terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Conto - Outros olhos

Sem olheiras, com um brilho intenso, os olhos de Manuele denunciaram na manhã de terça-feira um novo tempo. Muito diferente daqueles de quatro dias atrás. Inchados, eles se escondiam nos fundos da mancha escura que encobria as poucas rugas e não disfarçavam uma madrugada de lágrimas. Por que Manuele chorou?
Esbelta, corpo caprichadamente torneado, alta e clara, ela é uma mulher que chama atenção pela beleza do rosto. Manuele parece sempre estar pronta para um sorriso leve, sem a necessidade de forçar os lábios. A sútil contração do músculo facial repuxa delicadamente a pele do nariz e sobressalta as maçãs. As pálpebras descem. E a luz se acende. Não com uma claridade perturbadora e incomoda, de ofuscar. É com uma luminosidade apenas suficiente para arrancar de quem a vê sorrir um suspiro de bem-estar e fascinação.
Seria possível apostar que em situação normal Manuele deixasse de ser percebida. Seria uma mulher no meio de tantas outras que usam o cotidiano para esconder a vaidade atrás de uma simplicidade interessante. Nada de retoques exagerados na maquiagem, nenhuma carapuça na altura do vestido ou no tamanho do decote. Ou seria esta a contradição? Por não se mostrar dentro de uma apertada calça jeans a moldar o formato dos quadrís Manuele seria uma sensação?
Fina e discreta na estampa, o difícil era imaginar o que se passaria no coração daquela mulher. Manuele é eclética na preferência musical, mas de ouvido se percebe que ela tem bom gosto. Um jaz, um clássico, uma bossa nova e uma balada com certeza estão na lista de proridades. São CDs que caem facilmente no leitor óptico do portátil que ela mantém sobre a escrivaninha. Canções que ambientam e evocam a singela vontade de pensar romanticamente na vida e nas pessoas que dela fazem parte. Às vezes, os acordes são nostálgicos. Outras vezes os tons são modernistas. Mas nada sai do compasso.
Imagina-se que ela ame. Alguém ou alguma coisa deve ter o especial apreço de Manuele. Nada, porém, espalhafatoso, com extremismo nos gestos e na manifestação dos sentimentos. É provável que Manuele consiga amar de um jeito brando, porém fortemente expressivo no conjunto de qualidades que ela expõe sem fazer força: mãos que acariciam com a pressão devida, boca que beija com a sutileza necessária, pele com pele, coração com coração, satisfação com satisfação, prazer com prazer.
Difícil apostar que Manuele seria diferente sorrindo ou chorando. A simplicidade, a beleza, o discreto charme se confundiriam. Só os olhos inchados, ainda assim lindos, invocariam duas perguntas silenciosas: Por que Manuele chora? Por quem Manuele chora?

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