sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Crônica - Se o cão pensasse todos seriam loucos

 É sol de chuva. Quente e abafado, é cruel com todos: faz suar, respirar apertado, andar mole, prosseguir lento e suplicar por sombra. Ali na porta da repartição tem um cão. Boca aberta e língua de fora, ele se põe preguiçosamente bem onde as pessoas passam. Pachorrento, a sua indiferença parece um recado: os incomodados que façam o contorno.

Na calçada em frente tem gente subindo e gente descendo. Na portaria onde o cão descansa há quem entra e há os que saem. Ali é local de serviço. Apressados entregadores correm com encomendas. Impacientes motoristas vão e vem enquanto aguardam seus passageiros. Os serviços gerais, mais tolerantes, contam os minutos no ponteiro do relógio para ver quanto falta para encerrar o expediente.

O cão é imprevisível. Às vezes olha os que cheguem. Outras vezes está atento ao que passa lá longe e parece nem perceber que alguém se desviou dele num susto. Tem gente que chega sozinha e quieta, mas o cão encara sem qualquer ameaça.

A impressão é que ele tem apenas curiosidade. E quando se aproxima uma turma barulhenta, falando em tom de voz mais elevado que o de costume, nem imaginem que o cão se levanta temendo um confronto e preparando a defesa. Ele fica na dele.

Coincide certo momento de chegar ou sair pessoas quando o cão late. Mas descobre-se que sua manifestação foi por outras causas. E se vê lá adiante outro cão de rua invandindo o território do cão que faz o descanso na porta da repartição. A interferência dele é com a sua espécie. Os humanos, se o cão da portaria se importasse, que façam o que bem quiserem desde que não me incomodem.

Foi quando apareceu um grupo de autoridades, cercado de assessores, simpatizantes, puxa-sacos, aliados que traem, parceiros que camuflam e interesseiros. Um falando mais que o outro. Fazendo um zuado insuportável com palavras jogadas fora em falsos elogios, pedidos de comissões, quebra-galho daquilo, emprego para o cunhado e bobagens. Tantas...

E o cão nem deu licença. Deixou a turba passar espremendo-se na porta, fugindo de eventuais pulgas e com cara de nojo da pelagem suja do animal. O cão, olhar altivo lá na frente na defesa de seu espaço, se realmente pensasse estaria matutando: e esse povo ainda acredita nessa cambada de embusteiros...

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