sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 9

A música Porto Solidão, interpretada por Jessé, não é uma das preferidas de Riuzim. Mas ele remexe a estante onde são guardadas algumas lembranças da mãe quando a saudade aperta. Margarete ouvia a canção com lágrimas nos olhos. Ela tinha uma velha radiola, de móvel restaurado e protegido com verniz, cuja agulha era frequentemente trocada tanto era o uso do aparelho. Uma coleção de cerca de trezentos discos de vinil ficavam empilhados numa cadeira ao lado. Não havia uma classificação por nome do cantor, época do lançamento ou gênero musical. Acima ficavam os LPs mais ouvidos pela costureira. Alguns tinham os sucos lidos pela agulha diariamente.
Em determinado horário do dia, o vocalista dos Bee Gees invadia os comodos da casa mista de alvenaria e madeira e preenchia os espaços ocupados pelo silêncio ou pelo barulho da máquina de costura. Demis Roussos também usava o palco da imaginação de Margarete, que se entregava ao som das melodias de seus ídolos com os olhos negros mais distantes que o habitual. Em que pensaria Margarete nesses instantes de fuga programados sempre para pouco antes do preparo do jantar? Era um mundo possível, apesar das paredes do quarto onde estava a radiola apresentarem rachaduras e mofos provocados pelas infiltrações.
Ao lado, na parede de madeira, as frestas que marcaram os primeiros anos de casada de Margarete até a adolescência dos filhos ainda perseguiam a costureira. Eles se faziam presentes na nova moradia, localizada numa viela perto da rua Bahia, na Vila Recreio. Pelas frestas escapavam os sons por algumas casas da vizinhança, misturando-se ao sertanejo sintonizado por algum aparelho de rádio e o rock em volume provocativamente irritante da rapaziada do sobrado levantado metros adiante. No outro quarteirão, uma oficina mecânica zunia motores em teste, dando ao conjunto de sons um ritmo estranho e assustador.
Margarete, no entanto, limitava-se ao seu espaço. Naquele paraíso, suas músicas eram as únicas entoadas naquele momento que era só dela. O alho para temperar o arroz seria descascado depois. Assim como a carne, cortada em bife, iria para o descongelo somente após a agulha da radiola vencer o último suco do vinil. Agora Margarete tinha uma geladeira. Podia conservar o alimento, congelar, ter água fresca e gelo para o suco. Foi um presente da irmã, que havia comprado um modelo novo, de duas portas, e cedeu o velho, simples e de formato abaulado, para Margarete. A marca era Cônsul e o branco da carcaça estava manchado. Mas funcionava. Depois de cada parada automática, o relê engasgava, mas teimosamente vencia o peso do motor velho e voltava a zunir anunciando cumprir a sua missão, de esfriar e congelar.
A nova casa também tinha chão encerado. Margarete estreiou dar brilho primeiro com um escovão. Mas não cedeu à tentação de comprar uma enceradeira à prestação na antiga Hermes Macedo, onde tinha cadastro aprovado. Foi lá também onde ela comprou o seu fogão a gás, pois a moradia não tinha um à lenha. Com a novidade Margarete também incluiu na sua agenda semanal a fabricação de pão caseiro, todas as sextas-feiras. Três unidades, de tamanho grande, saiam do forno do fogão a gás cada semana. Eram suficientes para os cafés de três dias. A manteiga comprada de uma freguesa da costura fazia o complemento. Para Margarete, a freguesa dizia que o produto vinha do sítio de um parente, no então Distrito de Tamarana.
O fogão a gás era de um amarelo vivo, que nada combinava com a mesa de fórmica marrom, a geladeira de branco encardido, as banquetas plásticas também brancas e uma peça de copa com fórmica no tom verde água. Mas recebiam de Margarete, no dia da faxina, o tratamento de peças importantes e fundamentais em sua vida.
Na tarde de domingo, Riuzim aproveitou o silêncio do seu apartamento e adaptou ao moderno micro system um antigo toca disco. Ouviu Porto Solidão e gostou de Jessé. Durante a execução enxergou com os olhos da memória os olhos negros da mãe, distantes. Pensou que naqueles tempos, quando contava com os braços de Margarete nas pequenas angústias que a vida reservava, os problemas tinham soluções mais fáceis e rápidas. Riuzim, então, chamou sua mãe, mas ela continuou em silêncio, olhos negros, distantes, no rumo de um lugar que ele não sabia aonde é que Margarete enxergava nos seus momentos de música e meditação. Riuzim quis implorar por aqueles olhos negros, mas segurou o desejo de penetrar no mundo que era de sua mãe. Foi quando ele irrompeu em prantos por ter a certeza de que não teria nunca mais o abraço dela e as costas de suas mãos a enxugar as lágrimas.

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