quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Crônica - E as músicas natalinas são de chorar...

Lamentosas, melentas, arrastadas e deprimentes, elas são cantadas por intérpretes variados. Choraminguentas, empurram a euforia lá na parede dos descartes. E olha lá na fila dos caixas da loja de departamentos o montão de gente ouvindo e chorando, chorando e ouvindo, pagando e chorando, parcelando e ouvindo simone chorando. E os cabelos dos xororós lambidos emocionam tanto quanto a juba dos chitões, sejam eles zinhos ou não.

Aquele cidadão gordo de camiseta regata levanta os braços em cima dos balaios de pães frescos e sugere, meio que mandando:

- Não tem algo do Roberto Carlos pra rodar? Manda aquela música que ele gravou pra Globo... Aquela com um monte de artistas de novela chorando...

Nisso a menininha de seis anos cutuca as nádegas da mãe, que pensa ser vítima de uma bolinação:

- O senhor cutucou a minha bunda?

O idoso faz com a cabeça que não e com o queixo aponta para a garotinha. Ela não entende o sinal e insiste:

- O senhor apertou a minha bunda com este dedão sujo...

Só então a mulher percebe que a pessoa é maneta. Foi preciso a intervenção da filhinha:

- Fui eu, mãe. É que aquele homem gordo que pediu música do Roberto Carlos abriu os braços em cima do pão francês. Tem um monte de pelo no sovaco...

Constrangimento instalado. Enquanto xororó arrastava um lamento natalino e uma balconista do setor de eletrodoméstico, logo adiante, se derramava em lágrimas, a mulher da bunda cutucada percebeu que o gordo do Roberto Carlos tinha um matagal exposto em cima dos produtos e um bigode daqueles que quando o prato é sopa fica duro de tanto molho.

E o gordo bigodudo e peludo quase abre a boca para se defender. Por sorte, o funcionário responsável pelo som anunciou a promoção de CDs natalinos que incluía uma novidade com Roberto Carlos, a Globo, os artistas das novelas, o Didi, o Faustão parecendo uma pirâmide invertida, o Caco Barcelos querendo ensinar jornalismo e o Pedro Bial só ali, de tocaia, selecionando entre os músicos do rei um bom participante da próxima edição da Baita Besteira Brasileira.

Então tudo entrou nos conformes. O gordo dos pelos se aquietou e ouviu o rei cantar lançamentos dele e da globo de anos atrás. No que um careca de bermuda, meia e sapato social comentou:

- Mas no Natal é tudo novidade. A gente gosta, fazer o que?

A mulher da bunda cutucada, coitada! Ainda não se sabe se ela se aliviou quando soube que a filha é que havia feito aquilo ou sofreu decepção por não ser bolinada nem por um idoso.

Xororó e chitão foram para a banca de promoção. Estava por nove e noventa e caiu para um e noventa. Simone, na versão do “então é natal”, estava praticamente de graça. O cartaz da banca dizia: “Compre uma dúzia de banana caturra e ganhe cinco CDs”.

O pessoal da fila do caixa chorou mais ainda ao ouvir, pagar, digitar senha do cartão, escutar, somar e empacotar panetones. Aquilo sim era uma confraternização natalina. E o rei é especialista em armar comoção. Ouviu-se, no rabicho de uma música, ele dizendo:

- São muitas emoções...

Mas tinha que aparecer um estraga prazeres. Veio de chinelos de dedo, unhão encardido, e entrou no departamento de crediário cantando:

- Eu pensei que todo mundo fosse filho de papai noel...

E foi aquela revolta da galera. Também pudera! Assis Valente, o autor desta música contestadora, que nos perdoe. Natal, afinal, é para ouvir lamúrias e chorar. O gerente da loja até tentou acalmar os ânimos:

- Gente, não é hora de manifestação. Deixa os protestos lá para os estudantes da USP. Aqui é pra gastar bastante e escutar estas músicas emocionantes. E quem quiser chorar que chore, caramba... 

O gerente, aliás, estava de saco cheio de tanto ter que ouvir música natalina e ver consumidores chorando de emoção. Mais certo foi o menino que olhava os notebooks na seção de informática e perguntou ao pai:

- Natal não é para todo mundo ficar feliz?

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Conto - Além da imagem refletida no espelho

Lisandra é uma imagem na parede decorada com vidro de uma loja do fim do corredor de uma galeria comercial no centro de Londrina. Cabelos aos ombros, estatura média e magra, o reflexo é tão imóvel quanto a própria mulher espelhada.

