terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 6

Bancário, Riuzim viveu cinco anos de contradições durante o período do curso de direito na Universidade Estadual de Londrina. Estudava de manhã e vestia-se como um acadêmico do período pós-golpe de 1964. A calça jeans exageradamente surrada, com a camiseta branca ou preta, era uma forte identificação desde que estampada com o rosto de Che Guevara ou a pose de grupos musicais alternativos da época. Tarancón, Inti Illimami, Isabel Parra, Mercedes Soza animam os ambientes universitários. À tarde, Riuzim trocava o tênis branco encardido por um par de sapatos sociais. A calça era de vinco e a camisa fechada até o pescoço. Na agência bancária localizada no centro de Londrina, Riuzim era um dos funcionários do setor de balancete diário. Por ele passavam as entradas e as saídas, os ganhos e as perdas do sistema de compensação.
À noite, o Projeto Pixinguinha trazia para o Cine Teatro Universitário Ouro Verde talentos que não eram executados nas emissoras de rádio. Quinteto Violado, Elomar Figueira de Melo, MPB 4, Paulinho da Viola mexiam com os sentimentos nacionalistas de um público privilegiado.
As rádios FM ainda não haviam chegado. Na política tanto quanto na cultura, a grande imprensa era repudiada até a condenção. Mas nem todos sabiam que por trás de empresários de comunicação oportunistas havia profissional éticos e firmes em suas posições. No entanto, no gargalo dos fechamentos das edições diárias, censores do governo militar brasileiro transformavam páginas com reportagens interessantes para o país em colunas de dicas de culinária. As produções internacionais de conteúdo político ganhavam maquiagens. No cinema, Doutor Jivago, um grande clássico, era anunciado com um filme de amor e desamor.
Nas universidades públicas, um acordo conhecido como MEC-Usaid havia criado o sistema de crédito em substituição ao seriado. Um estudante de medicina, por exemplo, tinha no mesmo dia aulas com alunos dos mais diferentes cursos. Às vezes, obrigava-se a vencer em minutos a grande distância entre um departamento e outro para chegar à sala de aula. A intenção era evitar que colegas de uma mesma turma atingissem maturidade e afinidade na maneira de pensar. As idéias eram proíbidas e a imaginação era uma prática perigosa. Conversar na porta da sala de aula levantada suspeita. Subversão era uma palavra em moda: quem não se alinhava com o que o governo militar achava como certo para o país era um subversivo, um revoltado. O tipo de revolta podia resultar em fichamento pela polícia política brasileira. Os mais extremistas ganhavam as celas das prisões. O receio de mortes e desaparecimentos inexplicáveis rondavam as casas dos intelectuais. Sindicalistas sumiam a caminho de mais uma assembléia. Alguns grandes nomes da política e da cultura foram expulsos do país. Para dar conotação puramente política a este tipo de violência, o governo e a imprensa diziam que estes haviam sido exilados.
Na música, na literatura e no teatro, aquele que ousasse ultrapassar o permitido pela censura era perseguido. Surgiram as metáforas e as entrelinhas para enganar os vigilantes pagos pelo governo. Dava-se um recado falando a mesma coisa de um jeito diferente. Jornais de expressão nacional optaram por imprimir edições com páginas em branco quando o conteúdo era vetado pelos censores. Era o recado ao leitor: tinhamos preparado uma reportagem séria, mas o governo proibiu e não estamos colocando trivialidades no lugar.
Riuzim não era um subversivo radical. Recebia pelos Correios publicações consideradas perigosas, como o periódico da convergência socialista. Simpatizava com os movimentos que pediam a volta da democracia. Se durante as tardes e os inícios das noites tratava de contribuir com uma causa contábil, fazendo os valores do que saiu e do que entrou ficarem iguais, de manhã, travestido de universitário, participava de assembléias convocadas pelo diretório central dos estudantes, publicava poemas no varal organizado pelo centro acadêmico do seu curso e usava os finais de semana para integrar grupos de estudos. Nem sempre abusava do seu dom da palavra. Às vezes, nas reuniões, preferia ficar calado, ouvindo os mais experientes.
Nem por isso Riuzim deixou de ser fichado pela polícia política, que mantinha olheiros nos campus das universidades. Riuzim, com o pouco que fez, foi fichado cinco vezes. Em algumas das fichas foi citado como líder da desativada UNE, a outrora expressiva União Nacional dos Estudantes. Era comum o governo arrebanhar estudantes, professores e funcionários das universidades como olheiros. Normalmente, os escolhidos eram os que mais manifestavam simpatia para com os militares no poder. Na turma de Riuzim, dois colegas, de acordo com os acadêmicos mais experientes, eram agentes infiltrados. Dizia-se que eles ganhavam por produção: quanto mais fichas de estudantes subversivos preenchessem, mais créditos teriam com os seus empregadores. Cargos importante dentro das próprias universidades eram dados como pagamento.
Foi nesse período que Riuzim trocou os antigos long play de Roberto Carlos, cujo sucesso de rádio era a música O Calhambeque, pela bossa nova e por outras obras da música popular brasileira. A preferência de leitura de Riuzim, limitada antes aos livros de bolso com ações de detetives, ganhou com autores renomadose otimamente referendados pela crítica. O teatro amador, com peças montadas por abnegados, passou a ser frequentado. Riuzim abriu os olhos para um mundo que o levou ao passado: a casa velha de madeira, onde em algumas refeições o pão substituiu o prato de arroz e feijão porque Margarete precisou entregar fiado um vestido recém-confeccionado. Foi ela quem deu a Riuzim a condição para ele chegar a uma universidade pública.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

PARTICIPE: