta a seu modo, sem pedir licença e marcar data e hora. Disfarçada, costuma nos visitar nas madrugadas travestida de insônia.

Foi a esta balbúrdia que me entreguei em troca da refeição do meio do dia. Egoísticamente e sem pudor, fazendo daquilo um deleite. O barulhoço interior tinha que ser só meu. Eu e os meus fantasmas escorados no encosto duro da cadeira, sem onde descansar as pernas e a necessidade de adormecer, misturado com o temor de ser importunado numa hora especialmente individual.

Não há improviso que compense. A cabeça pende para trás e o pescoço dói. Os olhos querem fechar, mas o cérebro acorda ainda mais. Ele traz as fichas de cada situação, com anotações em destaque dos erros e acertos. Nomes, instantes, fisionomias e sensações aparecem cobrando o que não foi feito e o que se fez além do que devia ser.

São notificações feitas com rigor por aquele eu que está quase em transe, num estado estranho entre o adormecido e o desperto. Muito diferente do fim do sonho ruim, quando damos graças por aquilo ter sido apenas um pesadelo. Aqui é o contrário: queremos dormir, mas temos medo de perder o instante.

E se num vacilo ele se for, não teremos como analisar as nossas fichas e arquivá-las depois numa ordem que nos permita acesso e reflexões sobre o que fomos, o que somos e o que queríamos ser. É capaz de essa perda significar uma eterna fuga, quando sabemos que chegará o momento de pararmos para olhar o passado sem temor.

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