terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Conto - Perguntas, perguntas e o saco fica cheio

A lista de compras? Cadê? Onde você meteu a lista? Sabe quanto tempo demorei para fazer aquilo? Está pensando que é coisa de meia hora? Por acaso meteu no seu bolso? Dá para conferir se não está embaixo da lista telefônica? E se não acharmos essa lista de compras? Está pensando que eu vou refazer? Está doido, é? Não vai se mexer? Custa muito me ajudar pelo menos a procurar a lista de compras? Já perguntou para a empregada se não viu a lista em algum lugar? Você por acaso não está escondendo essa lista só para não ir ao supermercado? Não está de sacanagem comigo, né? Vai ficar parado me olhando? Enquanto eu dou mais uma procurada você não quer adiantando na garagem? Será que tem vaga lá na frente e você me espera na rua? Mas cadê essa maldita lista? Alguém não viu a lista de compras em algum lugar? Criançada, vocês perceberam que eu estou ficando nervosa? Ninguém disposto a me ajudar a procurar a lista de compras? Será que se eu não organizar esta casa alguém é capaz de fazer isso por mim? Está todo mundo de brincadeira comigo, é? Gente, ninguém vai se mexer para me dar uma mão? Percebem que estou ficando louca de tanta raiva? E aquele imprestável, será que já tirou o carro da garagem? Já viram se não está no saco de material reciclável? E isto aqui no meu bolso, o que é isto? Vai me dizer que alguém colocou a lista de compras no meu bolso, é? Será que eu endoidei mesmo? Ou foi aquele porcaria que colocou esta lista no meu bolso só para me azucrinar? Está tudo certo ai que eu já estou indo? Ou vão deixar para telefonar depois quando eu estiver fazendo compras?

E assim a mulher saiu batendo a porta nas costas. Também fez tremer os vidros do condomínio ao empurrar com violência a grade da portaria. No carro o marido, calado e constrangido, sentiu o baque quando ela sentou ao seu lado e puxou com vontade a peça pesada de vidro, lata e plástico que fecha a entrada do passageiro. E ele, sem se dar conta, pensou alto: “Essa porta devia ter caído. Na primeira curva eu ia mandar essa louca para o meio do asfalto”.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Conto - O poder rouba o sorriso e cria carranca

Beatriz mudou muito. Não houve, na verdade, uma transformação radical. Coisa assim como o corte dos cabelos do meio das costas à nuca ou a pintura do loiro para o negro brilhante que ao sol ofusca quando se observa.

Beatriz também não engordou. Continua magra e interessante. Muito menos deixou de se vestir no meio termo entre o esportivo e o social. Ela continua improvisando e muito bem. O jeans cai muito bem com o casaquinho. Nos pés, a preferência são ainda as sandálias de saltos altos.

O jeito de andar é o mesmo: soberbo, desafiador, provocante e enfim, charmoso. Quantos gostariam de andar ao lado dela? Muitos pretendentes, alguns manifestos e outros nem tanto. Sobram também admiradores que jamais se mostrarão a ela. Apenas sonham com remotas possibilidades.

Mas onde é que Beatriz mudou? Em que aspecto ocorreu a transformação? Quem conhece Beatriz além da figura esbelta que ela é sabe que a ocorrência está lá dentro onde ninguém enxerga, mas percebe. Basta a dose suficientemente necessária de sensibilidade para saber que a alma de Beatriz sofreu transgressões que a tornam diferente.

Beatriz assumiu a cara de uma pessoa preocupada com o que vai acontecer no minuto seguinte. Já não sorri com a expressão de uma criança feliz. É uma adulta zelosa com o que faz. Tem medo de errar, por isso nem sempre faz. Não ousa. E nem brinca como antes. Não se expõe e demonstra medo de tudo.

Não ouve música, não reparte mais os fins das jornadas de trabalho com o colegas na mesa de um bar. Sai do escritório e vai para casa limpar, lavar, passar, reprogramar, agilizar, providenciar, deixar tudo no jeito. Reclama mais do que antes.

Há quem aposte que tudo é por culpa do amor. A criança descompromissada agora tem um pretendente a quem retribuiu. E isso pesa, porque as intenções são sérias e a vida a dois, além do equilíbrio sentimental, exige muito mais, inclusive na parte financeira.

Mas os sintomas mais forte são de uma transformação profissional. Beatriz virou chefe, comando uma equipe de meia dúzia de colegas, assina, despacha, admite, demite, dá folga, nega férias, corta despesas e diz sim ao chefe dela. É estressante. Beatriz, com isso, virou uma comandante carrancuda que nem para os amigos que não são da empresa consegue mais abrir sorrisos. Beatriz é chefe.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Curtas - expectativas, reflexões e cigarros

Sujeira na janela

Li no vidro da janela que hoje ela não virá. É um escrito velho, feito com a ponta do dedo na superfície embassada. Ficou ali por falta de pano para limpar. Ou por receio de eliminar uma expectativa que deixou de vingar.

Contemplação e reflexão

Uma andorinha bateu hoje cedo na janela do sexto andar. Esclareço: mão foi um choque frontal no vidro. Foi uma visita igual a outras que ela me faz todos os dias. Retribuo com farelos de pão sem saber se é a dieta certa para um ser tão inofensivo. É a compensação pelos minutos de contemplação que o passarinho me proporciona. Da cena extraio outros minutos que uso para as reflexões sobre a minha ausência na casa das pessoas que eu bem quero. Há tempos não visito minhas irmãs.

Minha consciência

Acendi mais um cigarro. O de antes seria o último. O imediatamente anterior era para dar um basta nesse estranho jeito de passar o tempo com um treco aceso entre os dedos fedendo para os que passam perto. Só digo que o próximo será o último para ter a impressão de estar correto comigo. O que os radicais do combate ao fumo dizem só estimula a vontade de fumar cada vez mais.

Para mim mesmo

Promessa feita. Vou parar de fumar o quanto mais rápido desde que ninguém me aborreça com extremos sobre o mal de ser fumante.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Conto - O amor no compasso das músicas

A circunstância estava para “Dia Branco”, de Geraldo Azevedo. Um compromisso descompromissado. Proposta jogada para sorteio: “...eu lhe prometo o sol... se hoje o sol sair / ou a chuva... se a chuva cair...”

