sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Conto - Prazer e sacrifício


Liete acordou nada bem. Dói o pescoço e de lá sobe a sensação de dormência à nuca até chegar ao cérebro. Não se define um ponto, parece uma bola menor dentro de outra maior. Olhar para os lados transfere a coisa ruim como se ela estivesse balançando.

Justo hoje, dia da festa de aniversário da comadre Marília, vizinha conhecida de longe. “Ela me faz mais do que qualquer parente”, balbucia consigo mesma. "Vou fazer de conta que estou bem. Isso logo passa. Se amolecer é capaz de piorar". Pequenas mentiras às vezes são oportunas, pensava Liete, que havia assumido o compromisso de organizar uma surpresa à aniversariante.

Uma festa simples. O bolo não podia faltar. De complemento alguns salgadinhos para abrir o apetite e suco natural no lugar de refrigerantes. Somando os familiares mais próximos, amigas do grupo de oração e cinco ou seis vizinhas não passaria de trinta pessoas.

O bolo está nas mãos de Trindade. Ela já trabalhou em panificadora e entende como ninguém dessas coisas de recheio e glacê. Antonia assumiu bater as mangas no liquidificador e passar as laranjas no espremedor emprestado de Eugênia. O suco, portanto, está garantido.

E os salgados ajuntaram Zenaide, Mirtes, Dalva, Silvana, Dora e a própria Liete. Duas preparam as massas, duas se encarregam dos recheios e duas ficam na fritura e no assado. Crianças não recusam bolo, mas caem que nem um triturador nas coxinhas e nos risoles, avaliam as mulheres. Elas calculam que a quantidade terá que ser de razoável à exagerada. É melhor sobrar do que faltar.

O problema é a dor de cabeça. Um paracetamol deve aliviar, mas ainda ecoa feito um trovão a bronca do médico por causa da automedicação. Liete ficou quatro horas no pronto socorro com o soro pingando a conta gotas após a pressão saltar. E os sintomas são parecidos.

Um esforço não vai fazer mal, aposta Liete. A surpresa está agendada para às três da tarde. Agora, pouco antes das oito, ela já ajeita a mesa onde os salgados serão preparados. E começam a chegar as amigas. Cozinha quente por causa do forno ligado. Conversas atravessadas. Correria até o supermercado para comprar ingredientes. Telefone tocando. E a dor martelando.

Às vezes ela nem se percebe tamanha é a bagunça. Outras vezes lateja. Nem almoço foi servido, pois as mulheres provaram as primeiras frituras e assados. Arlene e Cecília ainda não chegaram. Pudera! Deixaram para a última hora a compra do presente de aniversário.

Faltam duas horas para a comemoração. As amigas vão para suas casas para o banho, os perfumes, os batons e os vestidos novos. Liete pede ao filho que a leve ao hospital. A dor estava insuportável.


quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Crônica - Em busca de um conceito


Esquerda, direita e centro. Digamos que são pilares que sustentam um sistema político. Embora o uso da conceituação seja precária do ponto de vista dos estudiosos do assunto, pequemos nas pequenezas das coisas e ousemos considerar que estes três pilares são suportes ideológicos de um indivíduo. Ele é da esquerda, da direita ou do centro. Não existe, portanto, a possibilidade de ser mais ou menos da direita ou relativamente da esquerda. Em qualquer um desses casos o cara é de centro.

Pode sim haver radicalismo em ambos os extremos. Assim chegamos a uma vertente que tem a ideologia como um instrumento de dominação. Até na música popular brasileira, quando se fazia música no Brasil, ocorreram conflitos que resultaram na chamada patrulha ideológica. O País vivia o regime militar e quem não usasse a sua arte para se alinhar contra o sistema político era acusado de ser favorável aos desmandos cometidos pelos governantes.

O bipartidarismo que vigorou durante e após os militares no poder também supõe algo calcado na ideologia. A situação tinha um partido, a Aliança Renovadora Nacional, com a sigla Arena. A oposição enfileirava adeptos no Movimento Democrático Brasileiro, o MDB. Era uma oposição consentida pelo sistema, mas o próprio fato de ser do contra fortalecia a ideologia dos seus membros. E não podemos negar que a situação, ideologicamente, cumpriu com seus objetivos: desqualificou o pensamento nacional e acabou com a cultura.

Além de Cazuza, quem mais falou em ideologia nos últimos tempos? Gil e Caetano, com a Tropicália, muito antes do roqueiro verbalizaram revoltosos suas queixas contra a patrulha ideológica. Geraldo Vandré, autor da tão difundida música “Pra não dizer que não falei das flores”, hoje nega que o conteúdo de sua arte fosse política. O Partido dos Trabalhadores, cujo alicerce foi o movimento sindical e estudantil do período militar e imediatamente subsequente, nasceu com uma forte estrutura ideológica-partidária e ganhou força e respeito discursando palavras de ordem da oposição. Há uma década o PT é situação.

De um jeito grosseiro podemos dizer que o único resto da ideologia desse partido esteja nos programas sociais, sejam eles insuficientes, inadequados, viciosos ou pertinentes. Diminuir a pobreza com benefícios, reduzir as desigualdades com cotas e estimular o consumo, com artimanhas como a redução do Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI) e criação de novas linhas de crédito, dão a ideia de que todo mundo ficou mais rico, pois pode comprar mais. 

Era isso o que o partido de Lula queria? Dar ao pobre condições de comprar tanto quanto a classe média? Se era, deu certo. Hoje temos famílias morando em barracos com três aparelhos de televisão LCD ou plasma. E para cada aparelho um carnê de financiamento. Isso é ideologia?

Volto a repetir que os estudiosos vão odiar esta crônica por tamanho relaxo na conceituação do termo. Mas aviso: sabemos que a ideologia, na concepção teórica, é muito mais. Mas estamos nos referindo a esta ideologia das eleições municipais de 7 de outubro de 2012. Aqui cabe o conceito relaxado, pois nos referimos ao total desprezo dos partidos políticos em relação aos estatutos e regimentos que valeram nas suas criações.

Assim, além das coligações reuniram bandidos e mocinhos na mesma fila, temos ex-esquerdistas convictos de beijo de boca em ex-direitistas radicais. E na hora da troca do beijo a cena é tão confusa que não se sabe quem já foi da esquerda e quem integrou a direita. É tudo a mesma coisa. O pessoal do centro adora isso, pois pensa ficar longe das suspeitas de mutações ideológicas.

Que nada. É como o mosquito da dengue. De tanto ser combatido precariamente, agora o Aedes egypti já reproduz em água suja. O centro, no atual plurapartidarismo, sempre foi porto seguro de quem odeia braçadas contra a correnteza. E vai-se para onde as ondas levam. Por isso o meu voto será ideológico. Tem algum candidato disponível?


quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Crônica - Um nome


Olá Deborah! Veja que suas broncas pesam no meu inconciente e mandam nos meus dedos. Deborah sem acento e com agá. Nunca mais digito Débora. Aliás, perdão. Esta foi a última vez e só fiz uso da grafia incorreta para exemplificar.

Mas Deborah. Para não dizer que não falei do tempo – quase a totalidade desta frase foi emprestada do Geraldo Vandré – aqui faz um frio de primavera. Sim, com sol, flores, encasacados e corajosos em mangas de camisa. Veio esse tempo de repente, depois de uma madrugada e um dia de chuva. Antes fazia um calor de até 40 graus.

Muito diferente de Londres, onde você respira primeiro mundo 24 horas por dia. Com ou sem casaco, chovendo ou batendo sol. Vi suas fotos tiradas não sei quando. Em todas as roupas são de quem enfrenta temperatura em declínio. Diz para mim, porque eu sou ignorante destas coisas de se faz frio lá aqui o tempo queima: por onde você anda é outono ou começo de inverno?

A diferença é, na verdade, cultural. Ai você é quem faz a moda e usa casaquinho mesmo se o clima dispensa o tal. Aqui, quando fui às ruas de tênis, jeans, camisa polo e terno até me fotografaram. Publicaram a minha foto numa revista, na parte de flagrantes de pessoas que se vestem mal. E olha que eu me inspirei num ator de novela. Claro, ele com um metro e oitenta, unhas feitas na manicure e cabelinho ajeitado é galã até de cueca.

Você ri em todas as fotos! Espero que não seja deboche de mim, jacu. Quanto ao Deborah, um velho mestre me dizia constantemente: “O nome é o primeiro, o principal e o eterno patrimônio de uma pessoa. Portanto, nunca erre”. Seus pais decidiram por Deborah. Dá uma sofistificação quando Deborah é escrita. Diferente de Débora, esta com acento que nada tem a ver com você.

Eu gosto de Deborah! Do nome e da pessoa. Tenho certeza que esta crônica vai provocar em você mais uma crise de revolta e indignação. Vai me acusar de usar o seu nome para fazer um texto de blog.
Nada disso. Se escrevo sobre o seu nome é porque você é uma pessoa importante. E lá de longe, Londres, mantém-se amiga e parceira de idéias, projetos, sonhos e essa coisa que é sempre necessária de um provocar o outro para acertar ambos os rumos e crescer. Sempre!


segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Crônica - Ah, o povo...


Então povinho? Tudo pronto para o 7 de outubro? Aliás, é só no período eleitoral que o povo merece conceito lastreado no direito constitucional e ainda assim de forma parcial, muito precária. No caso do Brasil, onde a democracia que temos é representativa, o povo elege daqui a duas semanas os seus representantes no executivo e no legislativo municipal.

Assim sendo, poderíamos dizer que só é povo quem vota? O resto é povinho ou pouca sombra? Temos que ser justos: a Constituição de 1988 diz que você, que com seus 12 anos acabou de ingressar no mundo dos adolescentes, não vota, mas é povo igual o seu colega de 16 que já tem título de eleitor. Portanto, desarme a carranca e se ajeite, você também paga impostos a cada ato de consumo que realiza.

Ouvi outro dia o vizinho comentando na frente do bar da rua que faz transversal: “O povo lá de casa ainda não sabe em quem votar”. Então o interlocutor emendou, no bate pronto: “Pois é, o povo lá da minha empresa também está em dúvida”. E veio um terceiro, que sem pedir licença entrou no meio da conversa: “Nem me falem. O povo da minha comunidade não quer nem falar de política”.

Povo! Lá atrás na história da humanidade, gregos e romanos consideravam povo só quem era capaz de decidir para e pelo estado, que é a instituição que aqui chamamos de sistema. Também no antigamente a Bíblia era seletista, pois considerava somente os judeus povo de Deus.

Tão discriminatória quanto, mas pelo menos clara e de dedo em riste, a turma da Idade Média dava o recado sem constrangimento: o povo era a plebe, formada por cidadãos sem direito e considerados psicologicamente incapazes de entrar de bicão nos assuntos do sistema.

Mais recentemente veio ao Brasil um cidadão alemão chamado Friedrich Muller, com título de jurista e filósofo. Lançou aqui o livro “Quem é o povo”, cuja linha de pensamento é a de que a democracia só existe onde tem povo.

Este autor fala do povo ativo. Ou seja, ele não só participa do processo eleitoral para a escolha de seus representantes. Estes representantes administram ou legislam, assim como executam ou fiscalizam. Isso depende do cargo para o qual foi eleito: executivo ou legislativo. O povo ativo, portanto, como elemento de combate do sistema existe para impedir que legisladores e administradores passem por cima da democracia.

A teoria é pé no chão da forma como descrevemos. O tema é muito mais complexo do que isso. Mas se não conseguirmos nos mobilizar pelo menos com essa entrada rústica e possível, o que pediremos na seqüência? Quando a gente não consegue exercer a democracia, devoramos a entrada e vamos direto para a sobremesa mesmo pagando pela parte principal do prato.

Por isso tantos candidatos nos chamam de povo. Eles apostam que somos passivos. Então depende de nós. Começando com a certeza de que o voto é um pequeno ato de entrada da democracia. O prato principal vem depois e só será saboroso se nós fizermos dele algo interessantemente apetitoso. 


sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Crônica - O cravo e a rosa


É fato! O cravo brigou com a rosa e foi um conflito pesado. Tanto é que o cravo saiu ferido e a rosa despedaçada. Na cantiga popular a briga foi sob uma sacada. Isso basta. Não importa se a sacada é de uma moradia familiar, um prédio público ou uma empresa privada.

Sacadas são direitos de todos. Só não tem uma quem marcou bobeira e deixou passar a oportunidade de ganhar a sua do presidente da República, do governador ou do prefeito. Quem manda não ter influência com um vereador, um deputado estadual, um deputado federal ou um senador? E custava muito manter relação com um ministro? Ou secretário estadual e até municipal? Quem conhece o poder de bicão desses caras?

A maioria vive disso.Tráfico de influência é para quem gosta de levar vantagem. Mas a vida começa em um ponto e termina lá adiante, em outro. O fio que une ambos nunca segue em linha reta. Faz curvas, dobra, dá nó e arrebenta. Uma coisa, porém, é certa: mesmo nos intervalos das imperfeições esta linha é encerada com valores como a ética, a moral, o caráter, a personalidade, a educação e enfim, a sabedoria.

Por isso comecei este texto com flores brigando. A cantiga popular é excessivamente pura para os dias de hoje. Vejam que depois da briga o cravo ficou doente e a rosa foi visitar. E deu que o cravo teve um desmaio e a rosa pôs-se a chorar. Singelo!

Se querem mais, a última quadra leva a um final feliz. Merece até aspas: “A rosa fez serenata / O cravo foi espiar / E as flores fizeram festa / Porque eles vão casar”. Dá para acreditar? A musiquinha é antiga e melodiou as brincadeiras de roda de muitos marmanjos de agora. Inclusive homens que hoje barbados negam ter brincado com meninas. Negam, mas não põem a mão no fogo.

Sei de alguns que costuraram vestidinhos de bonecas e falam de boca cheia que quando se enturmaram com o sexo oposto foi para a maliciosa brincadeira de casinha. Se engana aquele que gosta de ser enganado.

Então falei de flores porque a conversa é espinhenta. O cravo, na verdade, só no figurativo e poético brigou com a rosa. São duas espécies que não se disputam. Podem conviver num mesmo canteiro. Após colhidas, as flores usam da mesma água num vaso qualquer. Uma não rouba o perfume da outra. Na verdade, a única diferença atribuída a elas foi imposta pelo homem por causa da gramática: o cravo é masculino, a rosa é feminina.

Quanto à parte da cantiga que supõe a reconciliação, eis uma inventice criada também pelo homem. E o mais completo exemplo é o do homem político partidário. Não estamos falando do homem político cidadão. O partidário, infelizmente, é um ser desprovido de ideologia. Briga hoje com o adversário e amanhã dá-lhe um beijo na boca. O inimigo de ontem é o grande amigo de hoje.

Este faz troca-troca e tem esta prática como algo de berço. Diferente, muito diferente do cravo e da rosa da cantiga de roda. As flores se casam sempre, cada uma no desempenho de sua função na natureza. A gente, homem, é que dá uma versão de paixão e ciúme uma para com a outra.

Flores, enfim, fazem o percurso do fio da natureza, do ponto A ao B, mesmo que no caminho alguém resolva por maldade pisotear os galhos que as sustentam.

  

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Crônica - Bem-vinda!


Noites iguais! Eis o fenômeno que eu não percebo mas sei que está para acontecer. O equinócio é justamente isso: dia e noite com a mesma duração. Ele me traz a primavera austral no sábado, 22 de setembro. Data e presença marcantes. Sábado é o dia do fôlego, vinte e dois são dois patinhos e a primavera é muito mais do que flores.

Não a receberei com festa. Procedimentos esfuziantes soam falsos tanto quanto as solenidades e os cerimoniais. A vinda da estação das cores e do perfume da natureza merece atitudes que independem de discursos e pronunciamentos decorados. É, além da fala franca, a oportunidade de exercer a alegria de um jeito consciente, maduro, honesto e ético.

