segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Conto - Os tocadores de sanfona


Dia de sol! Foi o primeiro pensamento de Sandra naquela segunda-feira, antes mesmo da escuridão da madrugada de fim de outono se por lá onde começa o infinito, depois do concâvo que o céu faz. Era o que se via lá fora pela fresta que a cortina de pano abre.

Besteira! Com sol ou chuva ela teria que trabalhar. O rádio-relógio a despertou com o noticiário nacional: “Dilma diz que o Brasil criou um modelo de desenvolvimento inédito, baseado no crescimento com estabilidade, no equilíbrio fiscal e na distribuição de renda. Sandra exercitou extravagância na assimilação: “Como? O que aquela mulher está dizendo é deste Brasil onde eu vivo?”.

E nem se deu conta, por puro descaso, do resto. A notícia repercutia o pronunciamento da presidente na véspera do Dia da Independência, 6 de setembro, semanas após a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores comemorar as vendas de novos em agosto graças à prorrogação do Imposto sobre Produtos Industrializados reduzido para o setor: 420.101 unidades vendidas num país onde a inadimplência aumenta, as vias urbanas e as rodovias são precárias, as pessoas devem às financeiras e os preços dos produtos básicos nos supermercados saltam de uma semana a outra.

Sandra já acertou o aluguel e ficou sem nada para as compras básicas do supermercado. No fim de semana recorreu à mercearia próxima, onde se pendura a conta e paga-se mais pelo que se adquire. E tem a luz quase vencendo. A água é para daqui a duas semanas. O telefone celular fica sem crédito por enquanto e só toca graças aos bônus. “Normal! Isso é normal e nunca foi diferente”, comenta consigo mesma.

Ex-atendente de uma creche, Sandra buscou a informalidade quando o estabelecimento filantrópico reduziu a carga horária e o salário dos empregados. Claro, buscou alternativas mais seguras, mas nunca passou das possibilidades de vagas. Por isso ria-se quando lia reportagens otimistas nos jornais sobre a queda do desemprego. “De onde é que esses jornais tiram isso?”

Foi o tempo de retornar ao quarto para se trocar quando o locutor deu um desfecho à matéria citando recente pesquisa sobre a popularidade da presidente, lá em cima. “Eu, que não tenho nenhuma espécie de bolsa e não entro nos grupos de cotistas fico fora disso...”

Sandra cursou até o segundo ano do curso de Ciências Sociais em universidade pública. Talvez por isso tenha um fio de sangue crítico correndo nas veias. Ela, quando acusada de ser radical, justifica que a vida a moldou daquele jeito. Questionadora, Sandra deve ter perdido muitos empregos com carteira assinada após ter o currículo selecionado. Nas entrevistas a moça é colocada para fora do processo de seleção.

Por isso Sandra decidiu trabalhar por conta. Ela é animadora de loja. Se o comércio é destinado para crianças, veste-se de Branca de Neve, Mickey Mouse, Minie, urso panda, gorila ou outra espécie que chame a atenção. Quando a loja vende eletrônicos, Sandra coloca-se dentro de uma caixa que imita um aparelho de telefone celular. Assim por diante.

Certa vez um lojista requisitou a Marylin Monroe. E lá foi Sandra, com a cara morena pintada de branco, batom torturantemente vermelho, peruca loira e sapatos altos recepcionar consumidores na entrada do comércio de confecções. Ela costuma pedir oitenta reais pela diária, mas fecha até por cinqüenta quando o movimento está fraco.

É pouca originalidade, admite Sandra. Nem todas as crianças de agora dão importância à Branca de Neve, ursos, ratos e outros animais ou aves. E quando fantasiada de telefone celular resta o consolo de ninguém ficar sabendo quem está dentro daquilo.

Bem que ela gostaria de fazer a estátua de uma concorrente próxima e muito forte: a santa com o menino Jesus no colo. “Esta sim acertou na loteria. Mexe com as pessoas, principalmente as que enfrentam dificuldades”, imagina Sandra, metida numa roupa de camareira graças ao serviço prestado a um hotel.

