quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 2

Margarete jamais imaginara que moraria em uma casa com tamanha precariedade. Feita de madeira reaproveitada, tinha frestas enormes em alguns pontos, onde nem as mata-juntas, pregadas em falso sobre a madeira podre, conseguiam disfarçar. O chão era de tábuas e o sonho de dar brilho ao piso com uma enceradeira era tão distante quanto as estrelas de luminosidade mais fraca que pudessem ser vista espalhadas pelo céu.
Em um canto da sala, perto da porta que levava à cozinha, uma tábua apresentava uma enorme falha. A fresta mostrava o porão de terra, com altura de quase um metros e meio, pois a casa ficava suspensa por toras. Quantas noites Margarete acordou sobressaltada durante as madrugadas após pesadelos. Nos sonhos ruins, personagens estranhos invadiam a moradia pelas frestas.
Portas e janelas eram fechadas com taramelas artesanalmente confeccionadas. Só na porta principal, a da sala, que dava para a rua, Margarete havia providenciado trincos comuns dos lados de dentro e fora, daqueles vendidos em casas de secos e molhados. Quando toda a família saia, um cadeado servia como proteção. Precaução vã. As janelas da sala e dos quartos ficavam no alto, mas a da cozinha, muito baixa, dependia apenas de alguns empurrões de leve para ser aberta. Com a pressão, a taramela girava e abria.
A porta da cozinha, que se abria para os fundos do quintal, continha um remendo enorme na parte de baixo. Fixado com pregos sobre a madeira podre, o conserto normalmente se soltava e fazia a festa para os bichanos. Dali os gatos invadiam a cozinha, principalmente nos dias em que o cheiro de peixe tomava todo o ambiente.
A privada ficava do lado de fora, lá no fundo do quintal. Erguida sobre o buraco aberto para acumular as fezes, a casinha escorada com vigotas exigia reparos com certa constância, pois a terra em volta, não compactada, sofria as consequências das chuvas e escorria terreno abaixo. O medo de Margarete era ver a privada despencar com alguma das crianças dentro. Nem para os banhos o local era usado. O suporte que pendia do teto sem forro da casinha antes segurava o balde, com buracos abertos no fundo com prego, sobre a cabeça de quem se banhava. Depois passou a cumprir papel de um gancho para pendurar os jornais utilizados após as necessidades. As crianças eram banhadas em uma bacia do lado de fora da cozinha. Os adultos trancafiavam-se no quarto para a higiene.
A casa não tinha forro e estampava teias de aranha nas telhas. Algumas, enormes, podiam ser vistas à noite, da cama, quando Margarete se preparava para dormir. Antes de apagar a lâmpada incandescente avermelhada, que descia quase até a altura da cabeça para que o interruptor, no próprio soquete, pudesse ser alcançado, Margarete punha-se a olhar o telhado empoeirado, com remendos de plástico em alguns pontos, e pensar no seu destino. Em dias de menor reflexão Margarete planejava as atividades da manhã seguinte: acender o fogão de lenha para esquentar a água e fazer o café; iniciar o cozimento do feijão; ferver as roupas claras para diminuir o encardido; varrer o chão; aguar as plantas; mandar as crianças para a escola e viver, viver, viver e viver.
A casa vizinha, recém-construída, ainda era de madeira mas tinha o chão sintecado, uma tecnologia nova na época que dispensava o uso do escovão ou da enceradeira. Margarete pensava que nem uma boa vassourada com água e sabão caseiro deixariam o chão dela tão bonito quanto o da vizinha.
O fogão à lenha, construído em cimento, era um tormento no verão, mas causava inveja no inverno. Com uma chapa de três bocas, o enorme utensílio preparava um feijão incomparável, que chegava ao ponto após muitas horas de fogo. O café, acondicionado num bule de alumínio, ficava ao lado e mantinha a quentura. Uma espécie de balcão de tijolo e cimento escorava a lenha. Nos dias de frio, alguns gatos aproveitavam o descuido e cochilavam ao lado da madeira em chamas. O amendoim ganhava ponto esparramado sobre a chapa. Margarete descascava-os para as crianças experimentarem ainda quente. Elas é que diziam se a torra já era suficiente. A batata doce raramente era cozida. A família preferia assá-la sob as brasas. Assim também faziam com o inhame e o pinhão. A espiga de milho verde, espetada por um arame grosso, ficava boa para ser comida quando apresentava no extremo dos grãos a cor escura, de queimado.
Uma mesa enorme, de madeira bruta, reunia copos, canecas, panelas, pratos e talheres. O pequeno armário instalado na cozinha era insuficiente para as poucas peças. À noite, guardanapos protegiam as louças dos insetos, mas o risco do contato das baratas e dos ratos exigia a lavagem de tudo o que ficava exposto diariamente. Uma irmã de Margarete havia, recentemente, encomendado um conjunto de armários de cozinha. Restava a ela, quando visitava a irmã, admirar as peças novinhas e sentir uma espécie de inveja.
Eram quatro os filhos de Margarete. O mais velho tinha nove e dele formavam-se as escadas, com oito para a menina, sete para o terceiro e seis para o mais novo. O pai, um mecânico, aproveitou a demissão e decidiu virar autônomo, vendendo e entregando doces, salgados, verduras e outros produtos para os bares e as mercearias do bairro. Usava uma bicicleta para fazer as visitas e anotar as encomendas, com a intenção de comprar um carro em pouco tempo. Não levou sorte no negócio e continuar a pedalar, mas com uma bicicleta mais velha. Ainda novo, cruzava o bairro por ruas de paralelepípedos e vias sem calçamento, ajuntando poeira no suor. Margarete, sempre trajando simples e nunca trocando os chinelos de tiras, era uma costureira e com o dinheiro que recebia ajudava no sustento da casa. Simples, desajeitada, mas com uma beleza peculiar no rosto, emoldurado por cabelos pretos e lisos, ela trabalhava a vaidade das freguesas com vestidos costurados numa velha Vigorelli.

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