Coisas de amor e desamor. Em outras épocas as promessas valiam. Certa vez ele cantou para ela um trecho de “Apenas mais uma de amor”, de Lulu Santos, para demonstrar apreço incondicional a ponto de assumir sofrimento, se preciso. Escolheu o refrão: “...se amanhã não for nada disso / caberá só a mim esquecer – eu vou sobreviver / o que eu ganho e o que eu perco / ninguém precisa saber...”

Dramático e conveniente para aquela fase. Cinema para comer pipoca e trocar beijos salgados. Caminhada em volta do lago e apalpadas proibidas no percurso. Sussurros eróticos e lances de pornografia no imaginário até o início da próxima cena de amor, nunca de sexo. Carícias, exageros e a despudorada certeza de impunidade para qualquer ato.

Durou um bom tempo. Desprezaram “Valsinha”, de Chico Buarque. Jamais pensaram em retomadas ou reformas naquele ambiente de amor. O cúmulo foi o resgate de Edith Piaf, jamais na voz dela, mas em interpretações variadas na versão nacional: “...se o destino, então nos separar, / se a distante morte, te encontrar, / não importa, querido (a) / porque eu morrerei, também...”

Juntos até na morte, algo parecido com Romeu e Julieta. Relação apegada no discurso do meu caminho é o teu. E almejaram seguir uma estrada, de mãos dadas, até chegar ao lugar dos sonhos bem no rumo do sol. Enfim, o paraíso das idéias que se completam por falta de opostos.

Até que se aquietaram. E foi por um longo período. Mas só perceberam que a trilha do ideário estava desfeita quando ouviram, vindo do apartamento vizinho, aquele trecho: “...e ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou / e foi tanta felicidade que toda a cidade enfim se iluminou / e foram tantos beijos loucos / tantos gritos roucos como não se ouvia mais / que o mundo compreendeu / e o dia amanheceu / em paz...”

Terminada a canção assumiram, cada um para si próprio, que já era muito tarde para cantar Valsinha.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Crônica - O que a saudade esconde lá dentro

Após a dobra da esquina tem um portão, mas não é uma entrada qualquer. É o acesso a um quintal tão parecido com outros. No lado, na frente, na outra rua e em outros bairros. E dali se vê o mato baixo. Ervas daninhas, capim marmelada, folhagens diversas, grama esparramada.

Aos fundos um pé de limão rosa, copa grudada na mangueira que dá manga coquinho, à sombra das folhas de um gigante abacateiro. Se há flores elas se destacam, como o copo de leite rente à cerca de balaústra. Quem dera encontrar a mamona carregada e fazer travessuras. Brincar de guerra, esgotar paciência de quem passa alvejando costas e se escondendo atrás da moita de cana.

Tem uma construção em madeira logo adiante, é uma casa sem varanda nem pintura. Ela é de janelas toscas, de tábuas grossas e desalinhadas. Tem uma fresta na beirada da porta, falha de matajunta e ferrugem do prego. Pouco se vê do lado de dentro, o que os olhos mostram é um vazio, o que os ouvidos captam é um silêncio, o que a alma sente é uma saudade.

Tenta-se achar o fogão de lenha feito de tijolos e cimento, a chaleira de café em cima, sobre a brasa mantida dia e noite, no inverno ou no calor. Nenhuma mesa por perto, nem cadeiras em algum lugar. A distância da visão é mais longa do que se enxerga. Da cozinha vai à sala e de lá ruma-se aos quartos. Não existe um sofá velho de veludo manchado. Ninguém caminha pelos cômodos.

Há um vácuo entre o passado e o presente. Preencho este espaço com lembranças. Procuro mamãe e não a encontro. Para onde foram minhas irmãs? Papai deve estar no trabalho. Quero abrir a porta, preciso pegar meu carrinho de rolimã. Faz tempo não solto pipa. Devo reaprender a rodar pião.

Como eu queria uma casa com varanda! Sonhei um dia estar lá dentro vendo lá fora pela janela de vidro. E aquela mulher de cabelos negros presos em coque na nuca? Imagino quanto ela quis uma cadeira confortável posta à sobra ao entardecer.

Sonhos que eu tenho sempre de um lar humilde. A velha casa de madeira já não existe. E nem o meu retorno até ela me devolve o que busco lá, após a dobra da esquina, num quintal que nem eu sei, talvez eu tenha medo de entrar. Onde mamãe pôs o meu par de tênis para secar? Pessoas que não encontro. Coisas que perdi. Ali no pé do fogão de lenha pensei encontrar a resposta.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Conto - Me exclui fora dessa de guru moderno!

O guru, na versão moderna, é uma espécie de capacho. Orienta até certo ponto sobre determinadas coisas, mas nunca passa a linha invisível da sensibilidade de que ele aconselha, orienta ou consente.

Viram o consente ai em cima? Pois é. Guru moderno está mais para consentir. É como um assessor político que cisca alternativas para o patrão mas acaba se submetendo ao que o chefe determina.

Mulheres de relativos caprichos gostam de gurus. Porque gurus, na ordem do dia, são inofensivos. Nunca bronqueiam e jamais se arriscam. Gurus, normalmente, fecham a sensibilidade sexual e caminham hermafroditas. Por isso às vezes rebolam e outras falam grosso.

Não é preciso um curso para ser guru. O guru pode ser o cabeleireiro da mulher de relativo capricho. Algumas mulheres até se encostam em motoristas e cobradores do transporte coletivo. Muitas preferem os fardados. Há quem permita que esse capricho vire uma obsessão.

Ontem atendi ligação telefônica de uma amiga. Tive que me improvisar como um conselheiro de assuntos delicados que, conforme ela me disse, só comigo poderia conversar.

Já fiquei com uma impressão ruim. Do tipo: eu, guru? Mal pensei e ela telefonou de novo só para me complicar ainda mais. Eufórica, disse que seguiu minhas recomendações e acertou uma situação complicada.

E na despedida foi bem assim: obrigado meu guruzinho! Eu, heim? Será que só sirvo para isso? Penso, infelizmente, que sim. Pois tenho sido excluído da parte boa, aquela que termina em gemidos. Mas vou avisando: guru não. Tô fora, meu...

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Opinião - Diferença entre o saber e a sabedoria

Cora Coralina diz tudo de um jeito simples e eu recorro a ela: “O saber se aprende com os mestres. A sabedoria, só com o corriqueiro da vida”.

Ela é uma soberana. Batizada Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, esta goiana nasceu em 20 de agosto de 1889. Era uma doceira. Mas ficou gigante como poeta e contista. E mesmo grande na poesia e na escita, jamais deixou de pisar no chão. Faleceu em Goiânia em 10 de abril de 1985. Mas nunca morreu. Ficou para a eternidade.

Na literatura brasileira ela assinava suas obras como Cora Coralina. E eu ouso transcrever um poema, com o título “Humildade”, antes de trocar idéia sobre saber e sabedoria:

“Senhor, fazei com que eu aceite / minha pobreza tal qual como sempre foi / que não sinta o que não tenho. / Não lamente o que podia ter / e se perdeu por caminhos errados / e nunca mais voltou. / Daí, Senhor, que minha humildade / seja como a chuva desejada / caindo mansa, / longa noite escura / numa terra sedenta / e num telhado velho. / Que eu possa agradecer a Vós, / minha cama estreita, / minhas coisinhas pobres, / minha casa de chão, / pedras e tábuas remontadas. / E ter sempre um feixe de lenha / debaixo do meu fogão de taipa, / e acender, eu mesma / o fogo alegre da minha casa / na manhã de um novo dia que começa.”

Saber e sabedoria! Quanta distância entre uma coisa e outra! Cora Coralina, pelo que presumo, teve como seu grande mestre, para o saber, a sua vida simples nas ruas de Cidade de Goiás, onde nasceu. A sabedoria ela extraiu daquele cotidiano.

Eu tive minha mãe como a grande mestre. Ela me ensinou decência e dignidade. Com isso me deu base para agir sempre com ética. Certeza vez, menino do antigo grupo escolar, onde se estudava o curso primário, uma colega de sala, de família rica, prometeu trazer um pacote de doce produzido na fábrica de seu pai. Não me trouxe e um dia me passou um dinheiro que eu nem imaginava quanto era para que eu comprasse a Maria mole em canudo no bar perto da escola.

Em vez de comprar o doce eu levei o dinheiro para casa e entreguei para minha mãe. Ela ficou surpresa com o valor e no dia seguinte foi à escola, comigo, para que eu devolvesse o dinheiro à colega. Fiquei muito envergonhado.

Saber e sabedoria! Nessa curtíssima história eu tive as duas coisas. Como disse Cora Coralina, saber se aprende com os mestres e a sabedoria com o corriqueiro da vida. Minha mãe e aquela experiência ainda fazem parte de mim. De um jeito muito forte! 

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Crônica - Como construir a imagem na recepção

Eu sou Lima mas não sou laranja! Assim ele se anunciava aos políticos. Sujeito boa pinta! Cabelos penteados com uma mecha na parte frontal, meio à esquerda, trazida pelo pente ao outro lado. Camisa esporte fino sempre por dentro das calças, mesmo no caso do jeans. Calçados meio termo. Nunca um tênis, mas o esporte requintado, de couro de verdade. Brilhantes por força da graxa e do engraxate. Meias Lupo, as outras marcas eram desprezadas.

Lima, nunca mais do que isso. Sua graça, senhor? Lima, mas não sou laranja, senhorita. Lima, mas o seu nome, por favor? Lima basta, contanto que fique claro que não sou laranja.

As conversas eram assim, com dose de humor no tom e na medida certa. Verdade que nem sempre essa comunicação era bem vinda. Às vezes Lima era interpretado como alguém que não fala sério. Havia quem imaginasse que ele escondia o jogo. E questionavam os lá do canto que esse fulano tem a ver com os políticos, pois só anda atrás deles, e sempre chega com a conversa fiada de ser o Lima que não é laranja.

Normalmente as mocinhas da recepção faziam de conta que o sujeito agradava. A função delas é essa, fazer com que as pessoas atendidas sintam que são agradáveis. Grande mentira! Tinha uma que odiava a ponto de após recepcioná-lo correr ao banheiro para lavar o rosto por culpa do beijinho que Lima deixava estalado no rosto branquinho e perfumado.

E isso Lima nunca percebeu. Na saída, após a audiência com o político, Lima se despedia com outro beijo. Houve ocasião em que a mocinha da recepção havia acabado de retocar a maquiagem e reforçar o perfume após se lavar por asco do beijo da entrada. Que coisa!

Lima, na verdade, tinha pretensões e o seu recado era direto: Eu me chamo Lima mas não sou laranja! Era isso. Ele na verdade anunciava que estava liberado. Como cabo eleitoral de situacionistas e opositores ao mesmo tempo, ele oferecia seus serviços.

O emprego público não interessava por causa dos salários. Mas outras incumbências seriam bem vindas.
O duro era que os políticos, acostumados com esse tipo de vocabulário, faziam de conta que não entendiam. E assim Lima passou a ser conhecido entre as recepcionistas e os serviços gerais por outro apelido. Mal ele cruzava a rua lá adiante e alguém vinha avisar a moça da recepção: se prepara que o laranja azeda está chegando! E ela emendava: credo, de novo aquele mala de cabelo chupado!

Pois é senhores contatos, representantes comerciais, promotores de laboratórios médicos e demais visitantes! Cuidado com o que usam, fazem e com o que falam com as mocinhas da recepção.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Conto - A maldade escorre pelos cantos da boca

Era um veneno! Na jornada de trabalho de oito horas, descontado o intervalo do almoço, ainda restava uma para os afazeres profissionais. Antes que alguém se coloque a fazer contas e criticar a matemática de até agora, o aviso: a mulher era assídua e pontual. Chegava às oito e meia, saia para o almoço às onze e meia, retornava uma da tarde e deixava a repartição às cinco. De segunda a sexta, exceto nos feriados.

Assim, tirando o intervalo estabelecido por lei e o das tarefas diárias, as outras seis horas a menina gastava em conversas. Aliás, que conversa. E nos perdoem as mocinhas bonitas. Menina, neste caso, é um qualificativo ao contrário atribuído não à presença física da pessoa, mas ao caráter.

Então, se permitem, ela será chamada de menina até o ponto final deste texto. Menina! Oras, fazer o que? A menina falava de todo mundo. Da vizinha que tinha um caso com o patrão, da colega de trabalho que enrolava o dia todo, do chefe que fazia de conta que trabalhava, do dono da padaria que bolinava a balconista e de todos os demais que, por um motivo ou outro, ela via como inimigos. Sim para fazer parte das conversas bastava a pessoa ser vista como inimiga.

A menina, de acordo com próprio conceito, era perfeita. Em tudo! No trabalho, no lar, na pilotagem do fogão, na arrumação da geladeira, no penteado e no retoque do baton. E de tão exata nas coisas se dava ao direito de ser crítica dos outros. Inclusive no intervalo do almoço, onde comia prato feito num restaurante próximo do trabalho.

Certa vez ela foi vista dividindo a mesa com duas colegas. Enquanto comia falava dos outros. E a baba, se não se via escorrer, descia veneno. Perceberam as companheiras constrangidas, pois elas haviam recorrido ao local para se alimentar de comida, e não de maldades. Mas a menina prosseguia, com uma história atrás da outra, vertendo veneno pelos cantos da boca.

Foram quase trinta minutos no local. As duas saíram antes, cabisbaixas. Ela desceu depois para o trabalho, tropeçando nos degraus e bambeando. Diagnosticaram que a tontura foi resultado de deficiências graves na visão, na sensibilidade, no caráter e na personalidade. Nenhum médico quis receitar medicamento. Disseram que a solução para o caso seria a dignidade própria. E a menina continuou cambaleando e tropeçando nos degraus.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Conto - A vingança de Leopoldina foi com outros

Diríamos que Leopoldina tinha um gênio forte atrás de uma cara bonita e um corpo esplêndido apesar dos quase quarenta anos. Depois que ela pôs o casamento com Teodoro em risco ao tentar um embalo com o farmacêutico Anacleto, que por fidelidade ao amigo afastou-se dela chamando-a de velha, soube-se que Leopoldina arriscou-se outras vezes com outras pessoas.

Lembrem-se: Anacleto, não fosse por Teodoro, claro que provaria do mel mesmo sob a ameaça de engolir o fel. Há coisas que compensam se a adversidade prevista fosse apenas a mudança de sabor. Mas havia uma amizade no meio daquilo tudo. Então Anacleto foi decidido e duro. Disse a Leopoldina que não gostava de mulheres velhas. Para ela aquilo foi o mesmo que chamá-la de feia, horrorosa, gorda e desleixada, o que a ela a triplicar as idas à academia de ginástica, entrar numa dieta alimentar exageradamente sem sentido, mudar o corte de cabelo, trocar de esteticista e procurar outra pessoa para as depilações.

Os resultados mal apareceram e teve-se que concluir que, além de vingativa, Leopoldina tem uma forte tendência de querer transformar o marido no último a saber das coisas. Ou, quem sabe, não saber de nada. Teodoro até manifestou alegria a alguns colegas da repartição pela mulher mudar radicalmente de visual. Ele teria dito que Leopoldina fazia aquilo por amor a ele. Alguns acreditaram. Outros apenas consentiram por respeito. Mas houve aqueles que debocharam pelas costas na primeira oportunidade.

Naquela altura já se propagava que o motivo da transformação era Frutuoso, um bem sucedido professor de curso preparatório para concursos públicos. E Leopoldina virou aluna assídua. Sem faltas e sem desabonos. Aplicadíssima, ela até fazia aulas extras. Primeiro na lanchonete perto do cursinho. Depois, para fugir do barulho do trânsito e dos demais freqüentadores, no apartamento de Frutuoso.

Cara de pau! Ela chegava em casa tarde da noite e dia a Teodoro que havia tido uma lições extras com o professor de administração pública e o extra havia valido muito. Ele, Teodoro, ficava eufórico com o esforço da mulher. E assim prosseguiu por meses de preparativos para um concurso na qual Leopoldina nunca se inscreveu.

Aulas e mais aulas, com direito a esclarecimentos individuais, um dia fizeram que o oficial virasse reserva e o suplente ficasse titular. E Leopoldina sentiu o desejo de trair os dois. Fez isso recorrendo a Miguelito, dono do estacionamento perto do cursinho, para quem trocou as roupas mais esportivas por modelos clássicos.
Sobre essa mudança, Teodoro não se continha de contentamento e saiu dizendo que Leopoldina era uma surpresa a cada hora para manter a paixão dele por ela. Só Anacleto, lá do fundo da farmácia com a seringa de injeção na mão, se lamentava chamando a si próprio de tonto. 

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Conto - Não fosse o equívoco daria uma paixão

Foi um equívoco. Assim Leopoldina classificou o amor repentino por Anacleto. Aconteceu, num resumo improvisado, mais ou menos assim: ele era farmacêutico dos antigos, de aplicar injeção mesmo sem ser especialista. Educado, dispensava atenção a todos que compravam no estabelecimento e, se fosse preciso, ajeitava a seringa e medicava quem quer que fosse: mulher, homem, criança, adolescente, jovem, idoso, gato da madame, cachorro do comerciante, passarinho do guri e cavalo do verdureiro.

Foi que certa vez Leopoldina saiu do médico com a receita de quatro injeções seguidas num intervalo de oito horas: braço esquerdo, nádega direita, braço direito, nádega esquerda. Anacleto foi liso. Nunca derrapou a mão. Mas aquele jeito educado e solícito e a sensação de ter as nádegas observadas mexeram com a mulher.

Fosse ela solteira... Mas Leopoldina era casada com Teodoro e ambos tinham três filhos. Aquela agitação foi um problema. Houve muitas tentações. Em alguns momentos, incontroláveis. Leopoldina passou a frequentar a farmácia quase todos os dias. Para comprar uma aspirina, trocar a pilha do farolete, consultar marca de colírio, trocar idéia sobre o melhor tipo de pano para lenço e decidir sobre o melhor modelo de calcinha. Tudo virou motivo para uma ida a farmácia.

Anacleto percebeu, mas se manteve liso. Imagina se o Teodoro fica ciente? E eles eram grandes amigos. Até as insinuações de Leopoldina Anacleto fazia de conta não entender. Respondia atravessado, sem coisa com coisa. Às vezes se tornava ríspido. E quanto mais cruel o Anacleto, mais Leopoldina se apaixonava. E quanto mais apaixonada, mais loucuras fazia: escrevia bilhetinhos que eram deixados descuidadamente no balcão, telefonava de hora em hora, sorria para o farmacêutico um sorriso escancaradamente denunciador na frente de todo mundo.

Certa vez Leopoldina pediu a ajuda de uma amiga para segurar uma faixa em frente ao estabelecimento de Anacleto com a frase: Eu te amo! Muito! A amiga rasgou a faixa com uma tesoura. E foi correndo avisar o Anacleto e pedir a ele dar um basta. Do tipo, diz para ela que você odeia mulher. Claro, Anacleto discordou. O que fez foi dizer a Leopoldina que não gostava de mulheres velhas, preferia as novinhas. E Leopoldina passou a odiar o farmacêutico.

O drama é que naquele tempo não havia botox. Leopoldina nem tão velha era. E Anacleto nem tão jovem era. Ele até que se satisfaria com aquela mulher madura, mas em forma. Por lealdade a Teodoro desceu o que pode e chamou Leopoldina, que considerava uma pessoa bonita, de feia. Foi assim que ela entendeu. E a vaidade transformou a paixão em equívoco. 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Conto - É como diz a poesia: inimigo e irmão

Leonita ainda tem dúvidas. Não sabe se faz a mensagem chegar ao destinatário. Isso depois de muito refletir. Ela gastou semanas em hipóteses e possibilidades. O objetivo é encerrar uma situação constrangedora que está instalada mas não se faz flagrante. É camuflada e por ser assim seus efeitos são mais nocivos.

“Melhor se fossemos inimigas declaradas”, imagina Leonita. Porém, se fosse dada a análise para pessoas de fora, diriam, provavelmente, que aquelas duas são mais do que amigas. “Parecem irmãs”, arriscariam alguns. 

A face oculta da maldade percebida por Leonita é Alzira, colega de longos anos no trabalho e, por certo, em determinado período do convívio profissional amiga, e muito. Da mesma forma que é percebida, essa maldade também é assumida. As hostilidades quando estão só são recíprocas. Não há uma tentativa de acerto.

Alfinetadas! Provocações inteligentes e certeiras fazem parte das conversas, qualquer que seja o assunto. Ambas trabalham na mesma sala. Uma fica de frente a outra. O poder foi alternado por várias vezes entre ambas: Leonita já foi chefe de Alzira que também já comandou Leonita. Esta, porém, não parece ser a causa da intriga. Alzira está noiva do ex-namorado de Leonita. Será?

Motivo que seria convincente caso o amor de Leonita pelo ex fosse substancioso. Ao que se sabe, nada de estimulante aconteceu naquela relação. Era um vai e volta sem tempero, do tipo que se leva para evitar um rompimento que deixe mágoas. Talvez seja isso, o arrastamento sem nexo, que tenha criado traumas e conseqüências. O que diria o ex a Alzira sobre a ex?

Provavelmente o conflito venha em decorrência de uma culpa sem culpa. Leonita até apostaria, se dotada de fundamento, que o causador é o ex. Seria uma forma de se vingar, criando um clima de desacerto entre a ex e a atual.

Um poema de Hans Magnus Enzensberger, poeta alemão, pegou recentemente as duas juntas durante a execução de um CD de música em volume de som ambiente. Uma lixava as unhas e outra retocava as sobrancelhas quando a versão de Arnaldo Antunes e Aldo Fortes entrou no refrão: “Meu inimigo / debruçado sobre o balcão/ na cama em cima do armário / no chão por toda parte / agachado / olhos fixos em mim / meu irmão”.

Pelas expressões ambas escutaram e até acharam interessante. Mas se entenderam fizeram de contra que não era com elas. E a mensagem foi enviada para a lixeira. 

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Conto - Um amor assim, quase que platônico

"Tenho uma panela lá no último dente de cima do lado esquerdo. Mas estou providenciando uma tampa. O dentista agendou para abril e tentei antecipar para fevereiro, logo depois do carnaval. Ele disse que está com a agenda cheia. É uma clínica particular onde, a princípio, recomendaram tirar todos os dentes e fazer uma prótese. Fui pedir informação no atendimento público e disseram que não. Nada disso. Tem como consertar. Basta uma massa de durepóxi e, se preciso, um super bonder por cima. Cola e ninguém mais arranca. Sabe, incomoda muito, viu? Não é só a dor de vez em quando. E isso se rebate com dorflex. É colocar na boca e passa. Incrível! Como alivia! O que machuca mesmo é o constrangimento. Quantas vezes ensaia as frases para dizer que te amo? Com elas decoradas, cheguei bem perto de você. No ponto de ônibus, na fila do caixa do mercado, na quitanda da esquina, na saída da missa e nos encontros casuais de calçada, entre um ir e vir. Nunca tive coragem de abrir a boca. Imagina, a panela está lá no fundo, no molar. E se você enxerga? Nem uma poesia copiada ia adiantar. A bochecha inchada já forma uma deformidade na cara. Pensei certa vez em encarar de frente, mas com a mão tapando a minha boca. O que você iria pensar de um cara que conversa com a boca escondida? Com certeza iria imaginar que eu tenho mau hálito. Não, esse problema eu não tenho. Eu me cuido pelo menos nisso. Cheiro nenhum sai da minha boca. Ou, no mínimo, você pensaria que eu sou tímido e nem para conversar tenho postura. Por isso decidi abrir o jogo. Primeiro confesso que você rodeia os meus pensamentos a cada instante. Acordo com você na cabeça. Almoço imaginando você ao meu lado. Janto triste por não ter a sua companhia. E me deito fracassado, com a sensação de ter perdido mais um dia. Pois é. Tudo por causa da panela no dente de cima. E seu eu rir para você é capaz de você enxergar ela sem tampa. E quando te vejo por ai? É um destempero. Eu me perco, entro em desespero porque quero conversar e não posso. Por último porque tenho certeza que serei um bom par para você. Só não sou agora por causa da panela do molar. Cabe a ponta do mindinho dentro dela. Agora que sou confesso? Tenho alguma chance? Ou devo rasgar esta carta? Nossa, demorei tanto para escrever. Sabe? Estou desistindo. Por enquanto estes rabiscos ficam na gaveta. Quem sabe eu me livro deste incomodo o quanto antes?"

