sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 14

O suor das mãos empapa o envelope. Dentro, cópias de currículo para serem entregues em empresas do setor gráfico de Brasília. O percurso entre uma gráfica e outra é feito a pé, após idas e vindas por viadutos, elevados e avenidas extensas e largas. A capital federal é uma grande cilada para quem anda a pé, apesar de todos os elogios aos seus idealizadores.
Riuzim deixou Londrina, a cidade onde nasceu, após um currículo de quatro anos como aprendiz de prótese dentária, seis anos como escriturário de um banco, outros seis anos em um órgão público e vinte e dois anos na oficina de impressão de uma gráfica conceituada da cidade. O período de aprendiz foi cumprido sem o registro de carteira e não conta para a aposentadoria. Ainda assim, Riuzim poderia acrescentar sua renda obtendo o benefício na condição de proporcional, não fosse a idade mínima exigida, de 53 anos. Um ano e alguns meses o separam da aposentadoria.
A saída da indústria gráfica, onde ele entrou como auxiliar administrativo, ocorreu num momento de planejamento. Riuzim havia chegado ao cargo de gerente-geral após passar por chefias e supervisões. No comando de uma equipe de cerca de cento e cinquenta funcionários, Riuzim sentia-se seguro. Conhecia o ramo e tinha consciência que desenvolvia um trabalho de resultados vantajosos para os patrões. A empresa crescia no ramo. Materiais de boa qualidade saiam de seus equipamentos. As contas mantinham-se estáveis e os sócios sorriam após o fechamento de cada balanço mensal.
Um dia, não por descuido, mais por precaução, um contrato deixou de ser fechado. No passado a gráfica havia amargado prejuízos ao rodar materiais de campanha política para um candidato a deputado estadual. Derrotado, o político ignorou a dívida. Cheques dados por assessores para garantir o pagamento retornaram quando colocados no banco. A indústria decidiu, então, contabilizar as perdas e esquecer o cliente.
Quatro anos depois o mesmo político retornou à campanha eleitoral. Procurou a mesma gráfica e Riuzim recusou o trabalho. A pressão exercida por um grupo de parceiros do candidato, sobre um dos sócios, resultou na demissão de Riuzim e iniciou um angustiante amanhecer de disparos de currículos por e-mail, além de contatos pessoais e por telefone para se recolocar no mercado de trabalho. À noite, os e-mais e a secretária eletrônica eram religiosamente conferidos. Antes, com uma leve esperança de algum retorno. Depois da conferência, com a dúvida sobre o futuro e a insegurança.
Um dia Riuzim decidiu que teria que deixar Londrina. Amargurado com a cidade que não lhe dava um emprego e com a política que gravitava sobre ela, partiu para bem longe e despertou uma manhã, após uma cansativa e demorada viagem de ônibus, no Distrito Federal. Escolheu aquelas paragens não por um acaso. Na verdade, julgou que os grandes centros seriam mais concorridos e considerou Brasília um lugar próspero.
Ali correu chão, de ônibus, de vans irregulares e de metrô. Andou por locais desconhecidos, suou a camisa no verão quente da capital, percorreu os labirintos do setor comercial e caiu na área das gráficas. Em muitas das grandes indústrias não passou da recepcionista.
O envelope de cor marrom, com os currículos já umedecidos pelo suor, acompanhou o desempregado, passando de uma mão para outra, por dias de muita agonia. Em gráficas menores Riuzim conseguiu alguns trabalhos temporários. Nas demais percebeu que Brasília é a localidade das influências. Projetos apresentados tiveram destino ignorado. Possibilidades imaginadas perderam-se com a constatação de que ele, naquele lugar desconhecido, não era ninguém.
Riuzim conhecia alguns políticos da sua cidade natal. Podia ter recorrido a alguns deles. Não pediria um emprego, apenas queria que alguma porta se abrisse para que ele não tivesse que deixar a prova dos seus mais de trinta anos de trabalho na portaria de uma empresa. Mas Riuzim relutou e não pediu nada. Um dia, após horas de caminhada e de contatos, Riuzim percebeu que seu passado de nada valia. E concluiu que, com os seus 51 anos de idade, estava muito velho para uma vaga no mercado de trabalho. Foi quando Riuzim escolheu o local ermo de uma rua e chorou como uma criança. A velha casa de madeira, tão presente em sonhos e pesadelos, passou diante dos seus olhos, lacrimejados, como as cenas de um filme. O cheiro de limão rosa e da manga coquinho pode ser sentido a um soluçar mais profundo e o maracujá doce que se comia sem colher, lambuzando as mãos, nunca fez tanta falta quanto naquele momento de tristeza.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 13

Os cavalos eram fundamentais nos pequenos negócios dos bairros simples e sem asfalto de Londrina. A Vila Nova, cortada pela rua Araguaia de oeste a leste, tinha a sua via comercial calçada com paralelepípedos. A parte de cima, a partir da avenida Rio Branco, era desprovida da qualquer benfeitoria desde o trecho abaixo da linha férrea até a rua Tietê. Depois daquele ponto uma plantação de banana descia e chegava à margem da BR-369. Os pais recomendavam aos filhos que era muito perigoso as crianças brincarem perto do bananal, como era conhecida na época a região. Cobras, cães ferozes, abelhas e bandidos que ensacavam os pequenos eram as ameaças relacionadas pelos adultos para amedontrar.
A sete ou oito ruas abaixo da avenida Rio Branco o asfalto já havia chegado, graças à Paróquia Nossa Senhora Aparecida. A frequência da casa religiosa nos finais de semana, com missas, outras celebrações e quermesses na praça em frente, obrigou as autoridades municipais a levarem a melhoria para parte do bairro. Nos dias de chuva, católicos que moravam na região sem asfalto chegavam às missas com os sapatos imundos de terra. Os homens arregaçavam as bainhas das calças e as mulheres, de vestidos até os joelhos, levavam nas bolsas pares de sandálias que podiam ser trocados pelos sujos. Na estiagem, a poeira manchava de marrom o brilho negro dos calçados engraxados pouco antes.
Os bares da rua Araguaia vendiam de sabão em pedra a pão, adquiridos de fornecedores de outras localidades de Londrina. Uma padaria recém-inaugurada assanhava com os bolos confeitados nos balcões. Os sorveteiros empurravam os seus pesados carrinhos pelas vias esburacadas e acordavam as crianças som os seus apitos estridentes, minutos depois de o vendedor de bijú arrancar impropérios de algumas mães, por causa do barulho do estalo de madeira. Mas os pães preferidos pelas donas de casa não eram comprados nos bares ou na padaria. Elas esperavam pelo padeiro, um moço magro e alto que estalava os lábios e socava as rédeas do cavalo para seguir adiante e cumprir a sua tarefa diária de entregar pães de porta em porta. Com as mesmas mãos que ele acariciava as crinas do animal, o padeiro embrulhava os pães escolhidos pelas consumidoras. Havia quem dissesse que muitas mulheres esperavam ansiosas pela chegada do padeiro, por voltas das três da tarde. O pão era apenas um argumento, o que elas queriam mesmo era admirar o moço.
Elas também recebiam diariamente a visita do bucheiro, mas este, com as vestes sempre ensanguetadas, não merecia admiração. No carrinho vermelho puxado pelo animal marrom escuro, ele vendia o bucho que virava dobradinha, o figado e o rim que se transformavam em mistura de um dia da semana. De manhã passava o verdureiro, com os caixotes de alface, batatinha, cenoura, pepino, mandioca e outros produtos ocupando até o assento da carrocinha que era reservada para ele. O único a visitar as donas de casa de bicicleta era o peixeiro. A sardinha era a opção de sempre, pois raramente ele trazia outra espécie. O produto era pesado na balança manual que continha o prato, pendurado por três correntes, e o medidor manual manobrado pelo próprio comerciante.
Riuzim não gostava de bucho e odiava o bucheiro. Riuzim tinha nojo do rim e tinha vontade de xingar o bucheiro. Riuzim detestava figado e resmungava contra o bucheiro quando a mãe dizia que o produto era muito bom para a saúde. Riuzim gostava do pão fresco que o padeiro trazia todos os dias e sua mãe comprava regularmente. Margarete, a mãe, comprava bucho, rim e fígado para fazer a mistura porque os preços eram mais em conta do que a da carne de segunda vendida no açougue da rua Araguaia. Margarete comprava pão porque dizia que o produto do padeiro era bem mais fresco que o vendido no bar. Margarete tinha uma pequeno horta no seu quintal, mas tinha que comprar a batata e o pepino que o verdureiro trazia de algum sítio dos arredores da cidade.
Uma vez por semana os moradores recebiam a visita do vendedor de lenha, usado para a cozinha nas casas que não dispunham de fogão a gás ou no quintal, em armações levantadas de tijolos, para aquecer a água dos latões e ferver a roupa encardida. Também uma vez por semana, durante a safra do café, os carroceiros chegavam com os seus animais exaustos. Traziam muitas sacas de café que eram deixadas nas casas de algumas famílias. Mãe, pai e filhos ajuntavam punhados do produto na mesa e faziam a catação, separando os que estavam estragados. Dias depois os carroceiros voltavam e verificavam com uma punha se a catação havia sido feita de acordo com o padrão. Em caso positivo, por cada saca limpada a família recebia um valor. A catação de café era um meio de vida. Quantas vezes Margarete castigou seus filhos após desobediências com doses extras de catação...

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 12

Silvana tinha 19 anos quando engravidou, ainda solteira. Um namoro de pouco mais de um ano resultou na precipitação, numa época em que esse tipo de descuido gerava comentários na vizinhança. Para Margarete, a gravidez foi um vexame. Ela havia percebido diferenças em Silvana meses antes de ter a confirmação. A moça dormia mais do que o normal e começou a apresentar um inchaço suspeito. Tornou-se arredia com a mãe e falava pouco com os irmãos. Quando o formato da barriga começou a denunciar a vinda de um bebê, Margarete chamou Silvana num canto e encurralou a filha.
Antes magra e delicada menina, atraente apesar das roupas simples e dos chinelos de tiras habituais no seu dia-a-dia, Silvana, largada dentro de um vestido solto de estampas miúdas, parecido com uma camisola, tinha naquele dia os cabelos negros e lisos que chegavam aos ombros amarrados num rabo de cavalo desleixado. O rosto de traços finos apresentava manchas de cansaço ao redor dos olhos, que denunciavam horas de insônia e choro. Acuada pela mãe, Silvana parecia estar na ponta da fila da tortura, diante de um executor prestes a dar a primeira chibatada. Os olhos lacrimejavam e a voz falhava durante a narração de uma história cujos detalhes, em alguns capítulos, era respingada de cenas que ela gostaria de esquecer.
Silvana conheceu César Batista numa quermesse na praça da Paróquia Nossa Senhora Aparecida, na Vila Nova. Foi numa noite de sábado. Entre um prato de batata frita e um grão de milho na cartela do bingo, Silvana recebeu o primeiro correio elegante de César Batista. Era a forma como os jovens se comunicavam antigamente nas paqueras de quermesses. O texto, escrito com uma caligrafia arredondada e firme, pediu a moça em namoro. Naquela forma de contato, o portador do bilhetinho de paquera era comumente a pessoa que voluntariamente trabalhava como garção na festa promovida pela igreja. A resposta retornava da mesma forma e pela mesma pessoa. Até que o namoro fosse acertado entre as duas partes, muitos bilhetes eram trocados, algumas porções de batata frita eram consumidas e, eventualmente, pedia-se também um frango assado, tudo regado com cerveja ou refrigerante. Os mais românticos usavam o sistema de alto-falante para fazer uma declaração de amor e dedicar músicas. Renato e Seus Blue Caps repartiam as preferências do público com Os Incríveis e Golden Boys, enquanto as canções de Roberto Carlos eram reservadas para os momentos dos beijos. Credence e Beatles mexiam com os corpos da rapaziada, que ensaiavam na praça os passos para serem mostrados na brincadeira dançante do próximo fim de semana.
Silvana decidiu que o correio elegante enviado por César Batista merecia uma resposta imediata. Há semanas ela correspondia aos olhares apaixonados do rapaz, que trabalhava numa farmácia bem na rua que ela passava para ir e voltar do trabalho, num mercado localizado no bairro vizinho. Silvana consentiu com o namoro e das quermesses nos sábados e domingos optou pelas brincadeiras dançantes, como eram chamados naqueles tempos os pequenos bailes realizados nos finais de semana normalmente na casa de algum conhecido. No começo, o caminho de volta, sempre antes das onze da noite, limitava-se a troca de beijos longe das lâmpadas incandescentes dos postes das ruas. Eventualmente a dança era trocada por uma sessão de cinema, onde os lanterninhas da época eram preparados para iluminar qualquer indício de abraço mais demorados entre as poltronas da sala de exibição.
Num domingo, justamente após o cinema, Silvana e César Batista não conseguiram se conter. Já haviam trocado carícias e ambos já conheciam as fraquezas um do outro nas loucuras do amor. A descida do centro até o bairro foi feita a pé, incluindo a travessia de um trecho perigoso à noite, a da linha férrea. Foi naquelas alturas que a quentura dos corpos descontrolou , num canto de capim mais alto, a noção de perigo do jovem casal. Perigo de um assalto e de uma gravidez. Em instantes, de pé sobre a poeira e as britas da ferrovia, ambos consolidaram o amor que sentiam em sensações que nunca antes haviam experimentado. Outras descidas do cinema e retorno das brincadeiras dançantes comprovaram o quanto era bom amar. Numa dessas aventuras a gravidez se disse presente.
Silvana só tomou pé da situação dois meses depois, por causa dos enjôos e da falta de menstruação. Mas não foi ao médico, para evitar que uma comprovação da gravidez chegasse aos ouvidos da mãe. Teve também receio de comunicar César Batista. A preocupação era com a reação do rapaz. No quinto mês, ainda sem assistência médica, obrigou-se a conversar com o namorado, que mais afoito com o sexo do que com o bem-estar da namorada nem havia percebido as mudanças físicas e emocionais de Silvana. O que ela temia aconteceu: César Batista deixou o bairro e foi morar com um tio numa fazenda na cidade vizinha. Aos pais disse que pretendia estudar agronomia e o contato com as coisas do campo seriam úteis.
Quando Margarete, com sua fala rígida e gestos certeiros acertou a mão direita no rosto de Silvana, a moça já estava no sexto mês de gravidez. Sofria a perda do namorado e pai da criança que esperava. Chorava pelo constrangimento, muito mais doido que o tapa que recebera da mãe.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 11

Quarenta e cinco milhões de reais coçam as palmas das mãos de Riuzim. A vontade de gastar é contida pela ponderação: planejar, investir, ganhar mais e mais. O grafite mal apontado do toco de lápis chia sobre o papel sulfite dobrado em quatro, feito uma caderneta. Na primeira página, os números ocupam espaço menor: trezentos e cinquenta do condomínio, cento e trinta da energia elétrica, seiscentos da prestação do carro, cento e sessenta do telefone, oitenta da banda larga e mais tantos do supermercado, do cartão de crédito, da tevê a cabo, da faculdade do filho, do imposto predial e do financiamento da vida, além de mais números relacionados entre tantos outros. A soma da despesa, ali, é maior que a receita.
Em situação normal, o cheque especial entraria no negativo já no terceiro dia após a entrada do pagamento. O resultado seria a indignação costumeira do oitavo dia útil do mês. Algumas contas seriam empurradas e as compras se limitariam ao básico. Uma crise internacional, cuja raiz havia quebrado meses antes a economia concretada da maior potência do mundo, os Estados Unidos, tinha sementes espalhadas pelo Brasil e algumas vingavam frutos amargos. Demissões em massa, principalmente na siderurgia nacional, colocavam os trabalhadores brasileiros em estado de apreensão. Oportunistas, os sindicatos patronais propunham fórmulas unilaterais para vencer o período: vocês, trabalhadores, cedem isso. Nós garantimos vagas no mercado de trabalho. A estratégia empresarial ganhava o reforço dos jornais e das revistas especializadas, que comparavam a crise do momento com a de 1929.
Emissoras de televisão repetiam reportagens de famílias vivendo sob viadutos no Japão, onde quase trezentos mil brasileiros trabalhavam como dekasseguis, em atividades braçais recusadas pelos japoneses. No Brasil, parentes entravam em pânico. Portugal, Espanha, Londres e Estados Unidos, também com levas de trabalhadores do Brasil, experimentavam situações parecidas: os meios de comunicação alardeavam sobre a crise, alguns com enfoques irresponsáveis, criando nos familiares um estado de desespero.
Em outras terras brasileiras, os programas assistenciais do governo elegiam políticos e empregavam seus protegidos. No outro extremo, a oposição usava o direito da crítica, mas seguia o modelo: quando de posse do poder, virava situação e lançava mão da mesma fórmula de empreguismo, influência e altas comissões divididas após licitações duvidáveis. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva ganhava a capa dos principais impressos nacionais com a pesquisa apontando aprovação de mais de setenta por cento, enquanto os termômetros dos institutos responsáveis pelos índices da economia brasileira não conferiam com a realidade das gôndolas dos supermercados.
A cultura nacional saboreava uma decadência enrustida. Nada de novo surgia na música. Regravava-se e curtia-se sucessos de duas a três décadas atrás, sob os aplausos de um público sem referência do que os artistas brasileiros já fizeram. Na televisão, os importados americanos, condenados no passado, eram assimilados com outros sentimentos pelos telespectadores graças a uma roupagem diferente: se não hora nova, atraia devido à possibilidade do inusitado. Um beijo mais quente entre pessoas que se conheceram há poucos, uma insinuãção de sexo e pouca roupa grudavam milhões de pares de olhos nos aparelhos de TV para um reality show de resultados milionários os seus promotores. Companhias telefônicas, anos antes privatizadas pelo governo de uma forma tão suspeita quanto tantas outras medidas assinadas pelos políticos, contavam seus lucros após ligações disparadas de vários pontos do país. Com um número discado e alguns reais gastos, o telespectador dormia, minutos depois, com a sensação de ter participado de um uma decisão muito importante: queria seria expulso do programa?
Nas ruas das principais cidades brasileiras, a pirataria repartia terreno com os defensores da lei. De calçados a produtos de cultura, reproduzidos ilegalmente, ganhavam a preferência dos consumidores. Na contrapartida, a indústria nacional, sufocada pela pesada carga de impostos e tributos devida ao governo, fechava os olhos para fugir da concorrência dos clandestinos.
Na saúde, os planos privados de medicina e hospitais, com mensalidades elevadas e preocupações questionáveis em relação aos atendimentos, supriam a ausência de um sistema público no mínimo adequado. Na educação, cotas para os negros, os portadores de deficiência e os menos favorecidos economicamente camuflavam a flagrante diferença no tratamento dos brasileiros de distintos padrões sociais e econômicos nas salas de uma instituição de ensino superior.
Riuzim repassou em instantes os pontos que inundavam de manchas a situação do seu país, ao mesmo tempo em que prosseguia nos relatórios de contas. Virou a página da caderneta improvisada e pensou o que poderia fazer com tanto dinheiro. Suas contas, mesmo que multiplicados por muitos anos, nem tirariam uma lasca. O valor, de um prêmio bancado por um banco público federal, havia se acumulado por falta de ganhadores. Saiu finalmente para uma única pessoa. Na internet, uma mensagem, embora de origem duvidosa, conferia com uma preocupação de Riuzim: os quarenta e cinco milhões de reais não seriam os resultados de mais um engodo nacional?
Por algum tempo Riuzim imaginou ser o felizardo. Ele nem tinha feito um jogo, mas deu-se ao direito de sonhar ser um milionário. Acordou minutos depois com o jornal na página onde se lia sobre o elevado custo do cheque especial.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 10

A semana iniciada com uma chuva fina, quase garoa, aumenta a sensação de aperto no coração. Os pingos miúdos descem ininterruptos e enganam. O olhar diz que eles são insuficientes para umidecer a roupa e encharcar os cabelos. Mas a alma pede uma lavagem que o banho quente ao acordar não supre. Muito além da vontade de refrescar o corpo na manhã de verão, vale a necessidade de expurgar o que causa uma dor difícil de suportar. É de um conteúdo estranho, como se dois extremos escolhessem o mesmo momento para se manifestarem. Um deles, engrossado por contradições, quer explodir. O outro, vazio, pede o silêncio.
Riuzim encosta a testa no vidro da janela da casa e observa, distante, a cena de um dia sem sol. A pressão dos pneus dos carros sobre o asfalto molhado produz um barulho melancólico. Uma mulher atravessa a rua, protegida com uma sombrinha de cores vivas, e avança com passos ligeiros para um destino que Riuzim se pergunta qual seria. Indagação vã e sem pretensão, pois surge num vácuo do sentimento que naquele momento atordoa e abobalha a figura que, na contraluz, permanece imóvel diante da claridade permitida pelo vidro transparente. O que pensaria a mulher sobre a vida? Estaria ela a procura de alguma resposta para questões em aberto acumuladas durante os trajetos que percorreu, passo a passo, sob a garoa de uma manhã de janeiro? Assim ela se vai e vence o espaço entre um ponto a outro. Não olha para trás e não deixa rastros, distanciando-se cada vez mais como se o seu ímpeto fosse o de sumir, sair da vista de quem fica e a observa.
No vão do pensamento, Riuzim apenas torce para que ela chegue aonde quer que seja. Ele usa estes estilhaços de cena para compor uma espécie de canal, longo mas percorrível desde que transposto por passadas da imaginação, por onde possa escapar do instante que o imobiliza na frente da janela. Logo será a vez dele ir, sem caminho traçado e nem rumo definido. Ainda escorado no vidro, Riuzim percebe o reflexo da estante, onde um porta-retrato velho escora-se na cerâmica de um vaso com flores de plástico. Na foto, quatro crianças tímidas encaram a parede da frente da sala com olhares de espanto. Ele e seus irmãos, anos atrás, quando ainda tinham o quintal com o pé de limão rosa, a manga coquinho, os varais sobre o gramado e o maracujá doce, posam justo para um momento de angústia que é aquele.
No passado, as fugas tinham os extremos do quintal como aliados. Ia-se da cozinha para o tronco do abacateiro sem o receio de não ter para onde voltar. À noite, as estrelas pareciam próximas e a lua, quando surgia, iluminava mais que a lâmpada incandescente da cor do tomate sobre a mesa usada para o jantar. Nem que o medo das janelas abertas ao vento com a pressão contínua das taramelas ainda alimentassem os pesadelos. Nem que as frestas do assoalho de tábuas e das paredes de mata-juntas quebradas preocupassem por causa das invasões das baratas e das aranhas. Ainda assim a velha casa de paredes sem pintura oferecia mais segurança que o edifício de concreto onde a janela que dava para a rua mostrava a chuva numa manhã de tristeza.
Por isso Riuzim teria que ir o quanto mais rápido. Somente fugir do espaço onde se encontrava e de si mesmo, sem pensar se retornaria. Depois mediria a temperatura do coração para decidir se valeria a pena buscar um ponto de partida. Então se entregaria ao exercício de localizar onde tudo começou. Caso contrário iria adiante, sempre, para onde a alma não gemesse tanto e os extremos desistissem do conflito.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 9

A música Porto Solidão, interpretada por Jessé, não é uma das preferidas de Riuzim. Mas ele remexe a estante onde são guardadas algumas lembranças da mãe quando a saudade aperta. Margarete ouvia a canção com lágrimas nos olhos. Ela tinha uma velha radiola, de móvel restaurado e protegido com verniz, cuja agulha era frequentemente trocada tanto era o uso do aparelho. Uma coleção de cerca de trezentos discos de vinil ficavam empilhados numa cadeira ao lado. Não havia uma classificação por nome do cantor, época do lançamento ou gênero musical. Acima ficavam os LPs mais ouvidos pela costureira. Alguns tinham os sucos lidos pela agulha diariamente.
Em determinado horário do dia, o vocalista dos Bee Gees invadia os comodos da casa mista de alvenaria e madeira e preenchia os espaços ocupados pelo silêncio ou pelo barulho da máquina de costura. Demis Roussos também usava o palco da imaginação de Margarete, que se entregava ao som das melodias de seus ídolos com os olhos negros mais distantes que o habitual. Em que pensaria Margarete nesses instantes de fuga programados sempre para pouco antes do preparo do jantar? Era um mundo possível, apesar das paredes do quarto onde estava a radiola apresentarem rachaduras e mofos provocados pelas infiltrações.
Ao lado, na parede de madeira, as frestas que marcaram os primeiros anos de casada de Margarete até a adolescência dos filhos ainda perseguiam a costureira. Eles se faziam presentes na nova moradia, localizada numa viela perto da rua Bahia, na Vila Recreio. Pelas frestas escapavam os sons por algumas casas da vizinhança, misturando-se ao sertanejo sintonizado por algum aparelho de rádio e o rock em volume provocativamente irritante da rapaziada do sobrado levantado metros adiante. No outro quarteirão, uma oficina mecânica zunia motores em teste, dando ao conjunto de sons um ritmo estranho e assustador.
Margarete, no entanto, limitava-se ao seu espaço. Naquele paraíso, suas músicas eram as únicas entoadas naquele momento que era só dela. O alho para temperar o arroz seria descascado depois. Assim como a carne, cortada em bife, iria para o descongelo somente após a agulha da radiola vencer o último suco do vinil. Agora Margarete tinha uma geladeira. Podia conservar o alimento, congelar, ter água fresca e gelo para o suco. Foi um presente da irmã, que havia comprado um modelo novo, de duas portas, e cedeu o velho, simples e de formato abaulado, para Margarete. A marca era Cônsul e o branco da carcaça estava manchado. Mas funcionava. Depois de cada parada automática, o relê engasgava, mas teimosamente vencia o peso do motor velho e voltava a zunir anunciando cumprir a sua missão, de esfriar e congelar.
A nova casa também tinha chão encerado. Margarete estreiou dar brilho primeiro com um escovão. Mas não cedeu à tentação de comprar uma enceradeira à prestação na antiga Hermes Macedo, onde tinha cadastro aprovado. Foi lá também onde ela comprou o seu fogão a gás, pois a moradia não tinha um à lenha. Com a novidade Margarete também incluiu na sua agenda semanal a fabricação de pão caseiro, todas as sextas-feiras. Três unidades, de tamanho grande, saiam do forno do fogão a gás cada semana. Eram suficientes para os cafés de três dias. A manteiga comprada de uma freguesa da costura fazia o complemento. Para Margarete, a freguesa dizia que o produto vinha do sítio de um parente, no então Distrito de Tamarana.
O fogão a gás era de um amarelo vivo, que nada combinava com a mesa de fórmica marrom, a geladeira de branco encardido, as banquetas plásticas também brancas e uma peça de copa com fórmica no tom verde água. Mas recebiam de Margarete, no dia da faxina, o tratamento de peças importantes e fundamentais em sua vida.
Na tarde de domingo, Riuzim aproveitou o silêncio do seu apartamento e adaptou ao moderno micro system um antigo toca disco. Ouviu Porto Solidão e gostou de Jessé. Durante a execução enxergou com os olhos da memória os olhos negros da mãe, distantes. Pensou que naqueles tempos, quando contava com os braços de Margarete nas pequenas angústias que a vida reservava, os problemas tinham soluções mais fáceis e rápidas. Riuzim, então, chamou sua mãe, mas ela continuou em silêncio, olhos negros, distantes, no rumo de um lugar que ele não sabia aonde é que Margarete enxergava nos seus momentos de música e meditação. Riuzim quis implorar por aqueles olhos negros, mas segurou o desejo de penetrar no mundo que era de sua mãe. Foi quando ele irrompeu em prantos por ter a certeza de que não teria nunca mais o abraço dela e as costas de suas mãos a enxugar as lágrimas.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 8

Augusto, o filho mais velho de Margarete, assumiu, desde cedo a responsabilidade de cuidar da família junto com a mãe e o pai. Ainda adolescente, empregou-se numa fábrica de doces de fundo de quintal, localizada na rua de baixo a de onde morava. Sem uma atividade específica, fazia de tudo: entregava encomendas, ensacava pipocas recém estouradas, empacotava produtos que saiam dos fornos, varria chão, passava pano nas vidraças, lavava o carro do dono da pequena indústria e levava broncas quando, em momentos de cansaço, relaxava no serviço.
Usava um avental azul escuro sujo de graxa. Nem ele e muito menos o patrão se importavam com o aspecto. A fábrica tinha piso de cimento bruto, de tonalidade encardida. A higiene não era prioridade. Os balcões serviam para guardar de ingredientes a veneno para combater insetos. As moças e os rapazes da linha de produção não tinham tocas e luvas. Quando muito, alguma mulher usava um lenço para prender os cabelos. Mas o acessório era mais por capricho pessoal do que por cuidado com a qualidade da fabricação.
Nas horas de folga, Augusto juntava-se aos colegas da fábrica e trabalhadores do comércio ao redor para bater bola na rua. O retorno à linha de produção se dava coberto de suor. Quando não era a bola, Augusto enturmava-se com os rapazes que contavam histórias e vantagens sobre namoradas e as últimas proezas em cima de uma bicicleta. Nos começos de semana, o assunto mais comentado era sobre as sessões de cinema. Filmes, personagens e artistas preferidos ganhavam elogios e críticas naquelas conversas informais, mas defendidas pelos expositores com garra de especialistas. O futebol também tinha vez, sempre durante e após os programas de rádio que analisavam as últimas rodadas dos campeonatos estadual e nacional. Fazia-se uma guerra de ironias, com o escracho de torcedores de diferentes times vitoriosos contra os perdedores. Era um jogo de nervos, com as provocações chegando ao extremo e os atingidos perdendo a compostura. Acocorados na calçada em frente à fábrica, os torcedores se xingavam, com gritos que podiam ser ouvidos de longe.
Foram três anos e meio de trabalho na indústria da rua debaixo. Dali Augusto conseguiu vaga no escritório de contabilidade do tio, no centro de Londrina. O registro em carteira era, na época, uma trivialidade para o patrão e o empregado. Na fábrica de doce Augusto deixou de receber férias e outros benefícios. No escritório do tio foi como aprendiz, conforme justificou o parente. A função que passou a exercer, entretanto, era a de um serviços gerais. Augusto enfrentava filas de banco, levava e trazia pastas pesadas de documentos, varria, limpava as mesas de manhã, fazia compras no mercado para a tia, acompanhava as crianças do patrão na ida e no retorno da escola, consertava cadeiras, carregava os sacos de carvão que o tio encomendava no açougue do outro lado da rua para o churrasco oferecido nas sextas-feiras aos clientes.
As velhas máquinas de escrever raramente podiam ser usadas por Augusto. Cada uma das cinco escrivaninhas tinha uma Olivetti sobre ela. Ao lado, a Facit de calcular, com o rolo de papel, onde os escriturários se davam ao luxo de digitar sem olhar para o teclado. Por alguns dias Augusto não cedeu à tentação de colocar o dedo indicador numa daquelas teclas, durante o descuido de um ou outro. O papel carbono, já desgastado pelo uso, ganhava o vão entre uma página e outra do caderno brochura de Augusto. Ele aproveitava o que era jogado para desenhar. Às vezes apenas rabiscava palavras que nem ele depois conseguia ler. Comparava o escrito original com a cópia, que sempre apresentava algumas poucas diferenças por causa do estado de uso do carbono. Falhas apareciam e por mais normais que elas fossem, intrigavam Augusto. Com a caneta, ele completava o que faltava.
Com o tempo, Augusto, ainda sem receber qualquer ensinamento sobre contabilidade e um ignorante da datilografia, interessou-se pelo desenho. Copiava personagens dos gibis com perfeição admirável. Os pequenos detalhes do rosto do Pato Donald ou da blusa da Minie eram reproduzidos a mão livre. Dos personagens infantis o lápis de Augusto passou para os gêneros mais consumidos pelos adolescentes e jovens. Fantasma, Zorro, Mandrake, entre outros, ganhavam páginas inteiras do caderno, sempre com as cópias de carbono. Depois de pronta, a obra original era entregue para a mãe, que guardava a produção do filho com zelo especial. A cópia ficava no caderno.
Quatro anos depois, sem conhecer a contabibilidade e dispensado do serviço militar, Augusto deixou o escritório do tio, de quem ouviu a justificativa de que não tinha aptidão para a profissão. Foi então que Augusto trocou o curso colegial de contabilidade por outro e se empregou, após semanas parado, numa mercearia. Com uma pesada bicicleta de carga, fazia a entrega das compras. Nas horas de folga, varria, lavava, tirava o pó das estantes, arrumava a torneira do patrão, lavava o carro da patroa, suava e ganhava pouco.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 7

Os últimos anos de vida de Margarete foram de muitos sacrifícios. A morte de Francisco, o marido, permitiu um pouco de paz, apesar da perda de uma pessoa com quem ela conviveu por quase quatro décadas. Francisco deixou de trabalhar devido a uma esclorose que o tornou insuportável, com crises de alucinações em vários períodos do dia. No pequeno espaço da varanda da casa de fundo onde morava, na Vila Portuguesa, Francisco criou o seu mundo de invasores e inimigos mortais. Às vezes, costurava os cantos do lugar onde estava com as pontas dos dedos, formando um caixote imaginário ao seu redor.
Preso naquela redoma invisível, sentia-se protegido. Ainda assim, diante de alguma ameaça gritava com os adversários, assustando a vizinhança e constrangindo a família. Por dez anos Margarete testemunhou o declínio da razão de Francisco, cujo tratamento nem a medicina conseguiu realizar. Arredio, o marido tornava-se violento quando convidado a ir ao médico. Só largou mão da teimosia quando sentiu os impactos dos pulmões enfraquecidos e, sofrendo com a dificuldade de respirar, aceitou ser internado no Hospital Universitário. Permaneceu na enfermaria por menos de duas semanas e criou muita confusão para os enfermeiros, pois desvencilhava-se das sondas e tentava fugir.
Melhorada a condição física, Francisco recebeu alta e retornou para casa. Mas, sem a força de antes, nunca mais retornou para a varanda onde costurava os cantos do seu espaço com as pontas dos dedos para se proteger dos inimigos. Também experimentou a falta de apetite e reduziu a alimentação. A pimenta vermelha acumulou no pote e o café, antes ingerido com gulodisse, passou a sobrar diariamente na garrafa térmica. Acometido por um estado flagrante de definhamento, dias depois Francisco amanheceu sem vida, estendido sobre a cama. Pela expressão, foi-se sem muito sofrimento após causar muita angústia a Margarete e seus filhos.
Foi um velório desses que as lamentações e as tristezas vão-se com os relatos do sofrimento da pessoa que está no caixão. Comentários típicos serviam como consolo: "Pelo menos deixou de sofrer". Mal sabiam as pessoas que usavam desse discurso que, para a família, a ida de Francisco era o fim de um pesadelo de uma década.
Riuzim lembra que o quarto onde o pai faleceu ficou intocado por algumas semanas. Margarete dormia na dependência ao lado, pois muitos anos antes do adoecimento do marido já havia optado por um distanciamento. Uma vida de pobreza, alimentada principalmente pela teimosia de Francisco, criara uma revolta administrada silenciosamente pela mulher. Raramente Margarete conversava sobre os seus descontentamentos com os filhos. Uma história, porém, era repetida nas reuniões familiares. Ainda com as crianças pequenas, Francisco recebeu um dinheiro dos pais, suficiente para a compra de uma casa. Desprezou os apelos da mulher e visitou uma loja especializada, onde comprou dois revólveres calibre 38 e algumas caixas de munição.
Por isso, em nenhum momento antes e após a morte de Francisco, Margarete esboçou uma pontada de tristeza. Frases marcantes, como o nupcial "na alegria e na tristeza", escaparam de sua vida como a água que esvai por entre os dedos das mãos. O "felizes para sempre" era trocado por um olhar distante, destacado pela cor negra, onde se lia uma angústia latente. Riuzim imaginara que sua mãe, em nenhum momento de sua vida de casada, havia experimentado a felicidade.
Essa dura leitura da vida familiar não estava, infelizmente, equivocada. Passado o período de luto, Riuzim viu Margarete sorrir com mais frequência. A expressão de medo foi substituída aos poucos por um ar de singela normalidade sempre presente no rosto. Diabética, Margarete cometia as suas travessuras: esperava pela saída dos filhos para o trabalho e recebia a visita de um vendedor de doces. O preferido era a paçoca, comprada de pacote e escondida num canto do armário da cozinha. As idas constantes à cozinha anulavam os efeitos dos adoçantes empilhados na mesa ao lado da garrafa térmica vermelha com café sem açúcar.
A desatenção à saúde deu o seu primeiro sinal de alerta quando uma unha encravada evoluiu para a necessidade de amputar um dedo do pé. O que sobrou do mesmo dedo não cicatrizou e exigiu mais um corte em pouco tempo. Depois, num tropeção, um outro dedo se foi. O diabetes trouxe também prejuízos para o coração de Margarete, que já havia abandonado a costura e dedicava-se somente ao ar, graças ao dinheiro da pensão.
Vítima de um sistema público de saúde precário, Margarete só lutava pela vida por causa da insistência dos filhos. Não fosse isso, podia-se dizer que ela entregava-se também para o seu fim, por considerar que havia cumprido a sua missão. O curso superior concluído por Riuzim era um manifestado com muito orgulho, principalmente diante dos parentes abastados. Margarete confidenciava de vez em quando a Riuzim que, devido à pobreza, foi muito desprezada por alguns irmãos e pelo próprio pai. O estudo permitido aos filhos foi a herança que ela deixou, após um enfarto. Margarete morreu nos braços de um genro numa maca do Hospital Universitário. Riuzim, que havia levado a mãe para o atendimento de socorro, havia retornado para casa para providenciar a papelada do internamento.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 6

Bancário, Riuzim viveu cinco anos de contradições durante o período do curso de direito na Universidade Estadual de Londrina. Estudava de manhã e vestia-se como um acadêmico do período pós-golpe de 1964. A calça jeans exageradamente surrada, com a camiseta branca ou preta, era uma forte identificação desde que estampada com o rosto de Che Guevara ou a pose de grupos musicais alternativos da época. Tarancón, Inti Illimami, Isabel Parra, Mercedes Soza animam os ambientes universitários. À tarde, Riuzim trocava o tênis branco encardido por um par de sapatos sociais. A calça era de vinco e a camisa fechada até o pescoço. Na agência bancária localizada no centro de Londrina, Riuzim era um dos funcionários do setor de balancete diário. Por ele passavam as entradas e as saídas, os ganhos e as perdas do sistema de compensação.
À noite, o Projeto Pixinguinha trazia para o Cine Teatro Universitário Ouro Verde talentos que não eram executados nas emissoras de rádio. Quinteto Violado, Elomar Figueira de Melo, MPB 4, Paulinho da Viola mexiam com os sentimentos nacionalistas de um público privilegiado.
As rádios FM ainda não haviam chegado. Na política tanto quanto na cultura, a grande imprensa era repudiada até a condenção. Mas nem todos sabiam que por trás de empresários de comunicação oportunistas havia profissional éticos e firmes em suas posições. No entanto, no gargalo dos fechamentos das edições diárias, censores do governo militar brasileiro transformavam páginas com reportagens interessantes para o país em colunas de dicas de culinária. As produções internacionais de conteúdo político ganhavam maquiagens. No cinema, Doutor Jivago, um grande clássico, era anunciado com um filme de amor e desamor.
Nas universidades públicas, um acordo conhecido como MEC-Usaid havia criado o sistema de crédito em substituição ao seriado. Um estudante de medicina, por exemplo, tinha no mesmo dia aulas com alunos dos mais diferentes cursos. Às vezes, obrigava-se a vencer em minutos a grande distância entre um departamento e outro para chegar à sala de aula. A intenção era evitar que colegas de uma mesma turma atingissem maturidade e afinidade na maneira de pensar. As idéias eram proíbidas e a imaginação era uma prática perigosa. Conversar na porta da sala de aula levantada suspeita. Subversão era uma palavra em moda: quem não se alinhava com o que o governo militar achava como certo para o país era um subversivo, um revoltado. O tipo de revolta podia resultar em fichamento pela polícia política brasileira. Os mais extremistas ganhavam as celas das prisões. O receio de mortes e desaparecimentos inexplicáveis rondavam as casas dos intelectuais. Sindicalistas sumiam a caminho de mais uma assembléia. Alguns grandes nomes da política e da cultura foram expulsos do país. Para dar conotação puramente política a este tipo de violência, o governo e a imprensa diziam que estes haviam sido exilados.
Na música, na literatura e no teatro, aquele que ousasse ultrapassar o permitido pela censura era perseguido. Surgiram as metáforas e as entrelinhas para enganar os vigilantes pagos pelo governo. Dava-se um recado falando a mesma coisa de um jeito diferente. Jornais de expressão nacional optaram por imprimir edições com páginas em branco quando o conteúdo era vetado pelos censores. Era o recado ao leitor: tinhamos preparado uma reportagem séria, mas o governo proibiu e não estamos colocando trivialidades no lugar.
Riuzim não era um subversivo radical. Recebia pelos Correios publicações consideradas perigosas, como o periódico da convergência socialista. Simpatizava com os movimentos que pediam a volta da democracia. Se durante as tardes e os inícios das noites tratava de contribuir com uma causa contábil, fazendo os valores do que saiu e do que entrou ficarem iguais, de manhã, travestido de universitário, participava de assembléias convocadas pelo diretório central dos estudantes, publicava poemas no varal organizado pelo centro acadêmico do seu curso e usava os finais de semana para integrar grupos de estudos. Nem sempre abusava do seu dom da palavra. Às vezes, nas reuniões, preferia ficar calado, ouvindo os mais experientes.
Nem por isso Riuzim deixou de ser fichado pela polícia política, que mantinha olheiros nos campus das universidades. Riuzim, com o pouco que fez, foi fichado cinco vezes. Em algumas das fichas foi citado como líder da desativada UNE, a outrora expressiva União Nacional dos Estudantes. Era comum o governo arrebanhar estudantes, professores e funcionários das universidades como olheiros. Normalmente, os escolhidos eram os que mais manifestavam simpatia para com os militares no poder. Na turma de Riuzim, dois colegas, de acordo com os acadêmicos mais experientes, eram agentes infiltrados. Dizia-se que eles ganhavam por produção: quanto mais fichas de estudantes subversivos preenchessem, mais créditos teriam com os seus empregadores. Cargos importante dentro das próprias universidades eram dados como pagamento.
Foi nesse período que Riuzim trocou os antigos long play de Roberto Carlos, cujo sucesso de rádio era a música O Calhambeque, pela bossa nova e por outras obras da música popular brasileira. A preferência de leitura de Riuzim, limitada antes aos livros de bolso com ações de detetives, ganhou com autores renomadose otimamente referendados pela crítica. O teatro amador, com peças montadas por abnegados, passou a ser frequentado. Riuzim abriu os olhos para um mundo que o levou ao passado: a casa velha de madeira, onde em algumas refeições o pão substituiu o prato de arroz e feijão porque Margarete precisou entregar fiado um vestido recém-confeccionado. Foi ela quem deu a Riuzim a condição para ele chegar a uma universidade pública.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 5

Choveu lá pelas três horas da tarde daquela quinta-feira, véspera de Natal. Margarete dava o acabamento nos últimos vestidos e providenciava a entrega para as freguesas. Chamou Silvana para se trocar e recomendou que a filha fosse acompanhada por Riuzim até o hospital, no centro de Londrina, onde uma enfermeira aguardava o conjunto de blusa e saia que usaria na missa do galo, à noite.
Da Vila Nova até o local de entrega, os dois irmãos teriam que atravessar a movimentada rua Araguaia, calçada com paralelepípedo, subir pela via que margeava o Albergue Noturno, atravessar a linha férrea na altura do Samdu, prosseguir até a rua Belo Horizonte, atravessar a Quintino Bocaiúva e andar mais dois quarteirões. Ali estava instalada a Santa Casa. Muitas funcionárias do estabelecimento hospitalar encomendavam costuras para Margarete.
Terminada as duas peças, a costureira ainda teria um vestido e uma calça para arrematar. A previsão era de encerrar tudo até lá pelas quatro e meia, tempo suficiente para os dois filhos retornarem da entrega no centro. Só então Margarete passaria uma vassoura na sala, onde linhas e retalhos se espalhavam no chão de tábuas encardidas. A limpeza completa ficaria para o sábado. Depois, com os filhos, ela iria ao mercado de secos e molhados, onde compraria ingredientes para o almoço do Natal e dez garrafinhas de guaraná. Cada membro da família teria direito a um guaraná no almoço e outro na janta. Após as compras, ela mandaria Riuzim pegar Galega, a franga branca que nas últimas semanas usou e abusou da horta já que o seu destino era ser o prato principal da data festiva. Galega iria à mesa assada, para acompanhar o arroz branco, a macarronada, a maionese e o ponche, feito com abacaxi e vinho de garrafão misturado com água e açúcar. Um bolo preparado em casa seria servido na sobremesa. Como a casa não tinha forno, Margarete prepararia o bolo na frigideira. Depositada na chapa quente aquecida à lenha, o recipiente ficaria coberto com uma tampa, onde brasas dariam o ponto para a parte de cima da massa.
Margarete não tinha geladeira. Para tirar o calor do refrigerante, logo que as crianças chegavam do mercado com as sacolas elas tratavam de recolher água fresca no poço e encher uma bacia funda. As garrafinhas de guaraná eram colocadas de pé, cobertas de água. O refrigerante mais barato vinha de Assaí. Tinha um adocicado tão forte a ponto de suprir a ausência de sabor. Para as crianças, o gás que escapava quando a garrafa era aberta já fazia a festa. O mesmo gás, borbulhando no copo, complementava o clima de um dia diferente, com frango, maionese e guaraná. Havia outra opção para digerir o refrigerante com muito gosto. As crianças abriam as garrafinhas e faziam um pequeno furo na tampa, que voltava para a garrafa. Na refeição, chacoalhavam o frasco com o dedo fechando o buraco da tampinha, para formar pressão. Quando aberto o buraco, o líquido esguichava na boca.
Eventualmente, nos domingos, Margarete preparava um almoço mais caprichado. Para acompanhar, fazia um pacote de suco com água fresca. Acostumada a uma vida de sacrifícios, ela evitava incomodar a vizinha para pedir uma forma de gelo. Às vezes, sem que pedisse, por amizade ou compaixão alguém batia na porta da costureira com uma vasilha cheia dos cubos. Colocada numa caneca grande de alumínio para esfriar o suco de uva, o gelo formava bolhas e as crianças aproveitavam o descuido de Margarete para desenhar com as pontas dos dedos.
Não havia ceia de entrada do Natal na casa da costureira. Ela, o marido e as crianças esperavam o estouro dos primeiros rojões e iam para as janelas de madeira da casa. Viam, na maioria das vezes distantes, o brilho das explosões. A vizinhança, com rara exceção, organizava comemoração. Só um ou outro preparava um churrasco familiar. Os meninos iam para as ruas ver os fogos. Os adultos, quando muito, se confraternizavam com goles de vinho tinto.
Nas casas, a troca de presentes era um acontecimento também muito raro. Mesmo os carrinhos e as bonecas de plástico eram entregues antes aos filhos. Alguns chegavam no Natal com os seus brinquedos já estragados. Mas os pais faziam questão que os calçados e as roupas novas fossem usados somente após o almoço, quando as crianças ganhavam dinheiro para a sessão da tarde de um cinema do centro da cidade. Sem a companhia dos pais, meninos e meninas, em grupos distintos, vestiam-se com as calças de barras dobradas para acertar o comprimento, vestidos engomados, camisas e blusas cheirando loja e iam para o ponto de ônibus da rua Araguaia. A espera de mais de meia hora pela chegada do coletivo não era problema. O que valia era o passeio e a companhia.
Os cinemas eram rígidos e se o filme fosse para 12 anos, ninguém entrava com menos. Os mais miúdos tinham que apresentar carteirinha de estudante mesmo que estivessem na idade, pois os porteiros olhavam para a altura e supunham mais uma tentativa de alguém furar a censura. Passada a portaria, ainda havia o risco do lanterninha invocar com o grupo. As algazarras da turma incomodavam e os funcionários das salas de exibição pareciam saber que aqueles não eram frequentadores habituais. Os meninos preferiam os filmes de ação, cujas opções, para a idade eram os gêneros água e açúcar do velho oeste americano. As meninas, sem outra alternativa, acompanhavam. O pacote de pipoca salgada e o barulho das embalagens de balas só eram quebrados quando as luzes começavam a se apagar e o ribombo do sistema de som impressionava com o tema do cinema. Vez ou outra os expectadores eram premiados com maior quantidades de desenhos. Os epsódios de curta duração se sucediam, para preencher a grade de horário do estabelecimento.
O retorno para casa costumava ser feito a pé. A sessão terminava às quatro da tarde e o tempo era suficiente para os meninos e as meninas chegarem ao bairro ainda com sol forte, para trocar de roupa e brincar no campo de futebol. Além da brincadeira com bola, os que ainda estavam com os brinquedos em bom estado tratavam de exibí-los para os colegas. Naquele Natal Riuzim ganhou um trator de madeira, com carroceria carregada com cubos coloridos. O pai comprou o presente no sábado da semana anterior ao Natal. Riuzim sabia que o pai havia ido à cidade para as comprar e esperou pela chegada dele sentado na escada de madeira que dava acesso à porta da sala. O pai, com os pacotes de presentes, atravessou o campo de futebol, em diagonal, pouco depois das três da tarde. O presente foi entregue na hora.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 4

O sono é cortado pela forte pressão nas costas. A madrugada do fim de inverno é de temperatura amena e o cobertor está no chão, fazendo um monte sobre o par de chinelos. As mãos, pesadas, empurram o corpo contra o colchão da cama de solteiro, imobilizando-o. A reação é de medo e o desespero confunde. Seria um assalto? A tentativa de gritar por socorro é lograda com a voz que não sai. O esforço para abrir o pulmão e fazer o som atravessar a garganta é inútil. Nem grunhidos escapam dos lábios.
Vã também é a necessidade de ver quem é o inimigo. Olhar para trás é impossível. A cabeça, grudada na cama, gira somente até o lado, enquanto a pressão aumenta, o desespero chega ao pico e o medo enche os olhos de lágrimas. Por segundos, a vítima assume a condição de prepotência e consente que nada há a fazer. Então percebe que as mãos estão soltas, mas não consegue retirar os braços que estão sob o corpo. As pernas, da mesma forma livres, não se mexem.
A janela tipo baculante do pequeno quarto da pensão deixa uma fraca luminosidade entrar. Instalada no meio da porta envernizada, ela indica que não houve invasão do pequeno cubículo. A porta está devidamente fechada, conforme se percebe olhando da cama. O silêncio só é quebrado por carros que seguem pela rodovia federal a poucos metros do dormitório alugado por trabalhadores. Alguns, contratados por grandes indústrias, são do primeiro turno e devem deixar a pensão muito em breve. Outros vararam a madrugada e podem chegar a qualquer instante. Se há um atentado, estes perceberão anormalidades no quarto número quatro, localizado próximo ao portão de entrada.
Projeção equivocada. Não há barulho e o imobilismo é total. Como alguém notaria uma anomalia? É quando Riuzim desconfia de um pesadelo. Dentro do próprio sonho ruim ele luta para colocar em prática um ensinamento da mãe, que aconselhava concentrar os esforços para fazer a voz sair, que o pesadelo acabaria. Então Riuzim gritou a primeira vez e sentiu o pulmão arder. Gritou a segunda e emitiu um leve grunhido, que o fez pensar em mais uma tentativa. Saiu um som oco, breve e estranho. O pesadelo se foi.
Ainda atordoado, Riuzim pensou consigo mesmo: que bom que não é verdade, é só um pesadelo. Noites perturbadas estavam se tornando comuns nos últimos tempos. Às vezes, Riuzim despertava suando, após ter como personagens de seus sonhos o pai e a mãe, ambos falecidos há alguns anos. Nessas ocasiões, ele acendia a luz do quarto e procurava por água gelada, que não tinha. Contentava-se com a torneira do banheiro, de onde fluia um líquido de gosto ruim, um pouco pelo cloro usado no sistema de tratamento e outro tanto devido ao mau estado do encanamento da pensão. Após ingerir alguns goles, usando as mãos em forma de concha, Riuzim lavava o rosto com a intenção de despertar e não mais dormir por aquela madrugada. Por muitas manhãs o quarto número três recebeu o sol com a luz acesa.
Após retornar a cama, havia um momento dedicado à reflexão. Riuzim questionava o que teria feito para ser castigado com um pesadelo. Ou imaginava que os sonhos ruins eram avisos: o que minha mãe quis me dizer aparecendo daquele jeito no meu sonho? Enumera defeitos e erros, de acordo com a concepção que tinha sobre o que é certo ou não. Recapitulava os acontecimentos do dia e rememorava as pequenas discussões com colegas. Mas não encontrava uma causa, embora convicto de que a mãe, e nunca o pai, o recriminava por algum ato. Riuzim teve uma relação pouco amigável com o pai, a quem creditava a culpa pela situação de pobreza da família e, sobretudo, pelo sofrimento da mãe.
Feita a lista dos acontecimentos, Riuzim procurava o isolamento usando como recurso um fone de ouvido, conectado ao tocador de CD pendurado na parede, acima de sua cabeça. Certa vez, o CD de arco, com peso razoável, após ser usado e preso a um prego, caiu sobre as costas de Riuzim, que já dormia. O contato provocou também um pesadelo. Nele, a mãe cutucava as costas de Riuzim com o dedo indicador.
Os sonhos assustadores envolvendo a velha casa de madeira da infância de Riuzim eram constantes. Ora alguém espiava a casa pelas frestas do assoalho, ora tentavam abrir a janela da cozinha fechada apenas com a taramela. Por quantas vezes, no pedesadelo, Riuzim empurrava a porta para que invasores não penetrassem na casa. Em todas as ocasiões, junto com o alívio após o despertar Riuzim repetia: foi um pesadelo, se não conseguisse gritar eu não despertaria. Em seguida, contentava-se: graças a Deus foi um pesadelo.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 3

O ferro-velho da parte debaixo da rua Guaporé era onde os meninos recorriam para montar suas engenhocas. Entre as mais simples, o carrinho de rolimã. Bastava um pedaço de tábua, um jogo de parafuso grande com porca e arruelas, alguns pedaços de madeira e três rolamentos de aço. Dois deles, menores, ficavam na parte de trás. O da frente, montado no pedal que funcionava como volante do brinquedo, variava de tamanho de acordo com quem fabricava. Os modelos mais simples eram os preferidos, mas vez ou outra alguém aparecia com uma novidade: uma pintura com o aproveitamento do resto de tinta encontrado na despensa da casa, uma almofada feita com um pedaço de espuma e tecido sorrateiramente pego da gaveta da mãe e até um sistema de freio com o uso de um pedaço de cabo de vassoura. Uma borracha pregada na parte de baixo prendia a rodinha traseira e brecava o carrinho.
As ruas não tinham asfalto, mas os meninos tratavam de providenciar uma pista lisinha, no formato de um oito. Alguns baldes de água sobre a poeira marrom eram os materiais usados na construção. Os que tinham bicicletas ajudavam, percorrendo a pista até compactar o solo. O oito era montado durante a semana no campo de futebol onde aos sábados e aos domingos eram realizadas as rodadas do campeonato varzeano. Por isso, a engenhosidade das crianças era condenada pelos boleiros, que precisavam jogar em um campo sem grama e de piso duro. Os próprios autores da arte sofriam as consequências quando trocavam o carrinho por uma pelada. Não foram raras as vezes em que Margarete teve que socorrer seus filhos com água e sal jogados sobre feridas nos joelhos.
À noite, após o jantar, os personagens do campo de futebol eram outros. O grupo de rapazes aproveitava uma das extremidades para formar uma roda e jogar conversa fora. Em outro espaço, não muito distante, as meninas se reuniam para as brincadeiras de roda. Cantigas singelas atravessavam a distância e batiam nas janelas das casas das famílias, tranquilizando-as: a voz da filha cantando em coro com as coleguinhas era a garantia de que do lado de fora da casa nada além do anormal acontecia. Já os garotos, donos supremos do pedaço durante a manhã e à tarde, ocupavam à noite o campo e as ruas que o circundavam em correrias que só eram encerradas após os gritos mais austeros dos pais. Brincadeiras do esconde, mãe da rua, pega-pega e outras diversões nada elogiada pelos adultos sujavam as roupas, encardiam os pés e arrepiavam as donas de casa quando os pequenos se recolhiam. Os que tinham torneiras no quintal de casa eram obrigados a se lavar com a água fria inclusive no inverno. A desobediência, de acordo com a ameaça gritada pela mãe de dentro de casa, era dormir fora caso os braços, o pescoço, o rosto, as pernas e os pés não estivessem limpos. A bola queimada era a única brincadeira que aceitava meninos e meninas. Mas quem entrava no jogo já estava na adolescência e aproveitava o momento para os primeiros namoros.
Havia meninas que contrariavam os pais e jogavam bola com os garotos. Chinelos encostados nas traves demarcadas com pedaços de tijolos, elas recebiam abraços quando marcavam gols ou faziam defesas. A habilidade com a bola nos pés era dispensada para elas. Nenhum menino reclamava quando uma menina, por grossura, entregava a bola para o adversário. Baixinho e raquítico, Riuzim não tinha a mesma sorte. Vestindo enorme calção de elástico batendo nos joelhos, ele só entrava em campo quando um ou outro jogador resolvia parar para beber água ou urinar na beira do morrinho de grama que servia como arquibancada. Mas logo saia, pois errava na recepção e nos passes. Quando faltava jogador em alguns dos dois times montados, Riuzim entrava, mas era mandado para o gol. Entorpecido pelo desprezo dos colegas, Riuzim ficava mais inseguro ainda e fechava os olhos quando o ataque adversário avançava sobre ele. Então os colegas chegavam à conclusão que era preferível jogar com um a menos do que tê-lo no time.
Ruim no futebol, bom na confecção de pipas. Riuzim aprendeu a fazer e a empinar seus papagaios de um rapaz que morava vizinho. Sabia afinar as varetas com paciência e exatidão, de modo a evitar que o brinquedo ficasse penso. Criava modelos misturando cores e inovando nos formatos. Os rabos, em argolas, tinham enfeites que só não ficavam perfeitos porque colados com a mistura da farinha de trigo com a água. Usava dois carretéis de linha para soltar a pipa e retornava para casa com a cara avermelhada pelo sol que batia diretamente na pele. A habilidade com o brinquedo rendeu uma fama para Riuzim. Em pouco tempo, garotos de ruas vizinhas passaram a procurá-lo para confeccionar as suas pipas. Como recompensa, ganhava figurinhas e bolinhas de vidro. Nas época de festas juninas, o pagamento era feito com bombinhas.
O bilboquê, que os meninos do bairro chamavam de bibloquê, também reunia adeptos habilidosos. Alguns encomendavam os seus próprios modelos na serraria da rua principal. Outros pediam aos pais que comprassem formatos diferentes em bazares do centro da cidade. Os malabarismos com o brinquedo assanhavam as namoradeiras e valiam pontos no jogo da paquera. Alguns conseguiam embirocar após as piruetas e as trocas de mãos, arrancando suspiros das admiradoras. Era a fase também do cigarro escondido dentro das meias. Em algumas rodas de meninos, um erro devia ser pago com um cigarro. Normalmente, o prêmio chegava ao grande vitorioso amassado e umedecido pelo suor das mãos. Riuzim era um péssimo praticante de bilboquê. Para vencer a frustração de não conseguir embirocar com um brinquedo de madeira, fabricava o seu com um pedaço de pau, um barbante e uma lata de massa de tomate. Com ele nunca errava, mas tinha receio de levá-lo para a rua e ser vítima de chacota dos colegas.
Melhor no jogo do pião. Não que Riuzim fosse um especialista, mas conseguia competir de igual para igual com meninos que eram considerados muito habilidosos. Por muitas vezes Riuzim partiu pião de adversário com o seu. Melhor ainda com as bolinhas de vidro. Esperto, Riuzim gostavo de jogar nos dias de chuva. Era quando calçava um botinão velho e pisava no barro com força. Durante o jogo, mesmo não vencendo levava para casa muitas bolinhas, que grudavam na sola do calçado e eram tidas como desaparecidas. A festa durou até quando outros meninos, usando a mesma tática, acabaram apanhando de outros da rua de cima e todos desistiram do engodo.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 2

Margarete jamais imaginara que moraria em uma casa com tamanha precariedade. Feita de madeira reaproveitada, tinha frestas enormes em alguns pontos, onde nem as mata-juntas, pregadas em falso sobre a madeira podre, conseguiam disfarçar. O chão era de tábuas e o sonho de dar brilho ao piso com uma enceradeira era tão distante quanto as estrelas de luminosidade mais fraca que pudessem ser vista espalhadas pelo céu.
Em um canto da sala, perto da porta que levava à cozinha, uma tábua apresentava uma enorme falha. A fresta mostrava o porão de terra, com altura de quase um metros e meio, pois a casa ficava suspensa por toras. Quantas noites Margarete acordou sobressaltada durante as madrugadas após pesadelos. Nos sonhos ruins, personagens estranhos invadiam a moradia pelas frestas.
Portas e janelas eram fechadas com taramelas artesanalmente confeccionadas. Só na porta principal, a da sala, que dava para a rua, Margarete havia providenciado trincos comuns dos lados de dentro e fora, daqueles vendidos em casas de secos e molhados. Quando toda a família saia, um cadeado servia como proteção. Precaução vã. As janelas da sala e dos quartos ficavam no alto, mas a da cozinha, muito baixa, dependia apenas de alguns empurrões de leve para ser aberta. Com a pressão, a taramela girava e abria.
A porta da cozinha, que se abria para os fundos do quintal, continha um remendo enorme na parte de baixo. Fixado com pregos sobre a madeira podre, o conserto normalmente se soltava e fazia a festa para os bichanos. Dali os gatos invadiam a cozinha, principalmente nos dias em que o cheiro de peixe tomava todo o ambiente.
A privada ficava do lado de fora, lá no fundo do quintal. Erguida sobre o buraco aberto para acumular as fezes, a casinha escorada com vigotas exigia reparos com certa constância, pois a terra em volta, não compactada, sofria as consequências das chuvas e escorria terreno abaixo. O medo de Margarete era ver a privada despencar com alguma das crianças dentro. Nem para os banhos o local era usado. O suporte que pendia do teto sem forro da casinha antes segurava o balde, com buracos abertos no fundo com prego, sobre a cabeça de quem se banhava. Depois passou a cumprir papel de um gancho para pendurar os jornais utilizados após as necessidades. As crianças eram banhadas em uma bacia do lado de fora da cozinha. Os adultos trancafiavam-se no quarto para a higiene.
A casa não tinha forro e estampava teias de aranha nas telhas. Algumas, enormes, podiam ser vistas à noite, da cama, quando Margarete se preparava para dormir. Antes de apagar a lâmpada incandescente avermelhada, que descia quase até a altura da cabeça para que o interruptor, no próprio soquete, pudesse ser alcançado, Margarete punha-se a olhar o telhado empoeirado, com remendos de plástico em alguns pontos, e pensar no seu destino. Em dias de menor reflexão Margarete planejava as atividades da manhã seguinte: acender o fogão de lenha para esquentar a água e fazer o café; iniciar o cozimento do feijão; ferver as roupas claras para diminuir o encardido; varrer o chão; aguar as plantas; mandar as crianças para a escola e viver, viver, viver e viver.
A casa vizinha, recém-construída, ainda era de madeira mas tinha o chão sintecado, uma tecnologia nova na época que dispensava o uso do escovão ou da enceradeira. Margarete pensava que nem uma boa vassourada com água e sabão caseiro deixariam o chão dela tão bonito quanto o da vizinha.
O fogão à lenha, construído em cimento, era um tormento no verão, mas causava inveja no inverno. Com uma chapa de três bocas, o enorme utensílio preparava um feijão incomparável, que chegava ao ponto após muitas horas de fogo. O café, acondicionado num bule de alumínio, ficava ao lado e mantinha a quentura. Uma espécie de balcão de tijolo e cimento escorava a lenha. Nos dias de frio, alguns gatos aproveitavam o descuido e cochilavam ao lado da madeira em chamas. O amendoim ganhava ponto esparramado sobre a chapa. Margarete descascava-os para as crianças experimentarem ainda quente. Elas é que diziam se a torra já era suficiente. A batata doce raramente era cozida. A família preferia assá-la sob as brasas. Assim também faziam com o inhame e o pinhão. A espiga de milho verde, espetada por um arame grosso, ficava boa para ser comida quando apresentava no extremo dos grãos a cor escura, de queimado.
Uma mesa enorme, de madeira bruta, reunia copos, canecas, panelas, pratos e talheres. O pequeno armário instalado na cozinha era insuficiente para as poucas peças. À noite, guardanapos protegiam as louças dos insetos, mas o risco do contato das baratas e dos ratos exigia a lavagem de tudo o que ficava exposto diariamente. Uma irmã de Margarete havia, recentemente, encomendado um conjunto de armários de cozinha. Restava a ela, quando visitava a irmã, admirar as peças novinhas e sentir uma espécie de inveja.
Eram quatro os filhos de Margarete. O mais velho tinha nove e dele formavam-se as escadas, com oito para a menina, sete para o terceiro e seis para o mais novo. O pai, um mecânico, aproveitou a demissão e decidiu virar autônomo, vendendo e entregando doces, salgados, verduras e outros produtos para os bares e as mercearias do bairro. Usava uma bicicleta para fazer as visitas e anotar as encomendas, com a intenção de comprar um carro em pouco tempo. Não levou sorte no negócio e continuar a pedalar, mas com uma bicicleta mais velha. Ainda novo, cruzava o bairro por ruas de paralelepípedos e vias sem calçamento, ajuntando poeira no suor. Margarete, sempre trajando simples e nunca trocando os chinelos de tiras, era uma costureira e com o dinheiro que recebia ajudava no sustento da casa. Simples, desajeitada, mas com uma beleza peculiar no rosto, emoldurado por cabelos pretos e lisos, ela trabalhava a vaidade das freguesas com vestidos costurados numa velha Vigorelli.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 1

Havia um pé de limão rosa no fundo do quintal, à direita de uma pequena área gramada e pouco antes da cerca improvisada com madeiras que restaram da construção da casa. Imperfeitas, as tábuas formavam uma fila de pouca estética. Alguns vãos entre elas davam apenas para as mãos. Outras mantinham espaços suficientes para enfiar o braço e alcançar a horta do quintal vizinho, onde as cebolinhas verdes assanhavam perto do horário das refeições.

Um abacateiro enorme formava sombra bem onde uma viga fincada no chão de terra mole dava o ponto de partida para os seis arames do varal. Às vezes, após as chuvas, uma estaca feita de um galho de árvore servia de escora. Envergada pelo peso, ela suportava a viga inclinada para o lado onde os arames, abarrotados de roupas molhadas, faziam pressão. Calças de brim, camisas de algodão, cobertas, lençóis, meias e peças íntimas masculinas e femininas, de cores sóbrias ou vivas, pareciam bandeirolas gigantes e disformes.

A cana-de-açúcar, de gomos avermelhados e folhas expressivamente verdes, desenhava um redondo pouco abaixo do pé de manga coquinho. A touceira ocupava perto de dois metros quadrados do terreno e perto dali um pedaço de tronco de árvore, serrado ao meio, era usado como batedor de roupa. Com pelo menos dois metros de comprimento e cinquenta centímetros de largura, tinha uma ponta apoiada no chão e a outra, sustentada por duas estacas, a uma altura de cerca de oitenta centímetros do chão. No pé, tijolos e telhas amassados faziam um piso, para evitar que as sandálias de tiras absorvessem o barro.

Mais à esquerda, um galho grosso da mangueira descia uma corda. Na ponta, a tábua extraída de um caixote era o assento. Por um buraco grotescamente furado a corda atravessava a madeira. O nó duplo era uma tentativa para manter a peça, responsável pelo conforto de quem se divertia, pendurada. Mas era o prego fincado até o meio e entortado para formar um grampo que segurava a brincadeira.

O jardim misturava espécies e perfumes. Tomava parte da frente do quintal e em alguns pontos disfarçava a irregularidade da cerca. Plantas mais altas e de folhagem mais densa tinham muitas finalidades. À noite, ou sustentavam personagens durante o esconde-esconde, ou ocultavam pregadores de peças que assustavam as meninas que passavam pelo portão após a missa na capela da rua de cima.

O cachorro preto e branco ficava solto. Por mais que pudesse ganhar a rua e as casas da vizinhança através dos vãos entre as tábuas da cerca, o animal limitava-se à área protegida. Por algumas vezes Bilú correu muito para escapar dos laços dos homens da "carrocinha". Entre os meninos, a lenda era de que cachorro pego virava sabão. Havia muita choradeira entre os pequenos quando um bicho de estimação era levado pela carrocinha.

Nem as galinhas caipiras, ciscando à vontade perto do valo aberto pela corredeira da água do batedor de roupa, incomodavam o cão. Essas aves teriam no final do ano um destino traiçoeiro: a panela ou o forno. Por isso, até a engorda, tinham privilégio no canto do quintal onde eram jogados os restos de comida para alimentar a criação.

No caminho que levava ao poço, onde a água era puxada várias vezes por dia num balde, o maracujá doce pouco se importava com as outras plantas. Vigoroso, subia por um balaústre, invadia o tronco do abacateiro, estendia suas ramas até a viga que suportava os varais e aproveitava um dos arames para atravessar o terreno até os fundos. Seus frutos eram saborosos. Os adultos usavam colheres de sobremesa para prová-los, mas os meninos preferiam as mãos para achar a casca dura, beber o caldo pelas frescas e depois enfiar os dedos para apanhar as sementes cobertas pelas polpas adocicadas.
Foi ali, naquele pequeno terreno onde a casa de madeira velha e sem pintura escondia móveis precários e crianças desdentadas, onde nasceu Riuzin. Cabelos espevitados, olhos esbugalhados, bochechas da cara sujas e avermelhadas, nariz escorrendo, e pés no chão, o menino corria o mundo usando como limite os quatro cantos do quintal de um bairro de Londrina, no Norte do Paraná. A vida de sonhos e fantasias tinha um tempo certo: acordar, tomar café torrado e moído na hora com leite in natura, correr, andar de costas, assobiar, subir em árvores, construir castelos, destruir a base do inimigo, pilotar uma moto feita com cabo de vassoura, enfiar o pé na lama, limpar a sujeira da perna com poeira, correr de novo, andar de costas outra vez, descer da árvore, arrebentar o arame do varal, esconder, aparecer, enxugar o suor do rosto com o lençol posto para secar, levar bronca, xingar, fazer desaforos, retrucar com birras, tomar banho, jantar, zombar com os irmãos, dormir e acordar. Tudo era fácil, apesar de agenda tão lotada.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Crônica - Lua e neblina

O amanhecer de Londrina inspirou na manhã desta segunda-feira, 12 de janeiro de 2009. O Sol despertou com preguiça e deixou a Lua Cheia, até às oito horas, aparecer gigante atrás da cabeceira do prédio em frente ao meu. Corri para a outra janela e vi a neblina escondendo a mescla de edificações e verde no lado Oeste da cidade.
Pensei numa foto digital, mas não ousei arredar o pé do lugar. Preferi apenas contemplar o espetáculo que veio como um prenúncio: algo de bom está para acontecer esta semana. São muitas as pretensões. O coração que navega em águas turbulentas, a necessidade de um um bom projeto profissional, o acerto da hipoteca, as viagens de passeio adiadas.
Via abaixo uma moça correndo pela calçada em direção ao ponto de ônibus. Usava um agasalho leve que, provavelmente, escolheu como um paliativo para aquela hora da manhã. Mais adiante, ao longo do dia, ela teria que dispensar a vestimenta e continuar o seu trabalho com a blusa sem manga, de malha fria. Na pressa, aposta que a moça não pode ver a Lua Cheia da manhã de segunda. Ou não teria ela nenhuma inspiração para admirar algo que seria mais apropriado para um momento poético e de saudosismo.
Redonda e prateada, ela venceu as nuvens e se mostrou inteira. Entendi aquilo como um desafio. Por tantas vezes eu a tomei e presentei pessoas do meu apreço. A moça que correu para o ponto de ônibus não quis a Lua Cheia. Eu a quis, mas precavi-me do egoísmo e a deixei quando ela raspou a quina da cobertura do prédio em frente e se foi. Quantas saudades ela me deixou.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Crônica - Sintomas

Um vento leve corta os raios de sol e balança as folhas das árvores. A manhã de janeiro é matreira em Londrina, no Norte do Paraná, porque lembra o mar distante. Quem estaria por lá, bronzeando-se ao sabor da brisa e banhando-se com os respingos das ondas que batem na areia?
O calor invade a sala do escritório pela janela de vidro. Nem a gigantesca edificação levantada na direção do céu, a menos de trezentos metros de onde se está, consegue abrandar a claridade. Os olhos ardem, a pele sente, o coração pede um outro lugar.
A queixa é menos geográfica do que parece. Os paliativos, no entanto, são possibilidades descartadas. De nada valeria fugir do mormaço num ambiente aclimatado, pois há o caminho de entrar e sair, onde a temperatura é a mesma que se sente lá fora.
Temperatura, esta é a palavra mágica! Ela seria aceitável a qualquer ponto do termômetro, desde que houvesse o pleno controle das ansiedades, quaisquer que sejam os motivos delas se fazerem constantes numa manhã de sol do mês de janeiro.
Mas o que incomoda é o sentimento que o coração irradia. A cada batida, uma ferida parece se abrir. E chega o momento em que a pulsação compassada vira uma hemorragia. Então o corpo esquenta, a cabeça gira, os pulmões pedem ar e a janela vedada impede qualquer contato com o mundo do lado de fora.
Às vezes o vento cessa por rápidos segundos. As folhas deixam de balançar e refletem mais forte ainda a luminosidade do sol. Aquelas que ficam nas copas parecem mais claras, de um verde claro mas intenso. As que estão abaixo, escurecidas pelas sombras, confundem-se com os galhos marrons que se erguem por cima dos postes.
Uma fachada espelhada esconde hóspedes atrás do vidro fumê, mas sabe-se que quem está do outro lado observa os de fora incógnito, estabelecendo um clima de mistério. No outro lado, o prédio residencial pede uma pintura. Não muito longe, num salão de beleza, mulheres buscam a perfeição. Na avenida, carros sobem e descem e balconistas ganham a vida.
Vida, outra palavra mágica! Ela escapa das mãos numa manhã de janeiro, de sol forte e vento leve e matreiro, dentro de um escritório de janela vedada. As folhas balançam lá fora.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Conto - Prenúncios...

Núbia pressente a chegada da Lua Cheia pelas batidas do coração. Calendários com os períodos discriminados de nada valem para ela.

- É para começar hoje, mas há prenúncio de chuva. As nuvens vão encobrir o céu à noite...

Assim, a Lua Cheia, para Núbia, ficava para depois da instabilidade, caso a estiagem viesse antes do fim do período.

O que regia as mudanças, dizia a moça, eram os anúncios que a alma colocava no seu espaço interior. Felicidade, angústia, mágoa, tristeza, revolta, calma, agitação, expectativa, incerteza ou paciência davam os sinais. Códigos assimilados por Núbia desde criança, parecidos com os prenúncios captados pelos antigos: se a perna há anos recuperada de uma fratura doer, espere por mau tempo...

Antes, até a adolescência, estes pressentimentos estavam mais ligados às recompensas materiais. O presente esperado no aniversário ou o ovo de páscoa prometido pela tia, por exemplo. Núbia comandava um jogo de adivinhação com as amigas.

- O meu coração diz que este ano o presente de Natal vai ser bom...

Depois, na juventude, o novo aparelho de telefone celular, o par de brincos, as sandálias de saltos altos e os outros objetos e brindes foram substituídos por sentimentos.

- Hoje não estou bem. Acho que vou dispensar o namorado...

O dia do noivado sofreu mudanças por duas vezes após adiamentos decididos em cima da hora, porque o coração de Núbia previu azar no primeiro cancelamento e riscos no segundo. A terceira tentativa vingou graças à persistência e criatividade de uma amiga, que conseguiu dar nova leitura à interpretação feita por Núbia para um sentimento de angústia:

- Não é angústia, amiga. Você está é estressada com os preparativos. Vai firme que o que você está sentindo é ansiedade. O noivado vai acontecer daqui a pouco e depois tudo se normaliza.

O casamento foi uma boa prenda. Núbia só teve sentimentos positivos e as previsões de filhos, casa própria, carro novo e bons empregos para o casal foram cronologicamente anotadas naquela agenda imaginária que cada pessoa traz dentro de si.

Vieram os filhos. A primeira, hoje uma bela adolescente, bateu com os prenúncios da alma de Núbia, apresentados ainda na primeira semana da gravidez, antes da realização de qualquer exame. O segundo valeu a perda de uma aposta para a vizinha, que ainda na fase de desconfiança de uma nova gravidez, quando a menstruação atrasa, disse que desta vez viria um menino.

- Nada disso. Já senti que vou ganhar outra menina...
Veio um garotinho, traços parecidos com o do pai. Para evitar erros e incomodações no futuro, a produção foi encerrada por ali. A mania de prenúncios de Núbia rendia a ela algumas ironias disparadas por parentes e conhecidos.

A compra da casa própria e de um carro novo bateram. A separação, após 14 anos de casamento, estava fora de cogitação. Nunca chegou a ser ventilada, mas Núbia tratou de colocar um remendo na situação:

- Eu bem que senti no dia do noivado que a gente não ia acabar bem.

Seguiram-se anos de agonia. O fim do casamento pesou o tamanho de uma depressão que em alguns momentos foi profunda. Núbia jurou que jamais se casaria outra vez. O casal de filhos, na pré-adolescência, engoliu momentos de humor enchovalhado. A idade biológica de Núbia, na faixa dos trinta e poucos, não conferia com o perfil físico. Relaxada na maneira de se vestir, cabelos desalinhados e a pele do rosto maltratada pela falta de uma maquiagem fazia daquela mulher uma pessoa desprezível. O comportamento, idêntico ao de uma velha ranzinza entrando na fase do esquecimento e da teimosia, complicavam tudo.

Então surgiu um sapo na vida de Núbia. Ela apostou que bastaria um beijo para transformá-la num príncipe. A fase dos prenúncios, que havia desaparecido com o período das penúrias, voltou com o príncipe. Ambos decidiram que a Lua Cheia seria um marco em suas vidas. Foi numa noite iluminada por ela que eles se conheceram, no retorno de uma celebração religiosa.

Mais do que um símbolo de amor, a Lua Cheia passou a ter o papel de apaziguador após pequenos desentendimentos. Por isso ela era esperada com muita expectativa. Núbia, com seus pressentimentos, sabia quando a Lua chegaria como uma grande conciliadora.

Havia uma dependência para ser resolvida desta. Uma questão que precisava de resposta. Um caso de vida e morte no universo das coisas do amor. O tempo fechou, o céu nublou, a chuva caiu. E a Lua Cheia não veio.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Crônica - Para muito além

Segue adiante,
vai...
Procure o pontilhado do destino
e despiste a razão.
Use as setas do coração
e ande no rastro do teu sonho.
Olhe distante,
mas acene para os que ficam.
Carregue a bagagem da alegria,
aspire e solte o ar,
exercite o pulmão
e sinta-se livre.
Feche os olhos,
conte os passos,
tropece,
caia
e se recompanha.
Aposte consigo mesma,
quantos metros deixei pra trás?
Tantas pessoas ficaram.
Vai...
tua alma manda seguir,
busque o teu plano de vida,
pare nos semáforos
e não retorne.
Espere, tenha paciência,
o sinal abre cedo,
o outro dia se mostra além horizonte
e tudo é perto,
a distância é miragem,
o sonho é possível
e a ferida se fecha.
Vai...
O mundo se abre,
a alma se expande,
as horas passam
e a dor se esvai.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Conto - Outros olhos

Sem olheiras, com um brilho intenso, os olhos de Manuele denunciaram na manhã de terça-feira um novo tempo. Muito diferente daqueles de quatro dias atrás. Inchados, eles se escondiam nos fundos da mancha escura que encobria as poucas rugas e não disfarçavam uma madrugada de lágrimas. Por que Manuele chorou?
Esbelta, corpo caprichadamente torneado, alta e clara, ela é uma mulher que chama atenção pela beleza do rosto. Manuele parece sempre estar pronta para um sorriso leve, sem a necessidade de forçar os lábios. A sútil contração do músculo facial repuxa delicadamente a pele do nariz e sobressalta as maçãs. As pálpebras descem. E a luz se acende. Não com uma claridade perturbadora e incomoda, de ofuscar. É com uma luminosidade apenas suficiente para arrancar de quem a vê sorrir um suspiro de bem-estar e fascinação.
Seria possível apostar que em situação normal Manuele deixasse de ser percebida. Seria uma mulher no meio de tantas outras que usam o cotidiano para esconder a vaidade atrás de uma simplicidade interessante. Nada de retoques exagerados na maquiagem, nenhuma carapuça na altura do vestido ou no tamanho do decote. Ou seria esta a contradição? Por não se mostrar dentro de uma apertada calça jeans a moldar o formato dos quadrís Manuele seria uma sensação?
Fina e discreta na estampa, o difícil era imaginar o que se passaria no coração daquela mulher. Manuele é eclética na preferência musical, mas de ouvido se percebe que ela tem bom gosto. Um jaz, um clássico, uma bossa nova e uma balada com certeza estão na lista de proridades. São CDs que caem facilmente no leitor óptico do portátil que ela mantém sobre a escrivaninha. Canções que ambientam e evocam a singela vontade de pensar romanticamente na vida e nas pessoas que dela fazem parte. Às vezes, os acordes são nostálgicos. Outras vezes os tons são modernistas. Mas nada sai do compasso.
Imagina-se que ela ame. Alguém ou alguma coisa deve ter o especial apreço de Manuele. Nada, porém, espalhafatoso, com extremismo nos gestos e na manifestação dos sentimentos. É provável que Manuele consiga amar de um jeito brando, porém fortemente expressivo no conjunto de qualidades que ela expõe sem fazer força: mãos que acariciam com a pressão devida, boca que beija com a sutileza necessária, pele com pele, coração com coração, satisfação com satisfação, prazer com prazer.
Difícil apostar que Manuele seria diferente sorrindo ou chorando. A simplicidade, a beleza, o discreto charme se confundiriam. Só os olhos inchados, ainda assim lindos, invocariam duas perguntas silenciosas: Por que Manuele chora? Por quem Manuele chora?

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Crônica - Ponto de partida

Sim, já tenho um prefeito! Não é aquele em quem votei. Trata-se de um cara que eu, como cidadão londrinense, deveria conhecer politicamente. Sou, no entanto, obrigado a considerá-lo um objeto estranho no meu universo de pessoa que é obrigada a viver a política como um elemento fundamental do cotidiano. Como uma peça - importante ou desimportante - da sociedade, voto, pago impostos, contribuo de uma forma ou de outra com a redoma de vidro que protege com alguns benefícios os homens públicos.
O tal que virou prefeito foi padre. Lembra rapidamente dele numa paróquia da Vila Portuguesa. Nada mais. Ouvi boatos em torno de sua curta missão religiosa, mas isso não me interessa. Quanto ao seu novo ofício, o que tenho a firmar agora é o meu compromisso de ser um fiscal rigoroso de seus atos, mesmo nunca ter imaginado ele como o prefeito da minha cidade.
Minha cidade! Quero sempre dizer estas duas palavras de boca cheia. O que aconteceu com ela? Desastre na política, vexame no andamento da coisa pública, falta de segurança, desenvolvimento estagnado, oferta de emprego abaixo da expectativa. A impressão que se tem é que tanto nisso quanto naquilo a cidade está loteada. Isto pertence a tal grupo, aquilo é de responsabilidade da turma de fulano e assim por diante.
Dou-me ao direito de manifestar a minha preocupação e indignação como trabalhador. Jornalista, tenho uma carreira de 28 anos na profissão. Comecei de baixo, entrando pela porta da frente, e nunca precisei usar a porta da cozinha para ocupar alguma vaga. Em 2004 fui obrigado a deixar Londrina após renúnciar ao cargo de chefe de redação que ocupava no maior jornal da cidade. Numa lista de onze demissões apresentados pelo proprietário da empresa, dois nomes eram meus auxiliares diretos. Recusei, mas a empresa decidiu-se pelo corte sem o meu consentimento. Sem o cargo de chefe de redação fui demitido.
Sem emprego em Londrina, fui tentar a sorte em Brasília, onde nunca consegui passar da portaria de entrada dos jornais, onde deixei currículos com as recepcionistas. Nunca recebi retorno de nada. Pensei em visitar os gabinetes dos parlamentares, mas fracassei. Quando visitei, não pedi ajude, ofereci projetos que jamais foram analisados. Foram oito meses de nada, exatamente nada.
Dali fui para Santa Catarina, onde consegui emprego de coordenador regional e editor-chefe de um jornal, em Jaraguá do Sul. Fiquei três anos na cidade e fui demitido após ter sido informado que eu tinha um temperamento arredio aos planos da rede gaúcha que havia comprado o jornal catarinense. Dois meses antes, eu havia recebido a proposta de um político londrinense para retornar à minha cidade.
O problema é que sou um homem de redação de jornal. Sinto-me desnorteado como assessor de comunicação. Travam-se as pernas e os braços. A cabeça dói. O coração sente. Quero voltar para um jornal. Onde?
Eis um retrato fiel e chocante: um cara à beira da aposentadoria tem que recomeçar a carreira. Vou ter mais uma vez que deixar a cidade, pois aqui, ao que parece, a minha experiência profissional vale muito pouco. Estou prestes a abandonar mais uma vez a minha cidade, nas mãos de um prefeito que não participou do processo democrático no qual eu participei como eleitor. Que meus amigos londrinenses lutem para que ele surpreenda e faça muito por esta cidade. Eu sou obrigado a ir...

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Crônica - Sem vírgulas

Procurei o último halo de luz na última rua do último bairro antes do córrego que separa a minha cidade que é a primeira para mim entre todas as outras que são as primeiras para outras pessoas. Foi para iluminar o teu rosto na foto preto e branco emoldurada pelo negro do borrão da máquina copiadora que reproduziu a sua cédula de identidade num papel branco tanto quanto o alvo da luz neon pendurada num poste cinza de um lugar escurecido pelas sombras das árvores.
Andei quilômetros para testar a resistência da minha alma no sobe e desce da rua inclinada à esquerda na curva onde pensei encontrar respostas para perguntas que me fiz e nunca pensei responder. Foi para teimar comigo mesmo que o cansaço físico é o único remédio para curar o aperto que se dá no coração quando ataca uma solidão estranha de querer ficar mais solitário no meio de tanta gente indo e vindo e sabe-se lá quantas andando para aliviar o peso que dá estar sozinho entre os que chegam e os que vão.
Tentei apagar o sol com a ponta do dedo indicador da mão direita pressionada contra a superficie brilhante do vidro por onde ele mandou um raio para esquentar a face suada do meu rosto encostado na janela da parede de um apartamento quente. Foi para sentir a impotência de não poder controlar o calor do meu corpo aquecido pelo sol apesar da frieza dos meus sentimentos congelados pelo ceticismo e pela descrença às vezes em mim mesmo e outras vezes nos outros.
Revi na contraluz a sua foto preto e branco para matar a saudade e lembrar dos seus olhos olhando para a câmera fotográfica que registrou um lance do seu jeito de encarar a sua identidade em um documento guardado no compartimento apertado da sua carteira de couro conservada na bolsa de sintético que te acompanha aonde você vai a qualquer hora do dia e da noite.
Refiz o trajeto de quilômetros para calcular em quanto tempo eu crio coragem para andar no teu caminho qualquer que seja o momento e descubro em qual lugar você busca a felicidade que vejo em seu rosto e não encontro no percurso que vou e volto sem parar e sem me desvencilhar da solidão que que persegue.
Toquei de novo o vidro da janela para acender o sol que se põe lá do outro lado do prédio e me visita com a sua quentura no meio da tarde batendo no meu rosto com um raio que queima a minha pele e esfria os meus sentimentos de crença sobre quando e onde eu devo me responder as perguntas que faço a mim mesmo há tempos e me recuso a atender.
Quem sou eu e quem é você? Para onde vamos afinal? E para que?

Curtas - Manchetes londrinenses

A Primeira: Vira-vira...

"Padre vira a casaca e vira prefeito."

A Segunda: Asas molhadas

"Tucanos dormem na praia e acordam encharcados."

A Terceira: Negociata na posse da Câmara (em homenagem aos três que pisaram na palavra)

"Fiz que fui, não fui e acabei fundo."