segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Conto - Cerveja, cigarro e monólogo com o doutor

Sou um cara reto, doutor. Bebo um dedinho de vez em quando. Nada destilado. Só na espuma mesmo. O único defeito é que quando bebo acendo um cigarro. E depois vai outro e mais outro. E chega quando eu nem percebo que acendo na bituca porque nem carrego isqueiro. E sabe como é, doutor. Não gosto de incomodar os outros pedindo isqueiro emprestado.

Ah, quando eu fumava não lembro de ter saído sem isqueiro no bolso. Mas também eu não gostava de emprestar o meu. Era parar na frente da loja e acender um que lá vinha alguém pedindo emprestado. Se fuma tem que carregar isqueiro e cigarro, não é doutor?

Agora é assim. Só quando dou uma talagada de cerveja eu fumo. Sei que não presta, doutor. O senhor mesmo já disse que não faz diferença fumar um cigarro ou o maço inteiro. O mal é o mesmo. Mas é de vez em quando, doutor. Posso dizer que, se não fosse a cerveja, desse mal eu já estaria curado.

Mas é só de vez em quando, heim, doutor. Sou franco com o senhor. Aliás, devo a vida ao senhor. Depois que parei de fumar foi uma bênção, nem tem comparação com antes. Ando, subo, desço, jogo uma bolinha quando dá, corro ali e nada. Até consigo visitar mais a patroa e nenhum cansaço. Claro, depois que eu bebo cerveja e fumo o dia seguinte é um martírio. Daí é que eu sinto que o senhor tem muita capacidade. Amolece tudo, dá tontura, parece labirintite. Não sei como é que eu teimo ainda, né doutor? Mas o senhor tem razão. 

Fumar um cigarro e um maço inteiro não tem diferença não. Então que outro dia, na sexta, cheguei ao bar lá pelas seis e meia da tarde. Nem horário de verão era ainda e o escuro caiu cedo. Comecei com uma amarguinha só para abrir. Mas foi só para abrir mesmo, viu doutor? Um trago que não deu um dedinho. Engoli de vez e esperei descer.

Queimou, viu doutor. Depois que a gente desacostuma dói. Ardeu daqui da garganta até lá embaixo. Senti depois o corpo tremer e pensei que estava com doidura. E esperei um bom tempo para pedir a seqüência. Foi uns cinco minutos até eu chamar o dono do bar para ele abrir uma garrafa. E demorei para esvaziar a danada. Claro, não deixei perder o gelo, mas demorei sim senhor.

E naquela hora decidi que seria sem cigarro. Só geladinha. Mas depois de começar atrapalha tudo e a gente fica meio fraco, isso eu confesso. Nem lembro quando pedi o maço que só encontrei no bolso, vazio, quando cheguei tempo depois em casa. Também não garanto que fumei tudo sozinho, viu seu doutor? Eu acho que devem ter cerrado a metade. Impossível eu ter fumado tanto em tão pouco tempo. Só fiquei no bar até lá pela uma da madrugada.

E então doutor? O que dá para fazer agora? Mais exames? E olha que eu não exagerei mesmo, doutor. O senhor me conhece. Aquela recomendação que o senhor me passou na última consulta fica aqui na cabeça martelando. O duro é que pelo menos uma vez na semana tem que terminar a noite com amigos. E é quando chega a cerveja e depois o cigarro correndo atrás.

Ta certo, doutor. Semana passada foram três noites. Cerveja e cigarro atrás. Exagerei um pouquinho. Aceito que o senhor me reprove. Mas não é sempre assim. Semana retrasada foi apenas duas noites. Claro que na anterior, por causa do feriado, foi quase a semana toda. Mas agora estou normalizando, né doutor?
E então? O senhor não está dizendo nada. Só eu falo, doutor. O que eu faço com essa dor no peito? Deve ser coisa normal, né doutor? O senhor me passa um remédio e fico pronto...

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