E assim praticamente terminou a história de um amor platônico. Ele colocou a carta bem no fundo da gaveta, embaixo de um monte de faturas vencidas. A três quadras ela acabara de entrar numa farmácia para comprar corega. Aliás, uma precaução para evitar que a dentadura caísse no momento adiante, quando teria encontro com um rapaz de dentição perfeita. Assim é a vida, oras! 

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Conto - Nomes e comportamentos, tudo a não ver

Alicanor! Onde é que inventaram este nome? Aos 69 anos de idade ele descartava a possibilidade do Alicanor ter sido inspirado numa pesquisa da internet. Quando nasceu, imagina o homem, nem banda fina existia. E telefone era na base da manivela.

Não foi de propósito que quando estava com 25 anos de idade Alicanor casou com Rubertina. Foi coisa do amor! E desse amor nasceram Lindalva, Nativida e Antonácio, o caçula.

Lindalva casou com Oliveira e Silva. Tiveram duas filhas: Kauany e depois Priscila. Nativida ajuntou com Belomonte e ambos geraram um único filho, Maicon. Antonácio, por ser mais jovem, ficou com Regiane e ainda não tem herdeiros.

Mas planejam. E já relacionam nomes. Aproveitam a tendência e pensam em resgatar algo forte do passado: Rodrigo, João e até José, desde que combinado com outro que também lembre o tempo que já passou.

Ninguém pensou em religião, mas Mateus é muito bem cotado. Da mesma forma João Pedro, que combinado dá um bom som. Se for mulher, Antonácio já criou caso quando Regiane ventilou Daiane. Para ele, parece nome de guerra de algum lugar mal recomendado. Por isso na lista nem Diana tem lugar.

Tia Fiorentina meteu bedelho e sugeriu uma adaptação, em homenagem: Florentina. A turma, claro, caiu de pau. Tio Ambrósio pensou em valorizar Maria. Mas com o que? Socorro, das Dores, da Compaixão? Nada disso: Maria Mariá, pois tem rico que usa o acento agudo muito bem definido e fica bom e charmoso.

Esse casamento sem filhos estica quatro anos sem filhos. A lista de nomes está na quarta folha do caderno grande. Antonácio já perdeu estribeira e arranjou caso com Vanda, uma colega da faculdade. Regiane não sai das redes sociais e levanta suspeita de uma infidelidade virtual.

Ontem anunciaram aos familiares a possibilidade de separação. Os parentes já estão comentando que a falta de definição de um nome para os filhos é a causa do desacerto. Vanda, novinha e de corpo escultural, que o diga. Regiane, pronta para um encontro com alguém que conheceu na internet, faz de conta que não é com ela. O nome do cara é Richardison. Grande troca!

E lá atrás, perdidos no tempo, Alicanor e Rubertina nem mais compreendem o que as pessoas falam durante o almoço de domingo. 

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Ela contenta ele e o resto da platéia se assanha

Aquele cidadão é sortudo no amor! Ou não? Corpo arquejado por causa da idade avançada, ele passeia ao lado de uma mulher que se já não é nova, veste-se pelo menos como uma mocinha: saias ou vestidos curtos com decotes generosos. O perfil da menina é acrescentado com os cabelos curtos e lisos sempre bem pretinhos.

Ela chama a atenção. Por onde passa ou se instala os olhares masculinos conferem, às vezes com certa curiosidade, outras por algo mais. Sentada na mesa de um café na frente do companheiro, ela pouco se importa se a saia ou o vestido sobe. E há quando a subida é mais do que o necessário.

E daí? O rosto é de uma mulher madura. Mas ela sabe trabalhar os olhos para que o conjunto expresse sensualidade. Os lábios assanham. Até a franja, quando jogada intempestivamente para os lados, provocam. Mulher fatal e perigosa.

Ele, na frente dela, parece ignorar os movimentos da companheira e das pessoas que estão ao redor. Quem sabe? Talvez ele goste de aparecer em público acompanhada de uma mulher que o estimule tanto quanto mexe com os outros. E se isso acontece é bom para muitos: o casal e os demais apreciadores.

Mas há sempre alguém que sonde com maldade. Deviam desfrutar do ambiente, porém ultrapassam limites. Houve quem fizesse julgamento unilateral, sem conhecimento de causa, na maldade e com ironia. Do tipo, a mulher dá a maior bandeira e o tiozinho nem ai. E o complemento, mais venenoso logo em seguida, muito mortal. Bem assim: parece que ele gosta de ser corno...

Para que isso? Havia outras versões, algumas bem brandas e complacentes. Entre elas a que dizia que o tiozinho era provavelmente viúvo e se cansou da solidão. Então resolveu procurar uma parceira que lhe devolvesse uma mulher experiente mas em forma física e comportamental de adolescente no fogo da paixão. Ou, das paixões, pois o fogo é maior. E nesse caso valia a quentura do que ela proporcionava a ele, mesmo que para isso tivesse que recorrer a uma mostração pública que nela causasse incentivo.

Isso é pecado? Dizem que sim e rebatem que não. Argumentam que a intenção é apenas o começo de um pecadinho. E se não passar desse começo não se consolida como um ato. Sem ato não há pecado. Mentira? Pode ser e pode não ser.

Coerente é saber se ela se completa e ele também. Se assim for que ambos sejam felizes e que ela traga, por muito tempo a frente, colírio aos olhos de outros e estimule desejos que só ela, em seu exclusivo arbítrio, poderá, se for o caso, dizer a alguém da platéia que deseja levar aos fatos. Enquanto no atual estágio, temos que o cidadão se satisfaz no amor e nas coisas físicas que a paixão provoca. E isso nos contenta. Cara de sorte!

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Conto - A lua cheia sabe dos meus temores

Veja que é lua cheia e eu não tenho medo de lobisomens. Ela ocupa um pedacinho do céu, bem na parte ao lado da quina do prédio em frente, quase nos últimos minutos da primeira madrugada em que se pôs. Eu a vi! Gigante e soberana! E percebi que lá de longe ela me observa.

Não me senti invadido logo ao despertar, com os cabelos desarrumados, olheiras denunciadoras de um sono abalado, boca seca e cheiro de edredon pedindo lavagem. Juro! Encarei-a como um amigo íntimo. Afinal de contas, quantas vezes ela me flagrou em delito? O cigarro escondido, os passos trôpegos da bebedeira, os beijos roubados, o sexo descuidado e outros exageros. Inclusive os cachorros quentes devorados em tantas madrugadas em carrinhos de duvidável higiene após noites de embalos e folias.

É isso. Não tenho medo de lobisomens. Mas tenho receio dos meus fantasmas. Porque não os vejo, mas sei que me perseguem. São fantasmas de uma dimensão que é só minha. Estão na minha alma. São coisas que eu fiz pela metade e fechei o balanço sem um desfecho. Ou que eu não fiz. E sei fiz, desfechei errado.

Mulheres que fiz chorar, oportunidades que deixei passar, intolerâncias, incompreensões, azedumes desnecessários, são estes os meus fantasmas. Talvez mais do que isso, a memória age, às vezes, de acordo com a conveniência.

Haveria por parte da lua cheia uma cobrança dessas coisas pendentes? Confesso que já tentei me aliar a ela. Em cada ato desses que eu pus estragos por fazer sofrer a mim mesmo ou a outros sempre estive consciência que de algum lugar ela era testemunha de um erro. Mesmo na lua nova. Que fosse minguante ou crescente. Mas era ela, a lua cheia, indo ou vindo.

Ela não me impõe castigos e nem me diz que devo refazer algo que fiz errado. Não me pede para completar o que ficou pela metade. Não exige que eu faça aquilo que eu devia ter feito. E é justamente pelo silêncio que a presença dela me tortura. Eu tenho medo dos meus fantasmas.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Resgate - Um capítulo de Maracujá doce

(resgato texto já publicado de livro que nunca foi editado)

A semana iniciada com uma chuva fina, quase garoa, aumenta a sensação de aperto no coração. Os pingos miúdos descem ininterruptos e enganam. O olhar diz que eles são insuficientes para molhar a roupa e encharcar os cabelos. Mas a alma pede uma lavagem que o banho quente ao acordar não supre. Muito além da vontade de refrescar o corpo na manhã de verão, vale a necessidade de expurgar o que causa uma dor difícil de suportar. É de um conteúdo estranho, como se dois extremos escolhessem o mesmo momento para se manifestarem. Um deles, engrossado por contradições, quer explodir. O outro, vazio, pede o silêncio.

Riuzim encosta a testa no vidro da janela da casa e observa, distante, a cena de um dia sem sol. A pressão dos pneus dos carros sobre o asfalto molhado produz um barulho melancólico. Uma mulher atravessa a rua, protegida com uma sombrinha de cores vivas, e avança com passos ligeiros para um destino que Riuzim se pergunta qual seria. Indagação vã e sem pretensão, pois surge num vácuo do sentimento que naquele momento atordoa e abobalha a figura que, na contraluz, permanece imóvel diante da claridade permitida pelo vidro transparente. O que pensaria a mulher sobre a vida? Estaria ela a procura de alguma resposta para questões em aberto acumuladas durante os trajetos que percorreu, passo a passo, sob a garoa de uma manhã de janeiro? Assim ela se vai e vence o espaço entre um ponto a outro. Não olha para trás e não deixa rastros, distanciando-se cada vez mais como se o seu ímpeto fosse o de sumir, sair da vista de quem fica e a observa.

No vão do pensamento, Riuzim apenas torce para que ela chegue aonde quer que seja. Ele usa estes estilhaços de cena para compor uma espécie de canal, longo mas percorrível desde que transposto por passadas da imaginação, por onde possa escapar do instante que o imobiliza na frente da janela. Logo será a vez dele ir, sem caminho traçado e nem rumo definido. Ainda escorado no vidro, Riuzim percebe o reflexo da estante, onde um porta-retrato velho escora-se na cerâmica de um vaso com flores de plástico. Na foto, quatro crianças tímidas encaram a parede da frente da sala com olhares de espanto. Ele e seus irmãos, anos atrás, quando ainda tinham o quintal com o pé de limão rosa, a manga coquinho, os varais sobre o gramado e o maracujá doce, posam justo para um momento de angústia que é aquele.

No passado, as fugas tinham os extremos do quintal como aliados. Ia-se da cozinha para o tronco do abacateiro sem o receio de não ter para onde voltar. À noite, as estrelas pareciam próximas e a lua, quando surgia, iluminava mais que a lâmpada incandescente da cor do tomate sobre a mesa usada para o jantar. Nem que o medo das janelas abertas ao vento com a pressão contínua das taramelas ainda alimentassem os pesadelos. Nem que as frestas do assoalho de tábuas e das paredes de mata-juntas quebradas preocupassem por causa das invasões das baratas e das aranhas. Ainda assim a velha casa de paredes sem pintura oferecia mais segurança que o edifício de concreto onde a janela que dava para a rua mostrava a chuva numa manhã de tristeza.