Vou apenas abrir o peito para as verdades que são minhas e aquelas que não me pertencem, mas preciso delas para viver. A primavera, este ano, me dá a oportunidade de praticar uma parte da democracia, o voto.
Mas londrinense, acabo de tomar conhecimento que o prefeito da minha cidade foi preso e renunciou. Isso acontece semanas após o outro prefeito ser cassado. As chuvas que caíram ontem, uma quarta-feira que amanheceu quente, mas com vento de praia, sei que lavou a poeira do asfalto. Os campos, porém, exigem mais água para que a couve cresça, os porquinhos engordem, os bois ganhem substância e os pecuaristas e demais produtores enriqueçam cada vez mais.

Tudo é culpa da política. Aliás, da politicagem besta que distorce o conceito de política. Já imaginei um vereadorzinho qualquer mandando ofício à mãe natureza para que ela seja maneira. Se torno essa fantasia público, receio que algum político leve a sério e faça isso mesmo. Ou melhor, o ofício será enviado a São pedro.

O texto é assim por causa da primavera. Uma mistura que parece dificultar um desfecho. Boi, porcos, couve, flores, democracia, cassação de prefeito, prisão de bandido e renúncia não deveriam ter vínculo a uma estação do ano tão promissora e poética.

Quantas músicas chegaram ao sucesso explorando a beleza? Pois a primavera é, além de tudo, inspiração e esperança. Aqui é que entra a ligação: esperança. Assim eu espero. Espero que a tecla verde que eu apertar nesta primavera seja justa e consciente, mesmo que o meu voto seja anulado. Espero poder exercer a minha cidadania apontando o meu indicador na cara de quem não merece representar o povo da minha cidade. Espero falar mais, usar mais dos meus direitos, recusar redução do IPI e exigir a correta mais valia para a força do meu trabalho. Espero ir. Quero deixar de ficar parado. Aguardem e verão. Porque não sou cotista e nem beneficiário. Sou cidadão.



quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Crônica - Mamãe...


Uma Caloi Barra Forte branca e azul, pneu balão, aro 26! É a grande dúvida da minha adolescência em relação ao seu sentimento. Foi um presente seu de Natal. Chegou em casa semanas antes, já no período de férias escolares. Novinha, sem riscos na pintura. Brilhava e causava inveja na vizinhança. Uma buzina de pilha anunciava a minha chegada. Qualquer poça d’água em que eu passava exigia uma lavagem completa. Eu perdia horas tirando a sujeira com água e pano.

Minha bicicleta nova era mais do que uma condução. Era o seu presente de Natal. Imagino hoje quanto você lutou para comprá-la. Vestidos, saias, blusas e calças foram cortados, costurados, provados e finalizados dias e noites seguidas para ajuntar o dinheiro necessário para o meu presente. Quantas linhas passaram pelas agulhas que fizeram os arremates das confecções? Faço idéia que foram muitas. Assim como foram tantos os momentos de alegria estampados em seu rosto por perceber que o seu presente me deu a bicicleta que eu queria e a felicidade por tê-la merecido.

Usei a bicicleta que eu ganhei de você por três anos. Variei com ela: quando a moda era deixá-la sem os paralamas e a bagageira assim o fiz, cuidando-me para avisá-la que as peças seriam guardadas e depois repostas. Fui à escola, fiz compras, realizei passeios e brinquei com os colegas jogos de habilidade como condutor: andar sem segurar o guidão, empinar a dianteira, fazer cavalo de pau, apostar corrida e vencer trechos de lama sem cair.

Um dia troquei a Caloi que foi presente teu por uma monareta de segunda mão. Não pedi o teu consentimento. Na verdade fechei o negócio sem me dar conta que havia desfeito de algo que valia para mim e para você mais do que um bem material feito de ferro, plástico e borracha. A Caloi que eu ganhei de você continha uma das provas materiais do amor de mãe para filho.

Dentre tantas outras materializações desse sentimento, a Caloi era a que mais tinha te custado. E não por isso, mas por ter me contentado de um jeito pleno, a minha bicicleta valia muitos sacrifícios no seu ofício de costureira e na sua missão de mãe, dona-de-casa, mulher e pessoa que não mede esforços para dar mais do que é possível aos filhos.

Faz tanto tempo e você se foi. Comigo fica esta dúvida: o que você deve ter sentido quando me desfiz da bicicleta que você me deu?


terça-feira, 18 de setembro de 2012

Artigo - O herói chafurda

            Nossos heróis derretem na lama porque são de barro. Um dos últimos deles foi empurrado nesta segunda-feira, 17 de setembro de 2012, para a beira do mangue. O relatório lido pelo ministro Joaquim Barbosa no julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal foi mais do que uma sentença de condenação: o governo Lula comprou apoio parlamentar do PP, PMDB, PTB e PR (antes PL) para aprovar projetos de seu interesse.

            Lula, o herói de milhões de brasileiros e o “deus” da ministra da Cultura, Marta Suplicy, não é réu nesse julgamento. Mas embora esteja excluído desse processo por entendimento do ministério público no passado, passa a ser refém de uma circunstância em que a ética e a moral são frágeis. Seu ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, é acusado de ser o chefe de uma quadrilha que desviou só no pagamento dos parlamentares cerca de R$ 55 milhões dos cofres públicos federais.

            Nosso herói se defendeu no passado. Disse te sido traído, pois não sabia de nada. O empresário Marcos Valério, mineiro que já no seu estado de origem se envolveu em denúncia de acerto para subtrair e ajudar político a roubar, funcionaria também no mensalão como o meio de acesso dos agentes públicos ao dinheiro indevido.

Dono de uma agência de publicidade, Valério cobrou por campanhas institucionais do governo federal que nunca foram produzidas, exibidas e impressas, porque a finalidade nem essa era. O valor foi para o pagamento de propinas. Nesta terça, 18 de setembro, são repercutidos teor de reportagem em revista de circulação nacional com suposta gravação de Valério afirmando que Lula era quem mandava no esquema da compra de apoio dos parlamentares. Enfim, quem era o rei e quem era o bobo da corte do esquema de corrupção?

            No desenrolar dos acontecimentos cogita-se a representação contra o ex-presidente. Pena que a iniciativa demonstrada até agora seja de partidos da oposição. Estes, também combalidos no mar de uma ou outra denúncia, só sabem protagonizar brigas políticas que não levam a nada. A sociedade organizada é que deve atentar para esta possibilidade aberta pelo relator Joaquim Barbosa, do STF, para representar contra o ídolo de barro. Mesmo que ele seja “deus” para uma ministra e milhões de brasileiros.

            Cá em Londrina, infelizmente, um problema deve ser considerado: longe das salas condicionadas do Supremo a repercussão do mensalão pouca diferença faz na hora do eleitor escolher entre os seus candidatos o próximo prefeito da cidade. Se houvesse uma análise por coligação e por partidos que disputam as eleições municipais de 7 de outubro, das seis que estão concorrendo três mereceriam o repúdio por terem ligação com mais este grande escândalo nacional.


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Conto - Mudanças


Chuva pouca de nada vale. Sobe mormaço da terra quente, molhada com pingos que nem poeira deita. Dá gastura, feito um arfar de peito forçado. E o suor empapa a roupa que de tão encharcada gruda no corpo.

Maria precisa de muita água para matar a sede das plantas. Elas preparam as flores de setembro. Dão botões que o sol castiga. Avisam que nem todas abrirão se a estiagem teimar. E as cores deixarão de ser soberanas no jardim.

São tantas as espécies naquele cantinho do quintal.Tulipas, violetas, petúnias, lírios, crisântemo e boca-de-leão, no mínimo, poderiam bater no domínio verde das folhas. Há tempos não se vê uma borboleta por ali. Só os pássaros descem de manhã e à tarde.

O jardim de Maria já deu ramalhetes encorpados tantas eram as variedades. Pétalas secaram nos livros e nos cadernos. Cantoneiras ganharam vasos cobiçados que chamaram abelhas, visitas bem-vindas na varanda protegida pela sombra do abacateiro que de muito carregar já quebrou telhas anos seguidos. Os bebedouros pendurados aos galhos saciaram muitos beija-flores.

Outras épocas. O sol nem tão quente era mesmo se a chuva demorasse. Agora ele cozinha a pele e quanto mais claro é o chão de cimento mais faz espalhar o calor. Ainda que Maria se pôs valente e defendeu seus pedacinhos de terra no terreno hoje coberto de concreto. O do canteiro, lá nos fundos, e o das flores, no lado oposto ao portão de entrada e saída dos carros.

Os meninos corriam de calções de elástico, pés no chão, sobre terra e grama. Manoel era dono de uma bicicleta, condução ideal para o trabalho e as compras. O maracujá doce, tão raro nas feiras hoje em dia, colhia-se na beira da varanda. E o limão rosa apanhado do pé fazia o suco do almoço.

Hoje são três carros. Com eles o chão nativo ganhou cimento. O portão é eletrônico e a cerca de madeira foi trocada por tijolos rebocados. A casa de tábuas ganhou novos cômodos em alvenaria. Nem um vento sopra lá fora. Maria pensa que o seu quintal, adaptado para os dias de hoje, rouba o bem-estar que havia outrora. E ela transpira enquanto rega com a mangueira a roseira que nega flor.


sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Prosa - Sobre alguma coisa e pouco mais


Demência temporária assumida essa de ir ao banco e conversar com o caixa eletrônico. Talvez atrás do monitor e das teclas exista alguém bem intencionado. Maldosos há, isso é certo. A dúvida é se naquele exato momento em que você chega um deles está à espreita, após preparar justo o terminal que você escolhe com um dispositivo para puxar dados de sua conta.

A tecnologia é impessoal, indiferente, insensível, calculista e de poucas palavras. O saldo é de onze e noventa e cinco e você precisa inclusive dos centavos para pagar uma conta. O caixa eletrônico avisa sem compaixão que ele só pode te dar valor não fracionado.

Impotente diante da prepotente mensagem você saca dez e bota as mãos nos bolsos para completar o que falta com moedas. Se tiver sorte líquida a dívida. Caso contrário volta para casa revirar xícaras e latas para achar níqueis. Livros e cadernos são folheados para ver se, por descuido, uma cédula de dois reais não foi esquecida como marcador de página.

Serviço indisponível no momento. É que os terminais estão sem comunicação com a central. Central? Quem é esta fulana? Por que ela se põe incomunicável na hora que tanta gente precisa dela? Imagino-a como uma presidenta Dilma: intocável, soberba e sem tempo a perder com pessoas que trabalham, recebem o salário e no dia do vencimento correm de manhã a um terminal para pagar a prestação do financiamento da casa própria.

Isso logicamente é injusto. Que culpa tem a Dilma se a tecnologia falha? Ela provavelmente nem vá a um caixa eletrônico quando precisa sacar ou pagar alguma fatura. E que culpa tem a presidenta se os responsáveis pelo bom funcionamento da tecnologia relaxam?

Viram como aqui entramos numa abordagem normalmente desprezada? Pois é, a tecnologia também é carente. Como um bebê que precisa de leite na hora certa e após satisfeito arrota, a tecnologia exige manutenção. Quanto maior é o uso, menor deve ser a periodicidade da babá nos cuidados com a fria estrutura de metal, plástico e vidro.

A diferença imediata é que o bebê reclama quando faltam os cuidados da babá. A máquina apenas pára de funcionar. A diferença sentimental é mais ampla: o bebê a gente ama mesmo ele chorando por leite; a máquina a gente dá um soco e xinga. Outra diferença, a conceitual, é que o bebê é uma vida, enquanto a máquina só funciona se a gente dá vida a ela. Então por que somos dependentes dela?

Porque a tecnologia é feita e aperfeiçoada para tornar as relações humanas cada vez mais impessoais. A gente que não tem a obrigação de manter a tecnologia em estado de funcionamento e precisa dela é refém dos que deveriam deixá-la em dia sempre, nos saldos negativos e positivos.

Por isso eu mudei de postura. Pelo menos no dia de conferir o depósito do meu salário na conta eu sorrio para a máquina da minha agência bancária. E ela me devolve, cuspindo cédulas, como se me dissesse: “Aproveita que é só hoje. Pelo que sei das suas contas amanhã o teu saldo estará quase no zero”.


quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Conto - Vaidade


Seduzida por um par de brincos que nem jóia é. Cá estou. O mostruário assanha. O preço é indigesto. Há como prová-los. Sem danificar a etiqueta na qual as peças estão presas, coloca-se sobre as orelhas diante de um espelho. Sou eu, de perfil, conferindo se estou bela, se fico melhor com eles, se tanto faz.

Descuido! Poderia ter retocado melhor os olhos, eles parecem cansados. As cores suavemente espalhadas em cima e abaixo dariam mais vida. Óculos de sol escondem imperfeições lá fora. Aqui sou eu, olheiras à mostra. E nem me lembro se dormi bem ou mal.

Ah, os brincos! Quero provar aqueles. Ou adio para quando der o investimento em parte de mim que posso tapar com os cabelos? Assim posso comprar calçados, se bem que aquela blusinha da loja em frente é irresistível.

Mas provo as peças. São delicadas e iludem. Quem vai saber se é jóia ou semi? Ele nem vai notar se uso brincos novos ou velhos, embora brinque com os lábios nas minhas orelhas.

Eu, de perfil me olhando no espelho, sou um problema. A semijóia fica bem. O que devo acertar é a pele. Um cravinho aqui e outro ali parece não fazer diferença. Mas incomoda. Faz tempo não compro um creme hidratante. Que relaxo!

Não fosse por isso eu estaria linda. Lábios, eis o meu forte. Já ouvi de mulheres elogios matreiros que só saem de bocas invejosas. Nos homens percebo desejos. Faz parte, a beleza é para ser cobiçada.

É um bom espelho o desta loja. Impressão minha ou a vendedora está impaciente? Certo, entrei aqui para ver brincos. Poderia levar aqueles, até me agradam no momento. Depois de um tempo ficarão sobre a cabeceira, tarrachas perdidas, inúteis e indesejáveis em vista de outros adquiridos em seguida.

Vou desistir da compra. Antes de comunicar a minha decisão à balconista disfarço, brincos sobrepostos às orelhas, espelho e charme. Confiro o nariz e percebo um leve traço de buço. Vou investir em meu rosto, gasto o que tenho no salão de beleza. 


quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Crônica - Já tenho plataforma eleitoral...

Cada vez mais forte a possibilidade de eu virar político para ter uma aposentadoria rentosa, sem fator previdenciário e sem a necessidade de brigar com Dilma, Lula, FHC e outros menos expressivos futuros aliados.

Acabei de ser eleito vice-síndico do condomínio. Foi fruto de muita negociação. Coliguei com o meu maior inimigo – aquele do apartamento debaixo que dorme com a televisão ligada no maior volume – só para neutralizá-lo. Prometi uma vaga na portaria para o sobrinho do amigo dele.

E o síndico que se cuide. Já armei com sessenta por cento dos conselheiros fiscais e deliberativos. Daqui a três meses vamos providenciar umas notas superfaturadas de compra de minuterias para o prédio e vamos responsabilizá-lo por isso. Também vamos desligar a bomba da caixa d’água todas as quintas e sextas, de forma que os moradores fiquem no seco justo nos dias de limpeza. A culpa será atribuída ao síndico.

Paralelamente preparo as propostas da campanha para vereador. O primeiro ponto: vou propor mudar Londrina para Guaratuba. Assim teremos praia e ficaremos mais perto de Curitiba, que é capital, e deixaremos de ser chamados de povo do interior pelo pessoal de jornalismo da RPC TV.

