quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Conto - O catador


A ilusão é palpável! Na bicicleta do catador de papel ela leva e conduz, transporta, ronca o motor, engata a marcha e gera renda. É uma condução de trabalho, não é objeto do desejo pronto para satisfazer caprichos.

Apolônio trocou o guidão por um velho volante de caminhão comprado a preço de pechincha numa lojinha de usados. Nádegas ajeitadas no selim coberto com capa que traz o emblema de um time de futebol, ele adaptou no garfo do seu veículo um farolete de pilha, preso com uma braçadeira de alumínio.

A noite, afinal, é um breu. Mesmo na lua cheia e estrelas sobrando lá em cima. O perigo fica nas sombras e são muitas as situações de risco. Após a dobra da esquina pode haver uma armadilha. O medo também se coloca atrás dos troncos das árvores ou no trecho onde os terrenos vazios abrigam a mata e disfarçam malfeitores.

Apolônio é o catador de papel. Entrou na atividade faz algum tempo e começou com estilo: calças pretas de microfibra, camisa social branca, gravata negra e por cima o paletó, também preto. As meias sociais apareciam sobre pares de sapatos de cadarço. Brilhantes de graxa e escova.

Pouco se sabia da bicicleta. Azul clara com pintura refeita, imaginava-se ter sido montada, peça a peça. Quadro comprado num lugar, pedais no outro, paralamas encontrados por acaso e o ajeito final, com a máquina em ponto de funcionamento.

E saia diariamente o Apolônio pouco antes do fim da tarde para a sua labuta: papéis e papelões descartados pelas lojas, jornais e revistas desprezados pelos moradores das casas, cadernos rascunhados com poemas que nunca chegaram ao ponto final ganhavam uma vaga naquela condução. De tão lotada de sacos de materiais recicláveis de longe parecia um automóvel estranho vindo no asfalto esburacado da grande avenida.

Farolete aceso enquanto houvesse pilha e na direção as mãos firmes postas no volante improvisado no lugar do guidão. Espelhos retrovisores ajudavam o condutor. Ele, de terno e gravata, chamava a atenção nas ruas da grande metrópole habitada por pessoas de idéias vencidas. Como pode um catador de papel usar gravata e terno? Era a pergunta que se fazia.

Entre as mais rasteiras das suposições a que mais tinha repercussão era a da pobreza repentina de alguém que havia gozado de muita riqueza. E nessa versão as variantes formavam um leque: ele teria sido um grande empresário; ou um advogado de renome que perdeu prestígio depois de perder uma grande causa. E tantas outras.

Conversas jogadas fora. Bastava conversar com Apolônio para conhecer sua história. A fala era apressada. A articulação ininterrupta da boca fazia a saliva escapar. E ele contou que havia trabalhado para um político importante. Assessor de confiança, até emprestava o nome para negócios escusos. Na verdade Apolônio era um laranja.

A fala atropelada, a saliva escorrendo, o detalhismo em alguns pontos, a vontade de dizer mostraram um homem que se levantou depois de muitos baques. Apolônio foi torturado no passado. Talvez por querer mais vantagem pelo que fazia, isso ele não mencionou, mas deu a entender. E assim virou um homem perigoso para o esquema que representava.

O que ele disse, numa narração sem pontos e nem vírgulas, foi sobre uma acusação arranjada. Muito grave. Depois a prisão, as surras encomendadas, o julgamento armado, as testemunhas comprados e a sentença: além do cárcere a desgraça para toda a família, que um dia se foi e ele nunca mais viu.

E agora pouca diferença fazia vestir terno e gravata ou o encardido moletom. Catador de papel, Apolônio se vestiu com as roupas de fino corte até quando elas resistiram. Trabalhador das ruas, Apolônio pedala sob lua ou chuva sem se dar conta que outrora trafegava em veículos luxuosos dos gabinetes aos restaurantes nobres. E entre a maleta de couro cheia de documentos manchados e os sacos de materiais recicláveis, confessa que o peso de agora causa suor, mas não tira o sono.

Vai a lua cortando o céu de um lado a outro. O catador de papel a persegue, na bicicleta com volante de caminhão no lugar do guidão. O farolete aceso, quando há pilha, é o sinal de sua presença na portaria do condomínio de luxo, onde a coleta é abundante. Cadernos, cartas, livros e embalagens pendurados na bagagem levam outras histórias de outras pessoas.


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