Por isso Riuzim teria que ir o quanto mais rápido. Somente fugir do espaço onde se encontrava e de si mesmo, sem pensar se retornaria. Depois mediria a temperatura do coração para decidir se valeria a pena buscar um ponto de partida. Então se entregaria ao exercício de localizar onde tudo começou. Caso contrário iria adiante, sempre, para onde a alma não gemesse tanto e os extremos desistissem do conflito.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Conto - Espumante, panetones e reflexões

Panetones! Claudete presenteou alguns parentes e amigos com nove deles. Recebeu de volta oito. Não fosse por este um que faltou, poderia se dizer que a troca de presentes de Natal foi, para ela, uma permuta de panetones.

Nem as marcas variaram muito. As de sache fabricadas por supermercados vieram em maior quantidade. Depois as de caixinhas, umas de fabricantes tradicionais, outras com logomarcas ainda desconhecidas. De latinha Claudete recebeu um.

Ainda estouravam fogos de artifícios quando as reflexões começaram: “Eu comprei três de latinhas, cinco de caixas e um de sache. Perdi um que não me devolveram. E vamos supor que das latinhas um me devolveu com a mesma moeda. Quem seriam os dois que substimaram a minha lembrança?”

Abraços, beijinhos nas bochechas e votos de um Feliz Natal entre croquetes, fatias de assados, uvas de diferentes qualidades e espumante conseguiam acalmar Claudete. Mas a curiosidade apertava nos momentos de solidão: “Quem não devolveu o meu panetone? Será que alguém me devolveu a mais? Comprei de caixinha e me devolveu de latinha?”

Aqui se abrem dois parênteses. O primeiro é sobre a solidão. Claudete estava numa festa de família. Embora rodeada de pessoas – e diga-se que nestas festas todas acabam virando entes queridos – Claudete mergulhava com facilidade num vazio. Sozinha e desamparada, punha-se frágil aos pensamentos nada positivos. Coisas tristes e interrogativas borbulhavam na cabeça e afetavam a alma.

O segundo misturava duas sensações que são a mesma, mas antagônicas nos sentidos: o medo dela ter sido injusta com alguém e a impressão de uma pessoa do grupo presenteado ter sido injusta com ela. “Será que deixei de comprar panetone para alguém? E esta pessoa que não me retribuiu? Será que fiz algum mal a ela?”

Mais uma fatia de assados. Um dedinho de espumante não faz mal. Uvas liberadas. E panetones na mesa. Entre uma mordida e outra mais pensamentos. E antes do líquido passar pela garganta, suave, o vazio silencioso. Nem as vozes dos embriagados se ouviam embora nesses o tom e o volume fossem enfatizados. “Bêbado não fala! Bêbado grita!”

Claudete imaginou ter pensado sobre isso. Mas havia dito. E alto e com voz firme. Foi um dito desaforado, raivoso, de reprovação aos parentes e amigos embriagados que compensavam o excesso de álcool com palavras e danças ridículas. E falou em frente de um tio, bêbado, que vestiu a carapuça. Imediatamente ele largou o copo de cerveja em cima de uma cadeira, catou o panetone de lata que havia trazido para retribuir o panetone de sache que havia recebido e se foi, sem se despedir de ninguém.

E a vizinha, uma das poucas que percebeu a cena no meio daquela agitação, chegou de mansinho, com um pacote de presente na mão: “Querida, muito obrigada pelo panetone. Eu trouxe para você uma lembrancinha, mas é de coração. Acho que você vai gostar”.

Claudete abriu o pacote e se surpreendeu com a blusinha lilás que ela havia dias antes cobiçado e comentado com a vizinha. E então se pôs a pensar: “Caramba! Como fui injusta com a minha vizinha! Dei um panetone de cinco reais e ela me devolve com uma blusa de trinta!”

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Crônica - O meu porteiro soltou três bombinhas

Digamos que eles tenham razão: quanto mais fogos de artifício forem queimados na virada do ano mais coisas boas acontecerão nos 12 meses pela frente. Eu, particularmente, nem em estalo de salão coloquei dinheiro. Primeiro porque o barulho é pouco. E, depois, pelo fato dessa bombinha nem medo causar na hora de colocá-la em funcionamento.

Sei disso e muito bem. Na última festa junina acendi um traque lá de cima do sexta andar e mandei no meio da rua. Na hora passou um cara com um Fiat Uno. Com aquele ronco esganiçado, parecido com o motor de uma lambreta. Só vi a faísca do meu traque. Nem sinal do barulho.

Não fosse as testemunhas eu fecharia a janela e colocaria um ponto final. Mas aquele chato do vizinho foi sarcástico: “Jogou um palito de fósforo aceso lá embaixo?” E a mulher dele, gorda das bochechas brilhando, completou: “O vizinho devia ter comprado umas bombinhas...”

Pois é. Quando Londrina inteira resolveu queimar fogos aos primeiros minutos do 1º de janeiro, quanto barulho e que brilho! Voltei à janela do sexto andar e vi o porteiro do meu condomínio correndo para a rua. Será o que aconteceu com o sujeito? É daqueles que tem medo de bombinhas?

Que nada. O porteiro saiu para participar da festa. Acendeu uma bombinha e o estouro foi até interessante. Deu um tempo e acendeu outra: fenomenal. E depois de alguns segundos o danado acendeu e atirou para longe a terceira bomba: legal. Foram três bombinhas apenas, mas tenho certeza que ele as estourou satisfeito. Fez a parte dele, deixou de ser um personagem passivo feito eu, só olhando lá de cima. Aliás, o porteiro foi a única pessoa do condomínio de 28 famílias a saudar a passagem de ano com bombas.

Os estouros e a barulheira duraram quase meia hora. Foi quando o pessoal do condomínio luxuoso de duas ruas abaixo cumpriu a sua tradição: detonou uma bateria completa de fogos com luzes coloridas, estrondos, fumaça e muito tempo de duração.

Isso aconteceu do lado oposto da minha janela onde não vejo nada. Só escutei e percebi os reflexos dos fogos explodindo. Por isso as três bombinhas do meu porteiro foram muito mais interessantes.