Ah, sim! Vou acabar com as diferenças entre as diversas regiões da cidade. Antes era a linha de trem. Quem morava abaixo era pobre. Agora persiste essa discriminação contra as zonas leste e norte. Vai ser assim: mando confeccionar placas indicando as regiões da cidade. A cada duas semanas essas placas mudam de região. A da zona sul vai para o norte e a da zona leste para a oeste. Um rodígio bem feito vai acabar com esse preconceito.

E quanto ao trânsito, nada de carros sem IPI reduzido circulando pelas ruas. Como serei correligionária da Dilma e amigo do Mantega, além de confidente do governador do Estado na espinhosa duplicação da PR-445, só anda de carro em Londrina e na região quem comprou o seu na promoção e financiado pela Caixa em dias que o sistema do banco não estava fora de ar. Sortudos, esses caras! Essa medida vai reduzir o número de veículos e de barbeiros no trânsito. E me desculpem os antigos cortadores de cabelos. A partir da minha gestão todos terão carteirinhas de cabeleireiros.

Tem mais: cada família moradora de barraco vai ter três geladeiras, quatro fogões e cinco aparelhos de TV plasma em casa. Tudo financiado. Desemprego vai ser palavra fora do dicionário. Todo informal que estiver vendendo CD pirata vai receber uma declaração de Micro Empreendedor Individual assinada pelo secretário da Fazenda do nosso Estado.

Estas propostas são para quando eu for vereador. Imagine o que vou fazer quando estiver no Congresso Nacional? Se bem que já tenho uma: aquelas conchas sobre o Congresso, uma de boca para cima e outra para baixo, vou transformá-las em fontes luminosas. Tentem enxergar: água subindo num fio de jato forte da concha com a boca para cima e descendo colorida sobre a concha com a boca para baixo. É chuva luminosa sobre a Brasília que JK jamais imaginou que se transformaria nisso que é hoje.

E para coordenar as maldades nos bastidores? Quem? Já sei. Vou contratar como assessor um autor de novelas da Globo. Vai sair caro. Mas o povo paga, né?


terça-feira, 11 de setembro de 2012

Crônica - Se tudo der certo serei candidato

O fator previdenciário comeu o iogurte semanal da netinha da aposentada. Ela, a beneficiária, trabalhou trinta anos com carteira registrada. Antes disso se ocupou como doméstica na casa daquela família onde o homem se aproveitava da ausência dos outros para tentar apalpar a então adolescente empregada. E a menina, naquela época, nem malícia tinha. Só sabia que aquilo era feio e tinha que evitar. Assim procedia, fugindo para o quintal varrer folhas secas do abacateiro.

Também trabalhou sem registro na quitanda da rua de baixo. Faxinando, organizando, carregando e embrulhando sempre sob o olhar de desconfiança do proprietário. Foram cinco anos perdidos. Nem contaram para a aposentadoria e tampouco acrescentaram conhecimento, experiência, cultura e progresso financeiro ou profissional.

Beneficiária! O que a aposentada recebe é um cisco. Ela própria ironiza-se e diz que é um cala a boca do governo para os trabalhadores inativos. Aliás, quem disso isso? Inativo é aquele que está debaixo da terra. A aposentada agora é diarista. Saí de casa de manhãzinha e só retorna quase no fim da tarde. Nesse tempo lava, esfrega, seca, passa, cozinha e ouve desaforos de patroas soberbas.

O Lula, por exemplo, recebe aposentadoria milionária e continua ativo. Ele faz campanha política para os seus aliados, diz bobagens, comete gafes e ativa-se até durante as madrugadas, sonhando em voltar a ser presidente.

Lula vetou a primeira tentativa de acabar com o fator previdenciário. Aproveitou um dia de jogo da seleção brasileira de pernas de pau e caneteou não à proposta de tornar a aposentadoria mais justa para o trabalhador da iniciativa privada.

Dilma também disse não à mesma proposta, modificada em alguns pontos. Ela, que diz ter criado no Brasil “um modelo de desenvolvimento inédito, baseado no crescimento com estabilidade, no equilíbrio fiscal e no distribuição de renda”, também prefere o fator previdenciário comendo o aposentado brasileiro pelos bolsos.

Fernandinho, o Henrique que também é Cardoso, aquele mesmo que se mira no espelho e fala bobagens consigo mesmo, também tem culpa no cartório. Este cara tentou de todo jeito acabar com alguns dos direitos trabalhistas básicos e seus retardados seguidores continuam com a tentativa no Congresso Nacional. Micro Empreendedor Individual, que bela sacanagem para tapear os desempregados...

Eu, que estou perto da aposentadoria, tenho matutado. Devo seguir conselho da minha consorte: “Vira político”, disse-me ela. “Começa com vereador, passa a deputado, vira governador e sobe. Com mais dez anos de investimento você tem um monte de aposentadorias sem fator previdenciário e sem risco de Lula, Dilma, FHC ou qualquer outro vetar.

Dizia o Gerson, futebolista aposentado: “Tem que levar vantagem em tudo...”


segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Conto - Os tocadores de sanfona


Dia de sol! Foi o primeiro pensamento de Sandra naquela segunda-feira, antes mesmo da escuridão da madrugada de fim de outono se por lá onde começa o infinito, depois do concâvo que o céu faz. Era o que se via lá fora pela fresta que a cortina de pano abre.

Besteira! Com sol ou chuva ela teria que trabalhar. O rádio-relógio a despertou com o noticiário nacional: “Dilma diz que o Brasil criou um modelo de desenvolvimento inédito, baseado no crescimento com estabilidade, no equilíbrio fiscal e na distribuição de renda. Sandra exercitou extravagância na assimilação: “Como? O que aquela mulher está dizendo é deste Brasil onde eu vivo?”.

E nem se deu conta, por puro descaso, do resto. A notícia repercutia o pronunciamento da presidente na véspera do Dia da Independência, 6 de setembro, semanas após a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores comemorar as vendas de novos em agosto graças à prorrogação do Imposto sobre Produtos Industrializados reduzido para o setor: 420.101 unidades vendidas num país onde a inadimplência aumenta, as vias urbanas e as rodovias são precárias, as pessoas devem às financeiras e os preços dos produtos básicos nos supermercados saltam de uma semana a outra.

Sandra já acertou o aluguel e ficou sem nada para as compras básicas do supermercado. No fim de semana recorreu à mercearia próxima, onde se pendura a conta e paga-se mais pelo que se adquire. E tem a luz quase vencendo. A água é para daqui a duas semanas. O telefone celular fica sem crédito por enquanto e só toca graças aos bônus. “Normal! Isso é normal e nunca foi diferente”, comenta consigo mesma.

Ex-atendente de uma creche, Sandra buscou a informalidade quando o estabelecimento filantrópico reduziu a carga horária e o salário dos empregados. Claro, buscou alternativas mais seguras, mas nunca passou das possibilidades de vagas. Por isso ria-se quando lia reportagens otimistas nos jornais sobre a queda do desemprego. “De onde é que esses jornais tiram isso?”

Foi o tempo de retornar ao quarto para se trocar quando o locutor deu um desfecho à matéria citando recente pesquisa sobre a popularidade da presidente, lá em cima. “Eu, que não tenho nenhuma espécie de bolsa e não entro nos grupos de cotistas fico fora disso...”

Sandra cursou até o segundo ano do curso de Ciências Sociais em universidade pública. Talvez por isso tenha um fio de sangue crítico correndo nas veias. Ela, quando acusada de ser radical, justifica que a vida a moldou daquele jeito. Questionadora, Sandra deve ter perdido muitos empregos com carteira assinada após ter o currículo selecionado. Nas entrevistas a moça é colocada para fora do processo de seleção.

Por isso Sandra decidiu trabalhar por conta. Ela é animadora de loja. Se o comércio é destinado para crianças, veste-se de Branca de Neve, Mickey Mouse, Minie, urso panda, gorila ou outra espécie que chame a atenção. Quando a loja vende eletrônicos, Sandra coloca-se dentro de uma caixa que imita um aparelho de telefone celular. Assim por diante.

Certa vez um lojista requisitou a Marylin Monroe. E lá foi Sandra, com a cara morena pintada de branco, batom torturantemente vermelho, peruca loira e sapatos altos recepcionar consumidores na entrada do comércio de confecções. Ela costuma pedir oitenta reais pela diária, mas fecha até por cinqüenta quando o movimento está fraco.

É pouca originalidade, admite Sandra. Nem todas as crianças de agora dão importância à Branca de Neve, ursos, ratos e outros animais ou aves. E quando fantasiada de telefone celular resta o consolo de ninguém ficar sabendo quem está dentro daquilo.

Bem que ela gostaria de fazer a estátua de uma concorrente próxima e muito forte: a santa com o menino Jesus no colo. “Esta sim acertou na loteria. Mexe com as pessoas, principalmente as que enfrentam dificuldades”, imagina Sandra, metida numa roupa de camareira graças ao serviço prestado a um hotel.

A concorrente de Sandra, bons metros adiante, veste-se de branco da cabeça aos pés. Um véu cobre a cabeça e sobre ele uma coroa dourada. A tinta clara esconde a cor da pele do rosto e do pescoço. A urna onde as pessoas depositam as moedas também é branca. Só tem cor o tapete vermelho diante da estátua viva, que mantém um boneco em seus braços.

Ela permanece imóvel até que alguém se aproxime e deposite aos seus pés algumas contribuições. É quando a santa agradece, abaixando a cabeça e acionando o boneco que tem nos braços. Com os dedos da mão esquerda a estátua faz o boneco gesticular. E daquele movimento aparece o pedacinho de papel que é entregue à pessoa bondosa que fez a doação. O texto é uma mensagem de fé. “De onde ela tirou essa idéia genial? Ela cercada de admiradores e o cofre enchendo. E eu aqui de camareira, com vestidinho curto mostrando tudo”, pragueja Sandra.

Houvesse, por outro lado, tantas moedas nos bolsos das pessoas que passam! Se assim fosse haveria renda para todos e Sandra viraria também uma estátua. Sobraria até para o tocador de sanfona, na outra praça. Ele chama a atenção de alguns com as antigas canções que lembram outros tempos.

A camisa xadrez e as calças de brim indicam: ele foi um trabalhador do campo ou um pequeno proprietário rural. O que teria feito aquele homem tocar sanfona numa praça pública de uma grande cidade? Comentam por ali: ele não é um grande músico e também passa longe de ser um habilidoso instrumentista. Sabe tocar sanfona. Nada mais. E o repertório feito de teclas decoradas traz nostalgia, lembra a boa fase da colheita, quando as famílias comemoravam com vinho de garrafão após os almoços dos domingos.

Dizem dele que perdeu terras e de mudança para o meio urbano, para que os filhos pudessem trabalhar, tirou da mala a velha sanfona herdada do pai, que havia herdado de seu pai. Da cozinha miúda da casa popular resgatou uma banqueta de madeira. Na rua catou uma caixa de sapatos. E passou a frequentar a praça de segunda a sábado, onde toca o que sabe em troca de moedas que nunca ocupam todo o fundo da caixa de calçados onde as ofertas são depositadas.

Há quem diga que o tocador de sanfona encerra o expediente com mais renda do que o rapaz que na praça seguinte tenta impressionar as pessoas que passam como estátua viva sem tema definido. A pele de cor negra é pintada de alumínio. Ele espera por almas caridosas que a cada dia rareiam. Se o sol é forte o suor desce e danifica a pintura. Se a chuva é intensa compromete o dia. Mas quando cai uma garoa fina a estátua viva mantém-se imóvel, esperando o fim do dia para contar quanto depositaram em sua caixinha. Às vezes dá um pão. Outras vezes vertem lágrimas.

História parecida com a daquele que fez dos sinais de trânsito o seu local de trabalho. Os malabares sobem e descem girando. Coloridos, nem sempre voltam para as mãos do artista. Vez ou outra escapam. Escorrem por baixo dos carros e exigem improvisos para serem recuperados.

O espetáculo é único e tem tempo certo. Há de sobrar tempo para passar pelas janelas dos veículos e receber uma moeda pela arte apresentada. E elas se fecham. Atrás do insufilme escuro está um motorista que na esquina anterior já viu outros malabares subindo e descendo aos giros.

Tocadores de sanfona! Sandra, a que anima consumidores, já viu criança pular de alegria diante dela. A santa com o menino Jesus nos braços já fez gente grande chorar ao ler a mensagem que o boneco que traz em seu colo entregou. O tocador de sanfona não chora. Sua expressão, no entanto, é de tristeza. O que faz daquele homem um indivíduo tão quieto? A estátua viva de cor alumínio confessa que já trabalhou chorando. Mas não permitiu que as lágrimas descessem e estragassem a pintura. O artista dos malabares sabe que nem sempre o seu pagamento é a moeda. Certa vez quase atingiu um veículo com o seu instrumento de trabalho e foi retribuído com ofensas.

Trabalhadores informais, quando levados às praças e às esquinas para terem renda, na maioria das vezes nunca foram maestros e regeram orquestras. Jamais levantaram platéias. É certo que alguns deles carregaram parte da economia do país nas costas por um bom período de tempo, quando empregados formais. Ajudaram a bancar a previdência social e tiveram, quando seus ganhos ultrapassaram limites, seus impostos de renda retidos. Pagaram antes para acertar as contas com o Fisco depois.

Tocadores de sanfona! Há comedidos, há os mais atirados. Na mesma praça onde a santa comove e é comovida um vendedor ambulante oferece a solução milagrosa para todos os males: dor de cabeça, resfriado, insônia, agonia, tristeza, inchaço dos pés, quebranto, desinteria, prisão de ventre, febre amarela, dengue, pontada no coração e doença venérea. Um frasquinho por oito reais. Dois por quinze. E vende a promessa de saúde física e mental muito mais do que o vendedor de apitos que soltam bolhas de sabão.

Na loja em frente os aparelhos de televisão sintonizam o jornal da tarde. A reportagem é sobre a longa espera por atendimento numa unidade de saúde. Em seguida, após o bloco comercial, mais um escândalo na política. Pessoas passeiam alheias aos acontecimentos que são noticiados. A vida é uma corrida violenta pela sobrevivência, pela garantia do emprego, pelo salário de cada mês.

Às seis da tarde Sandra despe-se da fantasia que o seu ofício exige e retorna ao jeans e a camiseta de sempre. A velha mochila engorda quando a fantasia é colocada nela. Um pequeno compartimento recebe algumas moedas e poucas cédulas. É a renda do dia. Dá para o ônibus de volta para casa e sobram troquinhos para acertar as contas com a vida.

O IPCA está em quanto? E o que é mesmo o IPCA? O economista do escritório em frente disse certa vez, no intervalo do café, que é o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo. É com ele que se mede a inflação. Os jornais anunciam situação controlada. Não é o que se vê nos supermercados.

Lá adianta Sandra percebe, cada um no seu rumo, o retorno para casa de seus colegas de trabalho. A santa, sem o véu e o vestido branco e livre da maquiagem tem um bonito rosto. O tocador de sanfona caminha arcado, parece que o dia foi fraco. O rapaz que faz a estátua de cor alumínio já se foi. O artista dos malabares deixou a esquina muito antes do rush do fim do dia.

Comerciários vão e vem. Ônibus penduram passageiros nos pingentes. Bebedores de cerveja ocupam os passeios públicos e reservam as saideiras para horas depois. A santa, quando não é estátua viva, sorri com timidez. Sandra, quando é Sandra, jamais sorri. O tocador de sanfona segue cabisbaixo. Quantas pessoas dependem da música dele para comer?

Um louco aproveita as últimas luzes do dia e discursa. Reclama que nove ministros foram trocados por denúncias de corrupção. O bancário ri e comenta com o colega que tem um babaca gritando. Mas o louco é dono de si. Diz que a democracia é representativa e o povo é quem elege os seus representantes. “Se o povo não fiscaliza seus representantes vira esta pouca vergonha!”, grita o louco que ninguém escuta e quando é ouvido é motivo de ironia.

