sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Resgate - Um capítulo de Maracujá doce

(resgato texto já publicado de livro que nunca foi editado)

A semana iniciada com uma chuva fina, quase garoa, aumenta a sensação de aperto no coração. Os pingos miúdos descem ininterruptos e enganam. O olhar diz que eles são insuficientes para molhar a roupa e encharcar os cabelos. Mas a alma pede uma lavagem que o banho quente ao acordar não supre. Muito além da vontade de refrescar o corpo na manhã de verão, vale a necessidade de expurgar o que causa uma dor difícil de suportar. É de um conteúdo estranho, como se dois extremos escolhessem o mesmo momento para se manifestarem. Um deles, engrossado por contradições, quer explodir. O outro, vazio, pede o silêncio.

Riuzim encosta a testa no vidro da janela da casa e observa, distante, a cena de um dia sem sol. A pressão dos pneus dos carros sobre o asfalto molhado produz um barulho melancólico. Uma mulher atravessa a rua, protegida com uma sombrinha de cores vivas, e avança com passos ligeiros para um destino que Riuzim se pergunta qual seria. Indagação vã e sem pretensão, pois surge num vácuo do sentimento que naquele momento atordoa e abobalha a figura que, na contraluz, permanece imóvel diante da claridade permitida pelo vidro transparente. O que pensaria a mulher sobre a vida? Estaria ela a procura de alguma resposta para questões em aberto acumuladas durante os trajetos que percorreu, passo a passo, sob a garoa de uma manhã de janeiro? Assim ela se vai e vence o espaço entre um ponto a outro. Não olha para trás e não deixa rastros, distanciando-se cada vez mais como se o seu ímpeto fosse o de sumir, sair da vista de quem fica e a observa.

No vão do pensamento, Riuzim apenas torce para que ela chegue aonde quer que seja. Ele usa estes estilhaços de cena para compor uma espécie de canal, longo mas percorrível desde que transposto por passadas da imaginação, por onde possa escapar do instante que o imobiliza na frente da janela. Logo será a vez dele ir, sem caminho traçado e nem rumo definido. Ainda escorado no vidro, Riuzim percebe o reflexo da estante, onde um porta-retrato velho escora-se na cerâmica de um vaso com flores de plástico. Na foto, quatro crianças tímidas encaram a parede da frente da sala com olhares de espanto. Ele e seus irmãos, anos atrás, quando ainda tinham o quintal com o pé de limão rosa, a manga coquinho, os varais sobre o gramado e o maracujá doce, posam justo para um momento de angústia que é aquele.

No passado, as fugas tinham os extremos do quintal como aliados. Ia-se da cozinha para o tronco do abacateiro sem o receio de não ter para onde voltar. À noite, as estrelas pareciam próximas e a lua, quando surgia, iluminava mais que a lâmpada incandescente da cor do tomate sobre a mesa usada para o jantar. Nem que o medo das janelas abertas ao vento com a pressão contínua das taramelas ainda alimentassem os pesadelos. Nem que as frestas do assoalho de tábuas e das paredes de mata-juntas quebradas preocupassem por causa das invasões das baratas e das aranhas. Ainda assim a velha casa de paredes sem pintura oferecia mais segurança que o edifício de concreto onde a janela que dava para a rua mostrava a chuva numa manhã de tristeza.

Por isso Riuzim teria que ir o quanto mais rápido. Somente fugir do espaço onde se encontrava e de si mesmo, sem pensar se retornaria. Depois mediria a temperatura do coração para decidir se valeria a pena buscar um ponto de partida. Então se entregaria ao exercício de localizar onde tudo começou. Caso contrário iria adiante, sempre, para onde a alma não gemesse tanto e os extremos desistissem do conflito.

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