quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Conto - Um amor assim, quase que platônico

"Tenho uma panela lá no último dente de cima do lado esquerdo. Mas estou providenciando uma tampa. O dentista agendou para abril e tentei antecipar para fevereiro, logo depois do carnaval. Ele disse que está com a agenda cheia. É uma clínica particular onde, a princípio, recomendaram tirar todos os dentes e fazer uma prótese. Fui pedir informação no atendimento público e disseram que não. Nada disso. Tem como consertar. Basta uma massa de durepóxi e, se preciso, um super bonder por cima. Cola e ninguém mais arranca. Sabe, incomoda muito, viu? Não é só a dor de vez em quando. E isso se rebate com dorflex. É colocar na boca e passa. Incrível! Como alivia! O que machuca mesmo é o constrangimento. Quantas vezes ensaia as frases para dizer que te amo? Com elas decoradas, cheguei bem perto de você. No ponto de ônibus, na fila do caixa do mercado, na quitanda da esquina, na saída da missa e nos encontros casuais de calçada, entre um ir e vir. Nunca tive coragem de abrir a boca. Imagina, a panela está lá no fundo, no molar. E se você enxerga? Nem uma poesia copiada ia adiantar. A bochecha inchada já forma uma deformidade na cara. Pensei certa vez em encarar de frente, mas com a mão tapando a minha boca. O que você iria pensar de um cara que conversa com a boca escondida? Com certeza iria imaginar que eu tenho mau hálito. Não, esse problema eu não tenho. Eu me cuido pelo menos nisso. Cheiro nenhum sai da minha boca. Ou, no mínimo, você pensaria que eu sou tímido e nem para conversar tenho postura. Por isso decidi abrir o jogo. Primeiro confesso que você rodeia os meus pensamentos a cada instante. Acordo com você na cabeça. Almoço imaginando você ao meu lado. Janto triste por não ter a sua companhia. E me deito fracassado, com a sensação de ter perdido mais um dia. Pois é. Tudo por causa da panela no dente de cima. E seu eu rir para você é capaz de você enxergar ela sem tampa. E quando te vejo por ai? É um destempero. Eu me perco, entro em desespero porque quero conversar e não posso. Por último porque tenho certeza que serei um bom par para você. Só não sou agora por causa da panela do molar. Cabe a ponta do mindinho dentro dela. Agora que sou confesso? Tenho alguma chance? Ou devo rasgar esta carta? Nossa, demorei tanto para escrever. Sabe? Estou desistindo. Por enquanto estes rabiscos ficam na gaveta. Quem sabe eu me livro deste incomodo o quanto antes?"

E assim praticamente terminou a história de um amor platônico. Ele colocou a carta bem no fundo da gaveta, embaixo de um monte de faturas vencidas. A três quadras ela acabara de entrar numa farmácia para comprar corega. Aliás, uma precaução para evitar que a dentadura caísse no momento adiante, quando teria encontro com um rapaz de dentição perfeita. Assim é a vida, oras! 

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