No café da esquina, uma publicação marreta pendurada na banca de jornais torce para os seus patrocinadores. Diz na manchete que o comércio do Dia das Crianças será acima da expectativa. Mais cinco são presos por suspeita de corrupção. Outro político é mencionado em gravações telefônicas suspeitas. A unidade básica de saúde é pequena para o tanto de gente que espera por atendimento e derrama pelas portas e janelas dores, sofrimentos, decepções e muita tristeza.

Adiante, a mulher pára em fila dupla na saída da escola para apanhar seu filho. Sandra conseguiu na semana apenas três diárias. A santa só trabalhou dois dias por causa de um problema de saúde em casa. A estátua de alumínio tentou ganhar moedas inclusive no feriado. O artista dos malabares pretende disputar no fim de semana a esquina da rua que leva ao shopping.

Tocadores de sanfona não são artistas! Vivem do improviso para sustentar a estranha mania de suar e chorar para ter como pagar suas contas. Tocadores de sanfona não ganham aplausos. São apenas trabalhadores.



quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Conto - O catador


A ilusão é palpável! Na bicicleta do catador de papel ela leva e conduz, transporta, ronca o motor, engata a marcha e gera renda. É uma condução de trabalho, não é objeto do desejo pronto para satisfazer caprichos.

Apolônio trocou o guidão por um velho volante de caminhão comprado a preço de pechincha numa lojinha de usados. Nádegas ajeitadas no selim coberto com capa que traz o emblema de um time de futebol, ele adaptou no garfo do seu veículo um farolete de pilha, preso com uma braçadeira de alumínio.

A noite, afinal, é um breu. Mesmo na lua cheia e estrelas sobrando lá em cima. O perigo fica nas sombras e são muitas as situações de risco. Após a dobra da esquina pode haver uma armadilha. O medo também se coloca atrás dos troncos das árvores ou no trecho onde os terrenos vazios abrigam a mata e disfarçam malfeitores.

Apolônio é o catador de papel. Entrou na atividade faz algum tempo e começou com estilo: calças pretas de microfibra, camisa social branca, gravata negra e por cima o paletó, também preto. As meias sociais apareciam sobre pares de sapatos de cadarço. Brilhantes de graxa e escova.

Pouco se sabia da bicicleta. Azul clara com pintura refeita, imaginava-se ter sido montada, peça a peça. Quadro comprado num lugar, pedais no outro, paralamas encontrados por acaso e o ajeito final, com a máquina em ponto de funcionamento.

E saia diariamente o Apolônio pouco antes do fim da tarde para a sua labuta: papéis e papelões descartados pelas lojas, jornais e revistas desprezados pelos moradores das casas, cadernos rascunhados com poemas que nunca chegaram ao ponto final ganhavam uma vaga naquela condução. De tão lotada de sacos de materiais recicláveis de longe parecia um automóvel estranho vindo no asfalto esburacado da grande avenida.

Farolete aceso enquanto houvesse pilha e na direção as mãos firmes postas no volante improvisado no lugar do guidão. Espelhos retrovisores ajudavam o condutor. Ele, de terno e gravata, chamava a atenção nas ruas da grande metrópole habitada por pessoas de idéias vencidas. Como pode um catador de papel usar gravata e terno? Era a pergunta que se fazia.

Entre as mais rasteiras das suposições a que mais tinha repercussão era a da pobreza repentina de alguém que havia gozado de muita riqueza. E nessa versão as variantes formavam um leque: ele teria sido um grande empresário; ou um advogado de renome que perdeu prestígio depois de perder uma grande causa. E tantas outras.

Conversas jogadas fora. Bastava conversar com Apolônio para conhecer sua história. A fala era apressada. A articulação ininterrupta da boca fazia a saliva escapar. E ele contou que havia trabalhado para um político importante. Assessor de confiança, até emprestava o nome para negócios escusos. Na verdade Apolônio era um laranja.

A fala atropelada, a saliva escorrendo, o detalhismo em alguns pontos, a vontade de dizer mostraram um homem que se levantou depois de muitos baques. Apolônio foi torturado no passado. Talvez por querer mais vantagem pelo que fazia, isso ele não mencionou, mas deu a entender. E assim virou um homem perigoso para o esquema que representava.

O que ele disse, numa narração sem pontos e nem vírgulas, foi sobre uma acusação arranjada. Muito grave. Depois a prisão, as surras encomendadas, o julgamento armado, as testemunhas comprados e a sentença: além do cárcere a desgraça para toda a família, que um dia se foi e ele nunca mais viu.

E agora pouca diferença fazia vestir terno e gravata ou o encardido moletom. Catador de papel, Apolônio se vestiu com as roupas de fino corte até quando elas resistiram. Trabalhador das ruas, Apolônio pedala sob lua ou chuva sem se dar conta que outrora trafegava em veículos luxuosos dos gabinetes aos restaurantes nobres. E entre a maleta de couro cheia de documentos manchados e os sacos de materiais recicláveis, confessa que o peso de agora causa suor, mas não tira o sono.

Vai a lua cortando o céu de um lado a outro. O catador de papel a persegue, na bicicleta com volante de caminhão no lugar do guidão. O farolete aceso, quando há pilha, é o sinal de sua presença na portaria do condomínio de luxo, onde a coleta é abundante. Cadernos, cartas, livros e embalagens pendurados na bagagem levam outras histórias de outras pessoas.


quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Conto - Dias contados


As pernas travam. São quatro lances de escada acima. O corpo arcado sobe, pesado e lento, como se evitasse chegar. Alguns segundos bastariam com o uso do elevador. Armando, porém, ignora. Ele prefere demorar e ainda faltam quatro minutos para iniciar a jornada de trabalho.

Em outros tempos Armando era o primeiro a passar pelo relógio de ponto. Ainda jovem trazia na mochila a marmita, o suco e dezenas de colheres de disposição e esperança. Encarregado de expedição da indústria após dois anos de registro em carteira, primeiro como serviços gerais e depois como escriturário, o rapazote queria crescer com poucos saltos: em cada pulo a maior quantidade de degraus.

E merecia. Aprendia rápido, preocupava-se com a limpeza do seu local de trabalho, cumpria com suas tarefas e encontrava tempo para aprender sobre outros setores. Aos olhos da chefia Armando era o empregado modelo.

De tão dedicado à empresa mudou o seu projeto acadêmico. Pretendia cursar biologia, mas trocou por administração quando alguém comentou com ele que não ficaria bem para o patrão manter um trabalhador que depois de formado iria fatalmente procurar um emprego em outra área.

Havia sentido. A indústria era do ramo de plásticos e jamais um biólogo faria carreira ali. Nem dor a mudança causou. Em casa Armando dizia aos pais que permaneceria naquele emprego até a aposentadoria, quando estivesse no alto de um cargo de direção.

Tamanho esforço era compensado pelos patrões. Com horas extraordinárias. Embora fosse do setor administrativo Armando costumava ser chamado até para as atividades de chão de fábrica quando a produção exigia que as máquinas funcionassem aos sábados, domingos, feriados e madrugadas afora.

E via-se, de vez em quando, o encarregado da expedição varrendo o pátio, cobrindo ausências na portaria, carregando caixas e manobrando caminhões. “Este menino tem muito futuro. Ele faz de tudo sem reclamar”, diziam dele os superiores. Armando também fazia serviços particulares para os diretores: enfrentava filas de banco para depósitos, pagava prestações das esposas dos chefes nas lotéricas, buscava lanche para os colegas e entregava flores para mulheres que nada tinham a ver com os patrões.

E nunca deixou a curiosidade estragar a relação de confiança. “Se me mandarem fazer eu faço sem nada perguntar”, respondeu certa vez a um amigo que entrou numa conversa atravessada a respeito de um diretor que mandava flores e outros presentes para uma amante.

Atribulado com os afazeres do seu setor e com as convocações para horas extraordinárias o trabalhador concluiu o curso de administração no afogadilho. Ele não pode repetir na faculdade o desempenho de outrora no ensino médio e fundamental, quando acumulava boas médias e merecia elogios dos mestres. Armando foi um estudante universitário medíocre. E precisava aprender mais do que sabia diante de uma situação de conforto na empresa em que trabalhava?

Também desprezou cursos de apoio. Esqueceu especializações e idiomas. Substimou o lazer e de pretenso craque amador de futebol se transformou em gandula. Armando freqüentava o campo da associação de funcionários só quando a diretoria jogava bola. Ia ao local para servir de faz tudo: adiantar a trave para diminuir o tamanho do campo, buscar água e cerveja, ensacar as camisas molhadas de suor após a partida, preparar o churrasco, lavar panelas e outras vasilhas, servir, servir e servir.

Quanto mais servia mais Armando se imaginava prestigiado. Mas continuava chefe da expedição. Aliás, um chefe sem chefiados. A expedição era o Armando e ninguém fora ele entendia do serviço. Certa vez pensaram em promovê-lo. Chegaram, porém, à conclusão que Armando era esforçado, mas sem criatividade e competência para comandar o setor administrativo na condição de gerente. “O Armando serve muito bem na expedição. Deixa ele lá mesmo. Quem é que entende como ele de controle de entrada e saída de produtos e matéria prima, materiais de expediente, papel higiênico, guardanapo, café, água e tudo mais? Só ele. Não mexam com o Armando”.

Agora, aos 58 anos de idade e a quatro para se aposentar por tempo de serviço, Armando continua encarregado da expedição. Já não é tão requisitado para horas extraordinárias. A indústria se modernizou e os novos colegas de trabalho se especializaram. A avaliação do trabalhador também sofreu com o tempo: “Com esse programa novo dá para colocar dois meninos no lugar do Armando. Mas o que é que vamos fazer com ele?”

E Armando percebe que esqueceu de si próprio ao ceder mais do que devia aos patrões. Carregou piano e se arcou. Isso pesa. Armando chega empurrado ao serviço. 


terça-feira, 4 de setembro de 2012

Crônica - 4 de setembro

É apenas uma data e faz parte da Semana da Pátria. Este ano caiu numa terça. Mas desde que a contagem começou já deve ter sido domingo, sábado, segunda, quarta, quinta, sexta e a própria terça muitas vezes.
Pouca diferença faria se disséssemos que em 1850, no período do Segundo Reinado, um cara chamado Eusébio de Queiroz, pressionado pela Inglaterra, assinou a Lei 581 que proíbe no Brasil o tráfico interatlântico de escravos. Até então os escravos negros eram trazidos legalmente pelos mares até a costa brasileira.

Esse cara era ministro da Corte Portuguesa que mandava neste nosso país. Com a lei, que ficou para a história com o seu nome, Lei Eusébio de Queiroz, os traficantes se especializaram e mantiveram a contravenção, o que significa, no mínimo, que a maracutaia vem desde o princípio.

Muita diferença faz se tomarmos que aquela escravidão foi extinta mas outras, tantas, surgiram e são praticadas até os dias de hoje. Frequentemente lemos nos jornais notícias sobre o trabalho escravo em latifúndios localizados principalmente na parte de cima do mapa do Brasil. Fiscais do Ministério do Trabalho vez em quando descobrem mais casos, o que quer dizer que aquela maracutaia de 162 anos atrás ainda é fortemente predominante.

Às vezes a prática maldosa, nociva e interesseira prossegue sem barreiras porque as diferentes esferas de poder que deveriam combatê-la fecham os olhos. A corrupção passiva não só cega, mas cala, imobiliza e detona a ética e a consciência de algumas autoridades. E a leitura mais aprofundada da nossa história mostra que sempre foi assim. Indica também que a corrupção ativa só existe porque os sujeitos da passiva são numerosos e receptivos.

É relevante tomar consciência da diferença que faz termos conhecimento que nós, mesmo em 2012 e fora dos latifúndios exploradores do trabalho, somos escravos de uma política porcamente feita e de uma difusão de cultura encomendada.

Verdade. Na política são os políticos que fazem as leis que os beneficiam, inclusive na legislação que estabelece as regras eleitorais. Eles criam coligações que ajuntam o doce e o fel, o anjo e o capeta, a esquerda e a direita, a grama e a erva daninha. Coligações quantitativamente grandes dão a eles mais força, mais possibilidade de patrocínio financeiro para as campanhas e mais tempo no horário gratuito de rádio e televisão.

Coligações quantitativamente gigantes resultam, após as eleições e as vitórias, no loteamento de cargos. E quem gritar mais alto fica com a melhor fatia. A ideologia é esfregada no chão e com ela vão-se os estatutos e os regimentos partidários, o bom senso, o zelo com o dinheiro público e os compromissos com o eleitorado. Mesmo ciente disso a gente vota no menos pior e diz que a democracia assim o exige. Isso é escravidão.

O cerceamento cultural a gente não percebe. É fomentado pela incapacidade e pelo desinteresse do poder público que patrocina os meios de comunicação. Funciona assim: a gente dá a eles informações e conhecimentos até a altura da bunda de cada cidadão. Acima disso é arriscado porque eles aumentam a sabedoria, a consciência, a noção de cidadania e a força. Chegando nesse ponto eles cobram, criticam, condenam e reivindicam. E ficamos sempre escravos. É mole? 


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Crônica - Setembro...


Fechei agosto com a conta bancária no azul. O saldo nem para um sorvete de segunda linha dá. Mas é azul, isso é o bastante. Iniciei aquele mês como todos os outros: preocupado com as prestações, os financiamentos, a luz, a água, o condomínio, o cartão de crédito, o telefone, a internet e as necessidades básicas. Verdade! Comida, detergente e papel higiênico não podem faltar na casa de quem se alimenta e evacua sem se dar ao gosto de preparar e saborear refeições caras ou frequentar restaurantes soberbos.

Viram como a verdade coloca o sujeito do degustativo ao fisiológico numa mesma linha, sem hiatos para amenizar o recheio entre as duas circunstâncias? É tapa na cara depois de um beijo. Enfim, achei que agosto seria o pior de todos. Conta no vermelho, prestações em aberto, mordida de cachorro louco e outros desgostos. Que nada! Os únicos cachorros que me incomodaram são aqueles que freqüentam o terminal de ônibus de Cambé. Irritam, enraivecem e colocam pessoas em situações de risco.

Pude até recusar propostas profissionais financeiramente interessantes. Pesei a ideologia e a ética e deixei de trabalhar na campanha política em Londrina. Abri mão de contratos que me garantiriam, em um dos casos, quase sete vezes a mais do que o meu salário. Nisso valei o claro entendimento de minha parceira: “Você não consegue trabalhar em política. E quando tentou se deu mal. Fica no pingadinho e faz o que você gosta de fazer”.

Ela tem razão. Na campanha de 2004 trabalhei por dois meses para um candidato e recebi pela tabela do sindicato. Na mesma equipe uns caras encerraram o período eleitoral reformando casas e trocando de carro. Na campanha de 2008 trabalhei por menos do que a tabela do sindicato. Nem procurei saber o que os caras inovaram em suas residências e em seus meios de transporte. E durmo tranqüilo, pois não amarrei nenhum rabo.

Então recebi setembro esperançoso. Já rascunhei a contabilidade doméstica umas três vezes e com a ajuda da parceira fecho mais um mês no azul. Com os mesmos pares de sapatos, as mesmas calças e as mesmas camisas. Um par de meias, se for preciso, terá pouco impacto. Já as cuecas estão pedindo aposentadoria. Aquela azul de tanto lavar virou roxa. O elástico está insustentável. Na lateral esquerda cresce um buraquinho que está ficando buracão. Inclui na previsão de compras dois pacotes da promoção de uma loja de departamentos. Marca de segunda linha. E quem precisa de uma etiqueta de grife dentro das calças?