segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 5

Choveu lá pelas três horas da tarde daquela quinta-feira, véspera de Natal. Margarete dava o acabamento nos últimos vestidos e providenciava a entrega para as freguesas. Chamou Silvana para se trocar e recomendou que a filha fosse acompanhada por Riuzim até o hospital, no centro de Londrina, onde uma enfermeira aguardava o conjunto de blusa e saia que usaria na missa do galo, à noite.
Da Vila Nova até o local de entrega, os dois irmãos teriam que atravessar a movimentada rua Araguaia, calçada com paralelepípedo, subir pela via que margeava o Albergue Noturno, atravessar a linha férrea na altura do Samdu, prosseguir até a rua Belo Horizonte, atravessar a Quintino Bocaiúva e andar mais dois quarteirões. Ali estava instalada a Santa Casa. Muitas funcionárias do estabelecimento hospitalar encomendavam costuras para Margarete.
Terminada as duas peças, a costureira ainda teria um vestido e uma calça para arrematar. A previsão era de encerrar tudo até lá pelas quatro e meia, tempo suficiente para os dois filhos retornarem da entrega no centro. Só então Margarete passaria uma vassoura na sala, onde linhas e retalhos se espalhavam no chão de tábuas encardidas. A limpeza completa ficaria para o sábado. Depois, com os filhos, ela iria ao mercado de secos e molhados, onde compraria ingredientes para o almoço do Natal e dez garrafinhas de guaraná. Cada membro da família teria direito a um guaraná no almoço e outro na janta. Após as compras, ela mandaria Riuzim pegar Galega, a franga branca que nas últimas semanas usou e abusou da horta já que o seu destino era ser o prato principal da data festiva. Galega iria à mesa assada, para acompanhar o arroz branco, a macarronada, a maionese e o ponche, feito com abacaxi e vinho de garrafão misturado com água e açúcar. Um bolo preparado em casa seria servido na sobremesa. Como a casa não tinha forno, Margarete prepararia o bolo na frigideira. Depositada na chapa quente aquecida à lenha, o recipiente ficaria coberto com uma tampa, onde brasas dariam o ponto para a parte de cima da massa.
Margarete não tinha geladeira. Para tirar o calor do refrigerante, logo que as crianças chegavam do mercado com as sacolas elas tratavam de recolher água fresca no poço e encher uma bacia funda. As garrafinhas de guaraná eram colocadas de pé, cobertas de água. O refrigerante mais barato vinha de Assaí. Tinha um adocicado tão forte a ponto de suprir a ausência de sabor. Para as crianças, o gás que escapava quando a garrafa era aberta já fazia a festa. O mesmo gás, borbulhando no copo, complementava o clima de um dia diferente, com frango, maionese e guaraná. Havia outra opção para digerir o refrigerante com muito gosto. As crianças abriam as garrafinhas e faziam um pequeno furo na tampa, que voltava para a garrafa. Na refeição, chacoalhavam o frasco com o dedo fechando o buraco da tampinha, para formar pressão. Quando aberto o buraco, o líquido esguichava na boca.
Eventualmente, nos domingos, Margarete preparava um almoço mais caprichado. Para acompanhar, fazia um pacote de suco com água fresca. Acostumada a uma vida de sacrifícios, ela evitava incomodar a vizinha para pedir uma forma de gelo. Às vezes, sem que pedisse, por amizade ou compaixão alguém batia na porta da costureira com uma vasilha cheia dos cubos. Colocada numa caneca grande de alumínio para esfriar o suco de uva, o gelo formava bolhas e as crianças aproveitavam o descuido de Margarete para desenhar com as pontas dos dedos.
Não havia ceia de entrada do Natal na casa da costureira. Ela, o marido e as crianças esperavam o estouro dos primeiros rojões e iam para as janelas de madeira da casa. Viam, na maioria das vezes distantes, o brilho das explosões. A vizinhança, com rara exceção, organizava comemoração. Só um ou outro preparava um churrasco familiar. Os meninos iam para as ruas ver os fogos. Os adultos, quando muito, se confraternizavam com goles de vinho tinto.
Nas casas, a troca de presentes era um acontecimento também muito raro. Mesmo os carrinhos e as bonecas de plástico eram entregues antes aos filhos. Alguns chegavam no Natal com os seus brinquedos já estragados. Mas os pais faziam questão que os calçados e as roupas novas fossem usados somente após o almoço, quando as crianças ganhavam dinheiro para a sessão da tarde de um cinema do centro da cidade. Sem a companhia dos pais, meninos e meninas, em grupos distintos, vestiam-se com as calças de barras dobradas para acertar o comprimento, vestidos engomados, camisas e blusas cheirando loja e iam para o ponto de ônibus da rua Araguaia. A espera de mais de meia hora pela chegada do coletivo não era problema. O que valia era o passeio e a companhia.
Os cinemas eram rígidos e se o filme fosse para 12 anos, ninguém entrava com menos. Os mais miúdos tinham que apresentar carteirinha de estudante mesmo que estivessem na idade, pois os porteiros olhavam para a altura e supunham mais uma tentativa de alguém furar a censura. Passada a portaria, ainda havia o risco do lanterninha invocar com o grupo. As algazarras da turma incomodavam e os funcionários das salas de exibição pareciam saber que aqueles não eram frequentadores habituais. Os meninos preferiam os filmes de ação, cujas opções, para a idade eram os gêneros água e açúcar do velho oeste americano. As meninas, sem outra alternativa, acompanhavam. O pacote de pipoca salgada e o barulho das embalagens de balas só eram quebrados quando as luzes começavam a se apagar e o ribombo do sistema de som impressionava com o tema do cinema. Vez ou outra os expectadores eram premiados com maior quantidades de desenhos. Os epsódios de curta duração se sucediam, para preencher a grade de horário do estabelecimento.
O retorno para casa costumava ser feito a pé. A sessão terminava às quatro da tarde e o tempo era suficiente para os meninos e as meninas chegarem ao bairro ainda com sol forte, para trocar de roupa e brincar no campo de futebol. Além da brincadeira com bola, os que ainda estavam com os brinquedos em bom estado tratavam de exibí-los para os colegas. Naquele Natal Riuzim ganhou um trator de madeira, com carroceria carregada com cubos coloridos. O pai comprou o presente no sábado da semana anterior ao Natal. Riuzim sabia que o pai havia ido à cidade para as comprar e esperou pela chegada dele sentado na escada de madeira que dava acesso à porta da sala. O pai, com os pacotes de presentes, atravessou o campo de futebol, em diagonal, pouco depois das três da tarde. O presente foi entregue na hora.

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