quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Conto - Maracujá doce - 3

O ferro-velho da parte debaixo da rua Guaporé era onde os meninos recorriam para montar suas engenhocas. Entre as mais simples, o carrinho de rolimã. Bastava um pedaço de tábua, um jogo de parafuso grande com porca e arruelas, alguns pedaços de madeira e três rolamentos de aço. Dois deles, menores, ficavam na parte de trás. O da frente, montado no pedal que funcionava como volante do brinquedo, variava de tamanho de acordo com quem fabricava. Os modelos mais simples eram os preferidos, mas vez ou outra alguém aparecia com uma novidade: uma pintura com o aproveitamento do resto de tinta encontrado na despensa da casa, uma almofada feita com um pedaço de espuma e tecido sorrateiramente pego da gaveta da mãe e até um sistema de freio com o uso de um pedaço de cabo de vassoura. Uma borracha pregada na parte de baixo prendia a rodinha traseira e brecava o carrinho.
As ruas não tinham asfalto, mas os meninos tratavam de providenciar uma pista lisinha, no formato de um oito. Alguns baldes de água sobre a poeira marrom eram os materiais usados na construção. Os que tinham bicicletas ajudavam, percorrendo a pista até compactar o solo. O oito era montado durante a semana no campo de futebol onde aos sábados e aos domingos eram realizadas as rodadas do campeonato varzeano. Por isso, a engenhosidade das crianças era condenada pelos boleiros, que precisavam jogar em um campo sem grama e de piso duro. Os próprios autores da arte sofriam as consequências quando trocavam o carrinho por uma pelada. Não foram raras as vezes em que Margarete teve que socorrer seus filhos com água e sal jogados sobre feridas nos joelhos.
À noite, após o jantar, os personagens do campo de futebol eram outros. O grupo de rapazes aproveitava uma das extremidades para formar uma roda e jogar conversa fora. Em outro espaço, não muito distante, as meninas se reuniam para as brincadeiras de roda. Cantigas singelas atravessavam a distância e batiam nas janelas das casas das famílias, tranquilizando-as: a voz da filha cantando em coro com as coleguinhas era a garantia de que do lado de fora da casa nada além do anormal acontecia. Já os garotos, donos supremos do pedaço durante a manhã e à tarde, ocupavam à noite o campo e as ruas que o circundavam em correrias que só eram encerradas após os gritos mais austeros dos pais. Brincadeiras do esconde, mãe da rua, pega-pega e outras diversões nada elogiada pelos adultos sujavam as roupas, encardiam os pés e arrepiavam as donas de casa quando os pequenos se recolhiam. Os que tinham torneiras no quintal de casa eram obrigados a se lavar com a água fria inclusive no inverno. A desobediência, de acordo com a ameaça gritada pela mãe de dentro de casa, era dormir fora caso os braços, o pescoço, o rosto, as pernas e os pés não estivessem limpos. A bola queimada era a única brincadeira que aceitava meninos e meninas. Mas quem entrava no jogo já estava na adolescência e aproveitava o momento para os primeiros namoros.
Havia meninas que contrariavam os pais e jogavam bola com os garotos. Chinelos encostados nas traves demarcadas com pedaços de tijolos, elas recebiam abraços quando marcavam gols ou faziam defesas. A habilidade com a bola nos pés era dispensada para elas. Nenhum menino reclamava quando uma menina, por grossura, entregava a bola para o adversário. Baixinho e raquítico, Riuzim não tinha a mesma sorte. Vestindo enorme calção de elástico batendo nos joelhos, ele só entrava em campo quando um ou outro jogador resolvia parar para beber água ou urinar na beira do morrinho de grama que servia como arquibancada. Mas logo saia, pois errava na recepção e nos passes. Quando faltava jogador em alguns dos dois times montados, Riuzim entrava, mas era mandado para o gol. Entorpecido pelo desprezo dos colegas, Riuzim ficava mais inseguro ainda e fechava os olhos quando o ataque adversário avançava sobre ele. Então os colegas chegavam à conclusão que era preferível jogar com um a menos do que tê-lo no time.
Ruim no futebol, bom na confecção de pipas. Riuzim aprendeu a fazer e a empinar seus papagaios de um rapaz que morava vizinho. Sabia afinar as varetas com paciência e exatidão, de modo a evitar que o brinquedo ficasse penso. Criava modelos misturando cores e inovando nos formatos. Os rabos, em argolas, tinham enfeites que só não ficavam perfeitos porque colados com a mistura da farinha de trigo com a água. Usava dois carretéis de linha para soltar a pipa e retornava para casa com a cara avermelhada pelo sol que batia diretamente na pele. A habilidade com o brinquedo rendeu uma fama para Riuzim. Em pouco tempo, garotos de ruas vizinhas passaram a procurá-lo para confeccionar as suas pipas. Como recompensa, ganhava figurinhas e bolinhas de vidro. Nas época de festas juninas, o pagamento era feito com bombinhas.
O bilboquê, que os meninos do bairro chamavam de bibloquê, também reunia adeptos habilidosos. Alguns encomendavam os seus próprios modelos na serraria da rua principal. Outros pediam aos pais que comprassem formatos diferentes em bazares do centro da cidade. Os malabarismos com o brinquedo assanhavam as namoradeiras e valiam pontos no jogo da paquera. Alguns conseguiam embirocar após as piruetas e as trocas de mãos, arrancando suspiros das admiradoras. Era a fase também do cigarro escondido dentro das meias. Em algumas rodas de meninos, um erro devia ser pago com um cigarro. Normalmente, o prêmio chegava ao grande vitorioso amassado e umedecido pelo suor das mãos. Riuzim era um péssimo praticante de bilboquê. Para vencer a frustração de não conseguir embirocar com um brinquedo de madeira, fabricava o seu com um pedaço de pau, um barbante e uma lata de massa de tomate. Com ele nunca errava, mas tinha receio de levá-lo para a rua e ser vítima de chacota dos colegas.
Melhor no jogo do pião. Não que Riuzim fosse um especialista, mas conseguia competir de igual para igual com meninos que eram considerados muito habilidosos. Por muitas vezes Riuzim partiu pião de adversário com o seu. Melhor ainda com as bolinhas de vidro. Esperto, Riuzim gostavo de jogar nos dias de chuva. Era quando calçava um botinão velho e pisava no barro com força. Durante o jogo, mesmo não vencendo levava para casa muitas bolinhas, que grudavam na sola do calçado e eram tidas como desaparecidas. A festa durou até quando outros meninos, usando a mesma tática, acabaram apanhando de outros da rua de cima e todos desistiram do engodo.

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