quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 8

Augusto, o filho mais velho de Margarete, assumiu, desde cedo a responsabilidade de cuidar da família junto com a mãe e o pai. Ainda adolescente, empregou-se numa fábrica de doces de fundo de quintal, localizada na rua de baixo a de onde morava. Sem uma atividade específica, fazia de tudo: entregava encomendas, ensacava pipocas recém estouradas, empacotava produtos que saiam dos fornos, varria chão, passava pano nas vidraças, lavava o carro do dono da pequena indústria e levava broncas quando, em momentos de cansaço, relaxava no serviço.
Usava um avental azul escuro sujo de graxa. Nem ele e muito menos o patrão se importavam com o aspecto. A fábrica tinha piso de cimento bruto, de tonalidade encardida. A higiene não era prioridade. Os balcões serviam para guardar de ingredientes a veneno para combater insetos. As moças e os rapazes da linha de produção não tinham tocas e luvas. Quando muito, alguma mulher usava um lenço para prender os cabelos. Mas o acessório era mais por capricho pessoal do que por cuidado com a qualidade da fabricação.
Nas horas de folga, Augusto juntava-se aos colegas da fábrica e trabalhadores do comércio ao redor para bater bola na rua. O retorno à linha de produção se dava coberto de suor. Quando não era a bola, Augusto enturmava-se com os rapazes que contavam histórias e vantagens sobre namoradas e as últimas proezas em cima de uma bicicleta. Nos começos de semana, o assunto mais comentado era sobre as sessões de cinema. Filmes, personagens e artistas preferidos ganhavam elogios e críticas naquelas conversas informais, mas defendidas pelos expositores com garra de especialistas. O futebol também tinha vez, sempre durante e após os programas de rádio que analisavam as últimas rodadas dos campeonatos estadual e nacional. Fazia-se uma guerra de ironias, com o escracho de torcedores de diferentes times vitoriosos contra os perdedores. Era um jogo de nervos, com as provocações chegando ao extremo e os atingidos perdendo a compostura. Acocorados na calçada em frente à fábrica, os torcedores se xingavam, com gritos que podiam ser ouvidos de longe.
Foram três anos e meio de trabalho na indústria da rua debaixo. Dali Augusto conseguiu vaga no escritório de contabilidade do tio, no centro de Londrina. O registro em carteira era, na época, uma trivialidade para o patrão e o empregado. Na fábrica de doce Augusto deixou de receber férias e outros benefícios. No escritório do tio foi como aprendiz, conforme justificou o parente. A função que passou a exercer, entretanto, era a de um serviços gerais. Augusto enfrentava filas de banco, levava e trazia pastas pesadas de documentos, varria, limpava as mesas de manhã, fazia compras no mercado para a tia, acompanhava as crianças do patrão na ida e no retorno da escola, consertava cadeiras, carregava os sacos de carvão que o tio encomendava no açougue do outro lado da rua para o churrasco oferecido nas sextas-feiras aos clientes.
As velhas máquinas de escrever raramente podiam ser usadas por Augusto. Cada uma das cinco escrivaninhas tinha uma Olivetti sobre ela. Ao lado, a Facit de calcular, com o rolo de papel, onde os escriturários se davam ao luxo de digitar sem olhar para o teclado. Por alguns dias Augusto não cedeu à tentação de colocar o dedo indicador numa daquelas teclas, durante o descuido de um ou outro. O papel carbono, já desgastado pelo uso, ganhava o vão entre uma página e outra do caderno brochura de Augusto. Ele aproveitava o que era jogado para desenhar. Às vezes apenas rabiscava palavras que nem ele depois conseguia ler. Comparava o escrito original com a cópia, que sempre apresentava algumas poucas diferenças por causa do estado de uso do carbono. Falhas apareciam e por mais normais que elas fossem, intrigavam Augusto. Com a caneta, ele completava o que faltava.
Com o tempo, Augusto, ainda sem receber qualquer ensinamento sobre contabilidade e um ignorante da datilografia, interessou-se pelo desenho. Copiava personagens dos gibis com perfeição admirável. Os pequenos detalhes do rosto do Pato Donald ou da blusa da Minie eram reproduzidos a mão livre. Dos personagens infantis o lápis de Augusto passou para os gêneros mais consumidos pelos adolescentes e jovens. Fantasma, Zorro, Mandrake, entre outros, ganhavam páginas inteiras do caderno, sempre com as cópias de carbono. Depois de pronta, a obra original era entregue para a mãe, que guardava a produção do filho com zelo especial. A cópia ficava no caderno.
Quatro anos depois, sem conhecer a contabibilidade e dispensado do serviço militar, Augusto deixou o escritório do tio, de quem ouviu a justificativa de que não tinha aptidão para a profissão. Foi então que Augusto trocou o curso colegial de contabilidade por outro e se empregou, após semanas parado, numa mercearia. Com uma pesada bicicleta de carga, fazia a entrega das compras. Nas horas de folga, varria, lavava, tirava o pó das estantes, arrumava a torneira do patrão, lavava o carro da patroa, suava e ganhava pouco.

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