A concorrente de Sandra, bons metros adiante, veste-se de branco da cabeça aos pés. Um véu cobre a cabeça e sobre ele uma coroa dourada. A tinta clara esconde a cor da pele do rosto e do pescoço. A urna onde as pessoas depositam as moedas também é branca. Só tem cor o tapete vermelho diante da estátua viva, que mantém um boneco em seus braços.

Ela permanece imóvel até que alguém se aproxime e deposite aos seus pés algumas contribuições. É quando a santa agradece, abaixando a cabeça e acionando o boneco que tem nos braços. Com os dedos da mão esquerda a estátua faz o boneco gesticular. E daquele movimento aparece o pedacinho de papel que é entregue à pessoa bondosa que fez a doação. O texto é uma mensagem de fé. “De onde ela tirou essa idéia genial? Ela cercada de admiradores e o cofre enchendo. E eu aqui de camareira, com vestidinho curto mostrando tudo”, pragueja Sandra.

Houvesse, por outro lado, tantas moedas nos bolsos das pessoas que passam! Se assim fosse haveria renda para todos e Sandra viraria também uma estátua. Sobraria até para o tocador de sanfona, na outra praça. Ele chama a atenção de alguns com as antigas canções que lembram outros tempos.

A camisa xadrez e as calças de brim indicam: ele foi um trabalhador do campo ou um pequeno proprietário rural. O que teria feito aquele homem tocar sanfona numa praça pública de uma grande cidade? Comentam por ali: ele não é um grande músico e também passa longe de ser um habilidoso instrumentista. Sabe tocar sanfona. Nada mais. E o repertório feito de teclas decoradas traz nostalgia, lembra a boa fase da colheita, quando as famílias comemoravam com vinho de garrafão após os almoços dos domingos.

Dizem dele que perdeu terras e de mudança para o meio urbano, para que os filhos pudessem trabalhar, tirou da mala a velha sanfona herdada do pai, que havia herdado de seu pai. Da cozinha miúda da casa popular resgatou uma banqueta de madeira. Na rua catou uma caixa de sapatos. E passou a frequentar a praça de segunda a sábado, onde toca o que sabe em troca de moedas que nunca ocupam todo o fundo da caixa de calçados onde as ofertas são depositadas.

Há quem diga que o tocador de sanfona encerra o expediente com mais renda do que o rapaz que na praça seguinte tenta impressionar as pessoas que passam como estátua viva sem tema definido. A pele de cor negra é pintada de alumínio. Ele espera por almas caridosas que a cada dia rareiam. Se o sol é forte o suor desce e danifica a pintura. Se a chuva é intensa compromete o dia. Mas quando cai uma garoa fina a estátua viva mantém-se imóvel, esperando o fim do dia para contar quanto depositaram em sua caixinha. Às vezes dá um pão. Outras vezes vertem lágrimas.

História parecida com a daquele que fez dos sinais de trânsito o seu local de trabalho. Os malabares sobem e descem girando. Coloridos, nem sempre voltam para as mãos do artista. Vez ou outra escapam. Escorrem por baixo dos carros e exigem improvisos para serem recuperados.

O espetáculo é único e tem tempo certo. Há de sobrar tempo para passar pelas janelas dos veículos e receber uma moeda pela arte apresentada. E elas se fecham. Atrás do insufilme escuro está um motorista que na esquina anterior já viu outros malabares subindo e descendo aos giros.

Tocadores de sanfona! Sandra, a que anima consumidores, já viu criança pular de alegria diante dela. A santa com o menino Jesus nos braços já fez gente grande chorar ao ler a mensagem que o boneco que traz em seu colo entregou. O tocador de sanfona não chora. Sua expressão, no entanto, é de tristeza. O que faz daquele homem um indivíduo tão quieto? A estátua viva de cor alumínio confessa que já trabalhou chorando. Mas não permitiu que as lágrimas descessem e estragassem a pintura. O artista dos malabares sabe que nem sempre o seu pagamento é a moeda. Certa vez quase atingiu um veículo com o seu instrumento de trabalho e foi retribuído com ofensas.

Trabalhadores informais, quando levados às praças e às esquinas para terem renda, na maioria das vezes nunca foram maestros e regeram orquestras. Jamais levantaram platéias. É certo que alguns deles carregaram parte da economia do país nas costas por um bom período de tempo, quando empregados formais. Ajudaram a bancar a previdência social e tiveram, quando seus ganhos ultrapassaram limites, seus impostos de renda retidos. Pagaram antes para acertar as contas com o Fisco depois.

Tocadores de sanfona! Há comedidos, há os mais atirados. Na mesma praça onde a santa comove e é comovida um vendedor ambulante oferece a solução milagrosa para todos os males: dor de cabeça, resfriado, insônia, agonia, tristeza, inchaço dos pés, quebranto, desinteria, prisão de ventre, febre amarela, dengue, pontada no coração e doença venérea. Um frasquinho por oito reais. Dois por quinze. E vende a promessa de saúde física e mental muito mais do que o vendedor de apitos que soltam bolhas de sabão.

Na loja em frente os aparelhos de televisão sintonizam o jornal da tarde. A reportagem é sobre a longa espera por atendimento numa unidade de saúde. Em seguida, após o bloco comercial, mais um escândalo na política. Pessoas passeiam alheias aos acontecimentos que são noticiados. A vida é uma corrida violenta pela sobrevivência, pela garantia do emprego, pelo salário de cada mês.

Às seis da tarde Sandra despe-se da fantasia que o seu ofício exige e retorna ao jeans e a camiseta de sempre. A velha mochila engorda quando a fantasia é colocada nela. Um pequeno compartimento recebe algumas moedas e poucas cédulas. É a renda do dia. Dá para o ônibus de volta para casa e sobram troquinhos para acertar as contas com a vida.

O IPCA está em quanto? E o que é mesmo o IPCA? O economista do escritório em frente disse certa vez, no intervalo do café, que é o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo. É com ele que se mede a inflação. Os jornais anunciam situação controlada. Não é o que se vê nos supermercados.

Lá adianta Sandra percebe, cada um no seu rumo, o retorno para casa de seus colegas de trabalho. A santa, sem o véu e o vestido branco e livre da maquiagem tem um bonito rosto. O tocador de sanfona caminha arcado, parece que o dia foi fraco. O rapaz que faz a estátua de cor alumínio já se foi. O artista dos malabares deixou a esquina muito antes do rush do fim do dia.

Comerciários vão e vem. Ônibus penduram passageiros nos pingentes. Bebedores de cerveja ocupam os passeios públicos e reservam as saideiras para horas depois. A santa, quando não é estátua viva, sorri com timidez. Sandra, quando é Sandra, jamais sorri. O tocador de sanfona segue cabisbaixo. Quantas pessoas dependem da música dele para comer?

Um louco aproveita as últimas luzes do dia e discursa. Reclama que nove ministros foram trocados por denúncias de corrupção. O bancário ri e comenta com o colega que tem um babaca gritando. Mas o louco é dono de si. Diz que a democracia é representativa e o povo é quem elege os seus representantes. “Se o povo não fiscaliza seus representantes vira esta pouca vergonha!”, grita o louco que ninguém escuta e quando é ouvido é motivo de ironia.

No café da esquina, uma publicação marreta pendurada na banca de jornais torce para os seus patrocinadores. Diz na manchete que o comércio do Dia das Crianças será acima da expectativa. Mais cinco são presos por suspeita de corrupção. Outro político é mencionado em gravações telefônicas suspeitas. A unidade básica de saúde é pequena para o tanto de gente que espera por atendimento e derrama pelas portas e janelas dores, sofrimentos, decepções e muita tristeza.

Adiante, a mulher pára em fila dupla na saída da escola para apanhar seu filho. Sandra conseguiu na semana apenas três diárias. A santa só trabalhou dois dias por causa de um problema de saúde em casa. A estátua de alumínio tentou ganhar moedas inclusive no feriado. O artista dos malabares pretende disputar no fim de semana a esquina da rua que leva ao shopping.

Tocadores de sanfona não são artistas! Vivem do improviso para sustentar a estranha mania de suar e chorar para ter como pagar suas contas. Tocadores de sanfona não ganham aplausos. São apenas trabalhadores.



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