quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 7

Os últimos anos de vida de Margarete foram de muitos sacrifícios. A morte de Francisco, o marido, permitiu um pouco de paz, apesar da perda de uma pessoa com quem ela conviveu por quase quatro décadas. Francisco deixou de trabalhar devido a uma esclorose que o tornou insuportável, com crises de alucinações em vários períodos do dia. No pequeno espaço da varanda da casa de fundo onde morava, na Vila Portuguesa, Francisco criou o seu mundo de invasores e inimigos mortais. Às vezes, costurava os cantos do lugar onde estava com as pontas dos dedos, formando um caixote imaginário ao seu redor.
Preso naquela redoma invisível, sentia-se protegido. Ainda assim, diante de alguma ameaça gritava com os adversários, assustando a vizinhança e constrangindo a família. Por dez anos Margarete testemunhou o declínio da razão de Francisco, cujo tratamento nem a medicina conseguiu realizar. Arredio, o marido tornava-se violento quando convidado a ir ao médico. Só largou mão da teimosia quando sentiu os impactos dos pulmões enfraquecidos e, sofrendo com a dificuldade de respirar, aceitou ser internado no Hospital Universitário. Permaneceu na enfermaria por menos de duas semanas e criou muita confusão para os enfermeiros, pois desvencilhava-se das sondas e tentava fugir.
Melhorada a condição física, Francisco recebeu alta e retornou para casa. Mas, sem a força de antes, nunca mais retornou para a varanda onde costurava os cantos do seu espaço com as pontas dos dedos para se proteger dos inimigos. Também experimentou a falta de apetite e reduziu a alimentação. A pimenta vermelha acumulou no pote e o café, antes ingerido com gulodisse, passou a sobrar diariamente na garrafa térmica. Acometido por um estado flagrante de definhamento, dias depois Francisco amanheceu sem vida, estendido sobre a cama. Pela expressão, foi-se sem muito sofrimento após causar muita angústia a Margarete e seus filhos.
Foi um velório desses que as lamentações e as tristezas vão-se com os relatos do sofrimento da pessoa que está no caixão. Comentários típicos serviam como consolo: "Pelo menos deixou de sofrer". Mal sabiam as pessoas que usavam desse discurso que, para a família, a ida de Francisco era o fim de um pesadelo de uma década.
Riuzim lembra que o quarto onde o pai faleceu ficou intocado por algumas semanas. Margarete dormia na dependência ao lado, pois muitos anos antes do adoecimento do marido já havia optado por um distanciamento. Uma vida de pobreza, alimentada principalmente pela teimosia de Francisco, criara uma revolta administrada silenciosamente pela mulher. Raramente Margarete conversava sobre os seus descontentamentos com os filhos. Uma história, porém, era repetida nas reuniões familiares. Ainda com as crianças pequenas, Francisco recebeu um dinheiro dos pais, suficiente para a compra de uma casa. Desprezou os apelos da mulher e visitou uma loja especializada, onde comprou dois revólveres calibre 38 e algumas caixas de munição.
Por isso, em nenhum momento antes e após a morte de Francisco, Margarete esboçou uma pontada de tristeza. Frases marcantes, como o nupcial "na alegria e na tristeza", escaparam de sua vida como a água que esvai por entre os dedos das mãos. O "felizes para sempre" era trocado por um olhar distante, destacado pela cor negra, onde se lia uma angústia latente. Riuzim imaginara que sua mãe, em nenhum momento de sua vida de casada, havia experimentado a felicidade.
Essa dura leitura da vida familiar não estava, infelizmente, equivocada. Passado o período de luto, Riuzim viu Margarete sorrir com mais frequência. A expressão de medo foi substituída aos poucos por um ar de singela normalidade sempre presente no rosto. Diabética, Margarete cometia as suas travessuras: esperava pela saída dos filhos para o trabalho e recebia a visita de um vendedor de doces. O preferido era a paçoca, comprada de pacote e escondida num canto do armário da cozinha. As idas constantes à cozinha anulavam os efeitos dos adoçantes empilhados na mesa ao lado da garrafa térmica vermelha com café sem açúcar.
A desatenção à saúde deu o seu primeiro sinal de alerta quando uma unha encravada evoluiu para a necessidade de amputar um dedo do pé. O que sobrou do mesmo dedo não cicatrizou e exigiu mais um corte em pouco tempo. Depois, num tropeção, um outro dedo se foi. O diabetes trouxe também prejuízos para o coração de Margarete, que já havia abandonado a costura e dedicava-se somente ao ar, graças ao dinheiro da pensão.
Vítima de um sistema público de saúde precário, Margarete só lutava pela vida por causa da insistência dos filhos. Não fosse isso, podia-se dizer que ela entregava-se também para o seu fim, por considerar que havia cumprido a sua missão. O curso superior concluído por Riuzim era um manifestado com muito orgulho, principalmente diante dos parentes abastados. Margarete confidenciava de vez em quando a Riuzim que, devido à pobreza, foi muito desprezada por alguns irmãos e pelo próprio pai. O estudo permitido aos filhos foi a herança que ela deixou, após um enfarto. Margarete morreu nos braços de um genro numa maca do Hospital Universitário. Riuzim, que havia levado a mãe para o atendimento de socorro, havia retornado para casa para providenciar a papelada do internamento.

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