terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 11

Quarenta e cinco milhões de reais coçam as palmas das mãos de Riuzim. A vontade de gastar é contida pela ponderação: planejar, investir, ganhar mais e mais. O grafite mal apontado do toco de lápis chia sobre o papel sulfite dobrado em quatro, feito uma caderneta. Na primeira página, os números ocupam espaço menor: trezentos e cinquenta do condomínio, cento e trinta da energia elétrica, seiscentos da prestação do carro, cento e sessenta do telefone, oitenta da banda larga e mais tantos do supermercado, do cartão de crédito, da tevê a cabo, da faculdade do filho, do imposto predial e do financiamento da vida, além de mais números relacionados entre tantos outros. A soma da despesa, ali, é maior que a receita.
Em situação normal, o cheque especial entraria no negativo já no terceiro dia após a entrada do pagamento. O resultado seria a indignação costumeira do oitavo dia útil do mês. Algumas contas seriam empurradas e as compras se limitariam ao básico. Uma crise internacional, cuja raiz havia quebrado meses antes a economia concretada da maior potência do mundo, os Estados Unidos, tinha sementes espalhadas pelo Brasil e algumas vingavam frutos amargos. Demissões em massa, principalmente na siderurgia nacional, colocavam os trabalhadores brasileiros em estado de apreensão. Oportunistas, os sindicatos patronais propunham fórmulas unilaterais para vencer o período: vocês, trabalhadores, cedem isso. Nós garantimos vagas no mercado de trabalho. A estratégia empresarial ganhava o reforço dos jornais e das revistas especializadas, que comparavam a crise do momento com a de 1929.
Emissoras de televisão repetiam reportagens de famílias vivendo sob viadutos no Japão, onde quase trezentos mil brasileiros trabalhavam como dekasseguis, em atividades braçais recusadas pelos japoneses. No Brasil, parentes entravam em pânico. Portugal, Espanha, Londres e Estados Unidos, também com levas de trabalhadores do Brasil, experimentavam situações parecidas: os meios de comunicação alardeavam sobre a crise, alguns com enfoques irresponsáveis, criando nos familiares um estado de desespero.
Em outras terras brasileiras, os programas assistenciais do governo elegiam políticos e empregavam seus protegidos. No outro extremo, a oposição usava o direito da crítica, mas seguia o modelo: quando de posse do poder, virava situação e lançava mão da mesma fórmula de empreguismo, influência e altas comissões divididas após licitações duvidáveis. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva ganhava a capa dos principais impressos nacionais com a pesquisa apontando aprovação de mais de setenta por cento, enquanto os termômetros dos institutos responsáveis pelos índices da economia brasileira não conferiam com a realidade das gôndolas dos supermercados.
A cultura nacional saboreava uma decadência enrustida. Nada de novo surgia na música. Regravava-se e curtia-se sucessos de duas a três décadas atrás, sob os aplausos de um público sem referência do que os artistas brasileiros já fizeram. Na televisão, os importados americanos, condenados no passado, eram assimilados com outros sentimentos pelos telespectadores graças a uma roupagem diferente: se não hora nova, atraia devido à possibilidade do inusitado. Um beijo mais quente entre pessoas que se conheceram há poucos, uma insinuãção de sexo e pouca roupa grudavam milhões de pares de olhos nos aparelhos de TV para um reality show de resultados milionários os seus promotores. Companhias telefônicas, anos antes privatizadas pelo governo de uma forma tão suspeita quanto tantas outras medidas assinadas pelos políticos, contavam seus lucros após ligações disparadas de vários pontos do país. Com um número discado e alguns reais gastos, o telespectador dormia, minutos depois, com a sensação de ter participado de um uma decisão muito importante: queria seria expulso do programa?
Nas ruas das principais cidades brasileiras, a pirataria repartia terreno com os defensores da lei. De calçados a produtos de cultura, reproduzidos ilegalmente, ganhavam a preferência dos consumidores. Na contrapartida, a indústria nacional, sufocada pela pesada carga de impostos e tributos devida ao governo, fechava os olhos para fugir da concorrência dos clandestinos.
Na saúde, os planos privados de medicina e hospitais, com mensalidades elevadas e preocupações questionáveis em relação aos atendimentos, supriam a ausência de um sistema público no mínimo adequado. Na educação, cotas para os negros, os portadores de deficiência e os menos favorecidos economicamente camuflavam a flagrante diferença no tratamento dos brasileiros de distintos padrões sociais e econômicos nas salas de uma instituição de ensino superior.
Riuzim repassou em instantes os pontos que inundavam de manchas a situação do seu país, ao mesmo tempo em que prosseguia nos relatórios de contas. Virou a página da caderneta improvisada e pensou o que poderia fazer com tanto dinheiro. Suas contas, mesmo que multiplicados por muitos anos, nem tirariam uma lasca. O valor, de um prêmio bancado por um banco público federal, havia se acumulado por falta de ganhadores. Saiu finalmente para uma única pessoa. Na internet, uma mensagem, embora de origem duvidosa, conferia com uma preocupação de Riuzim: os quarenta e cinco milhões de reais não seriam os resultados de mais um engodo nacional?
Por algum tempo Riuzim imaginou ser o felizardo. Ele nem tinha feito um jogo, mas deu-se ao direito de sonhar ser um milionário. Acordou minutos depois com o jornal na página onde se lia sobre o elevado custo do cheque especial.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

PARTICIPE: