quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Conto - Dias contados


As pernas travam. São quatro lances de escada acima. O corpo arcado sobe, pesado e lento, como se evitasse chegar. Alguns segundos bastariam com o uso do elevador. Armando, porém, ignora. Ele prefere demorar e ainda faltam quatro minutos para iniciar a jornada de trabalho.

Em outros tempos Armando era o primeiro a passar pelo relógio de ponto. Ainda jovem trazia na mochila a marmita, o suco e dezenas de colheres de disposição e esperança. Encarregado de expedição da indústria após dois anos de registro em carteira, primeiro como serviços gerais e depois como escriturário, o rapazote queria crescer com poucos saltos: em cada pulo a maior quantidade de degraus.

E merecia. Aprendia rápido, preocupava-se com a limpeza do seu local de trabalho, cumpria com suas tarefas e encontrava tempo para aprender sobre outros setores. Aos olhos da chefia Armando era o empregado modelo.

De tão dedicado à empresa mudou o seu projeto acadêmico. Pretendia cursar biologia, mas trocou por administração quando alguém comentou com ele que não ficaria bem para o patrão manter um trabalhador que depois de formado iria fatalmente procurar um emprego em outra área.

Havia sentido. A indústria era do ramo de plásticos e jamais um biólogo faria carreira ali. Nem dor a mudança causou. Em casa Armando dizia aos pais que permaneceria naquele emprego até a aposentadoria, quando estivesse no alto de um cargo de direção.

Tamanho esforço era compensado pelos patrões. Com horas extraordinárias. Embora fosse do setor administrativo Armando costumava ser chamado até para as atividades de chão de fábrica quando a produção exigia que as máquinas funcionassem aos sábados, domingos, feriados e madrugadas afora.

E via-se, de vez em quando, o encarregado da expedição varrendo o pátio, cobrindo ausências na portaria, carregando caixas e manobrando caminhões. “Este menino tem muito futuro. Ele faz de tudo sem reclamar”, diziam dele os superiores. Armando também fazia serviços particulares para os diretores: enfrentava filas de banco para depósitos, pagava prestações das esposas dos chefes nas lotéricas, buscava lanche para os colegas e entregava flores para mulheres que nada tinham a ver com os patrões.

E nunca deixou a curiosidade estragar a relação de confiança. “Se me mandarem fazer eu faço sem nada perguntar”, respondeu certa vez a um amigo que entrou numa conversa atravessada a respeito de um diretor que mandava flores e outros presentes para uma amante.

Atribulado com os afazeres do seu setor e com as convocações para horas extraordinárias o trabalhador concluiu o curso de administração no afogadilho. Ele não pode repetir na faculdade o desempenho de outrora no ensino médio e fundamental, quando acumulava boas médias e merecia elogios dos mestres. Armando foi um estudante universitário medíocre. E precisava aprender mais do que sabia diante de uma situação de conforto na empresa em que trabalhava?

Também desprezou cursos de apoio. Esqueceu especializações e idiomas. Substimou o lazer e de pretenso craque amador de futebol se transformou em gandula. Armando freqüentava o campo da associação de funcionários só quando a diretoria jogava bola. Ia ao local para servir de faz tudo: adiantar a trave para diminuir o tamanho do campo, buscar água e cerveja, ensacar as camisas molhadas de suor após a partida, preparar o churrasco, lavar panelas e outras vasilhas, servir, servir e servir.

Quanto mais servia mais Armando se imaginava prestigiado. Mas continuava chefe da expedição. Aliás, um chefe sem chefiados. A expedição era o Armando e ninguém fora ele entendia do serviço. Certa vez pensaram em promovê-lo. Chegaram, porém, à conclusão que Armando era esforçado, mas sem criatividade e competência para comandar o setor administrativo na condição de gerente. “O Armando serve muito bem na expedição. Deixa ele lá mesmo. Quem é que entende como ele de controle de entrada e saída de produtos e matéria prima, materiais de expediente, papel higiênico, guardanapo, café, água e tudo mais? Só ele. Não mexam com o Armando”.

Agora, aos 58 anos de idade e a quatro para se aposentar por tempo de serviço, Armando continua encarregado da expedição. Já não é tão requisitado para horas extraordinárias. A indústria se modernizou e os novos colegas de trabalho se especializaram. A avaliação do trabalhador também sofreu com o tempo: “Com esse programa novo dá para colocar dois meninos no lugar do Armando. Mas o que é que vamos fazer com ele?”

E Armando percebe que esqueceu de si próprio ao ceder mais do que devia aos patrões. Carregou piano e se arcou. Isso pesa. Armando chega empurrado ao serviço. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário

PARTICIPE: