quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Crônica - Eu tô politicamente correto, pô...

Troquei de carro. A cor do outro tinha alta concentração do pigmento escuro melanina. O de agora até aparenta ser rosado devido a vasos sanguíneos sob a pele. O outro tinha de potência uns setenta e dois mamíferos hipomorfo da ordem dos ungulados. Este tem cento e dois, todos importados e devidamente quarentenados conforme manda a lei. É ração! Mas são trinta a mais puxando carroceria do mesmo tamanho e isso é politicamente correto.

Só que o manual do fabricante desprezou informação importante: seriam eles da subespécie Equus ferus, cujas fêmeas são as éguas, os machos garanhões e os filhotes potros? Aprofundamentos técnicos às vezes são dispensáveis. Mas seria politicamente correto não tê-los? Eis a questão.

E as portas? O outro tinha apenas duas. Este tem quatro. Os corretores e as lojas de revenda argumentam, na hora da negociação, que quatro portas tem mais saída. Assim, em caso de sinistro, se não der para sair pela frente, pula-se o banco e foge-se por uma das portas de trás. Pensei também entrar na era do câmbio automático. Mas o carro disponível estava com defeito. Só tinha dois pedais...

E aquela árvore que plantei no terraço do prédio? Tive, infelizmente, que derrubar. É que as folhas esconderam a lâmpada-piloto, aquela que avisa o comandante do avião que aqui embaixo tem um prédio com gente dentro, pô! E veio a fiscalização com uma notificação politicamente correta: corta, recebe multa ou transfere a planta para o quintal do vizinho ambientalista... fiz o que era melhor. Como é que eu ia replantar o abacateiro carregado bem onde o vizinho guarda o carro?

E fui saber o que é o sistema de cotas. Disseram que não consta nada em relação aos amarelos. Insisti. Falei do sushi e do sashimi, perguntei se já haviam provado tsukemono. Responderam que só gostavam de lombinho de porco agridoce. Politicamente correto, esclareci que este prato não é do Japão. É chinês, pô! E porco não se come. Se lava, pô!

E na conversa com a moça do guichê? Usei palavras adequadas, em tom formal e convincente, fala devidamente pausada nas vírgulas e nos pontos. Caprichei na exclamação e enfatizei a interrogação. Quando terminei o discurso e abri os olhos a moça estava lá fora fumando um cigarro.

E assumi também postura mais coletiva em relação aos vizinhos. Chamei a mulher do 904 no canto, ao lado da porta do elevador, e recomendei que ela tivesse cuidado com um tal de Pedro Bial. E a senhora perguntou o motivo. Informei que o indivíduo invade as casas das pessoas com um bando de mulheres sem roupas e um grupo de homens que ficam de olho nos outros homens. E nisso passou o vizinho do décimo quarto. Sabe-se lá o que ele fazia a pé na escadaria. E mandou ver com um recado: estávamos discriminando gênero e o nosso destino seria o fogo do inferno durante o Valentine’s Day. Inglês aqui não, pô!

E fomos ainda ensinar à filhinha da mulher do térreo uma cantiga. Para contribuir com o resgate de uma brincadeira antiga. Cantei um trecho do atirei um pau no gato-to-to e a fulana da mãe me deu um sermão de vinte minutos na frente da viúva do 501, aquela por quem eu tinha um apreço. E ela, a viúva, politicamente incorreta debochou tanto da gente que o botox perdeu o efeito e escancarou umas rugas grossas no rosto quando ela gargalhou. Pô...

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