O vestido solto preso aos ombros com tiras largas cai bem. Desce até uns dedos acima dos joelhos em uma meia roda armada suavemente. A cor do tecido é clara, puxando para um azul que imita o jeans desbotado. É um modelo esportivo, com botões destacados na frente, de cima abaixo, e bolsos enormes na altura das coxas.

Uma menina, diria em outros tempos, ao se refletir, a mulher do fundo do espelho. Sandálias de poucas tiras, apenas suficientes para mantê-las nos pés, dão uma sensação de conforto. Rasteirinhas, também transmitem leveza em todos os sentidos. Inclusive da pessoa que as usa, cujas unhas pintadas de vermelho atraem os olhos de quem a vê caminhar.

Os cabelos, castanhos escuros e lisos, dariam a idéia de soltura e descompromisso com as formas sofisticadamente trabalhadas em salões cercados de espelhos. A maquiagem é leve. Nenhum tom forte causa impacto. Os lábios apenas brilham com o gloss teimosamente retocado.

Nem jóias e bijuterias aumentam o peso da mulher. No pescoço, pouco se percebe a corrente fina com a minúscula imagem de uma santa na ponta. Nas costas, a discreta tatuagem, em preto, com o nome de um homem. No pulso esquerdo, uma peça artesanal apenas quebra, feito uma tira fina com algumas pedras de enfeite, a brancura da pele.

Sempre foi assim. Lisandra é avessa aos excessos. Ou, como diriam os bons críticos, uma mocinha excessivamente simples que sabe usar o desapego aos acessórios como um charme. Tudo nela é básico. Houve quem comentasse que a beleza de Lisandra não impacta. É algo que entra sorrateira na imagem formada nos olhos de quem vê e se instala. Não é, enfim, beleza de arrancar suspiros. É um calejamento que inspira.

Falta-lhe, porém, o sorriso. E quando ele vem é naquele conjunto o único componente que levanta a suspeita de ser falso, fabricado sem critério, arranjado. Lisandra sorria antes, até quando parava na frente do espelho daquela loja para se orgulhar de sua simples beleza enquanto esperava por ele para o lanche do meio da tarde.

Se fosse uma lenda, haveria uma versão: ele, por uma maldade que não se tem explicação, roubou o autêntico sorriso da mulher do fundo do espelho e só deixou sua marca tatuada nas costas dela, que agora improvisa a falsa expressão de alegria com esforço tamanho. E ali se percebe que incomoda muito em Lisandra ter que fazer de conta que está feliz. A imagem no vidro põe o real sentimento muito além do reflexo.  

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Conto - Cadeiras sem parafusos é o caos da vida

A grama está alta e foge de Marilda a disposição de usar os finais destas tardes de sol para colocar o quintal em dia. As podas foram abandonadas faz semanas e no jardim as plantas reclamam atenção. A roseira curva seus galhos. Enfileiradas sobre um suporte de madeira, lá no canto onde a sombra da tarde alivia o calor, os vasos de orquídeas negam beleza. Além do verde manchada de marrom pela poeira, nenhuma cor.

Cuidar do jardim e ajeitar o quintal tem sido tarefas esquecidas. Marilda nem consegue acertar o lado de dentro da casa. A área de serviços virou um depósito. Tudo o que é descartado da sala e dos quartos ganha um espaço ali. Cadeiras que dependem de um aperto do parafuso ficam encostadas.

Até o velho computador sente os efeitos do sol ou da chuva preso a uma estante perto da janela. E ele já deu tanto para Marilda! Aliado na produção de textos poéticos, coragem para terminar as monografias, solidariedade nos momentos de solidão com os acessos às redes sociais e músicas, muitas! Foi por anos um abrir e fechar constante do drive para tocar músicas até o ponto do aparelho se esgotar, desgastado, e se dar ao direito de falhar em algumas ocasiões.

Jardim, quintal e casa, enfim, esperam providências. Nem a lâmpada queimada do abajur foi trocada. A cortida está suja e manchada. Em outros tempos Marilda providenciaria lavagem imediata. E se o resultado da faxina deixasse a desejar, ela acharia tempo para consertar o que estava errado, refazer o que poderia ser melhorado, limpar, cozinhar, passar, almoçar, jantar, tirar um tempo para se esticar no sofá e viver do jeito que ela vivia.

Era uma mistura de coisas feitas em atividades diversas. Tudo ao mesmo tempo. Marilda rascunhava a conclusão de um trabalho importante da pós-graduação no mesmo momento em que esquentava o leite do café da tarde. E aproveitava a caminhada da sala até a cozinha para aguar uma planta, catar um cisco, ajeitar a capa da poltrona, descascar uma fruta e pensar no tema de uma poesia para ser escrita à noite.

A mudança foi radical e nem foi por vontade própria. Na correria de antes Marilda até reservava tempo para os sentimentos mais íntimos. Ela tinha uma paixão, Alfredo, que no auge da relação até inspirou poemas. Depois, quando Marilda ainda jurava amor, ela própria percebeu que as rimas escapavam e a métrica desengonçava, em versos frios e sem nexo, com rupturas e palavras sem força. E os poemas viraram prosas.

Ali começaram os desacertos que, a princípio, nem ela imaginava enfrentar. A presença de Alfredo na casa passou a ser indesejada. Mas por falta de uma conversa franca ele passou a ser mais assíduo. E de tão solícito na vida dela Alfredo passou a ser um inconveniente.

Marilda, desnorteada, reagiu ao contrário. Para camuflar a ojeriza pelo rapaz ela fugiu para as atividades científicas. Produz atualmente uma elogiada monografia sobre biologia, área que ela sempre amou e dela jura nunca abrir mão. E esqueça a casa, o quintal, o jardim, as cadeiras para parafusar, o almoço, a janta e o leite esquentando numa caneca sem brilho.

E Alfredo vai ficando, mais por vingança do que por não ter para onde ir. Parece que ele sabe que Marilda está matando a vida que era dela e do seu jeito, com a sua presença cada vez mais constante naquele ambiente desacertado.  

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Crônica - Mamãe lavava as roupas no batedor

Um tronco de madeira serrado ao meio descia em diagonal até a terra a partir de duas estacas fincadas no chão. Media dois metros de comprimento ou pouco menos. Ao lado, sobre pilhas de tijolos, o tambor servia de reservatório de água. Pedras e cacos de telhas calçavam o pedaço do terreno onde dona Luiza batia as roupas todos os dias.

A água era puxada de balde do poço perfurado lá atrás, quase na beira da cerca de madeira que separava o quintal. No andar normal fazia-se o trecho entre o batedor e o poço com uns vinte passos. Balde vazio na ida e balde transbordando água na volta. Pesado e desajeitado, curvava as costas da mulher magra e de baixa estatura. E não bastava uma viagem: a roupa era muita e o tambor grande.

Molhar, ensaboar, bater, esfregar com escova, enxaguar e pendurar. Os varais ficavam ao lado, em área livre dos galhos da mangueira e do abacateiro. Os arames atravessam o quintal de um lado a outro. Quando lotados de roupas pareciam mosaicos montados ao acaso, embora as calças ficassem juntas e as camisas, presas pelas barras, ganhassem o arame mais à sombra.

Toalhas de banho, lençóis, guardanapos e cobertores eram estrategicamente pendurados onde não cobrissem o sol de outros varais. Tapetes encardidos ficavam de molho por mais tempo. Ás vezes, de tão sujos, exigiam uma boa fervura no fogão à lenha da cozinha.

Dona Luiza nunca havia visto de perto uma máquina de lavar. Naquele bairro simples ninguém ainda havia comprado uma. Parentes de localidades mais nobres, quando em visita, contavam vantagens. Diziam que era só ligar e esperar. Parecia até um milagre. Roupas limpinhas e quase secas dependiam apenas de um sopro de vento para ficar no ponto de passar.

Mas na simplicidade daquela mulher, que nem fogão a gás ainda tinha em casa, o sonho estava muito tempo antes das tomadas de energia elétrica e dos botões de ligar e desligar. Dona Luiza queria ganhar um tanque de cimento para lavar suas roupas.

E eu tento contar agora, anos depois de perdê-la fisicamente: quantas calças, quantas camisas e quantos pares de meias que eu usei na minha infância mamãe suou para lavar? Quantos baldes de água foram necessários carregar? 

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Conto - Correrias, histórias de medo e banho frio

As noites de inverno ainda eram de desafios para as crianças da Rua Juruá. As mães ameaçavam: “Se voltar sujo pra casa vai tomar outro banho com água fria da torneira lá no quintal”.

Intimidava. Mas nem sempre causava efeito. E lá ia a turma na correria caçar qualquer tipo de brincadeira. Se não bastasse a poeira das vias e vielas sem asfalto, a grama molhada do campinho de futebol encardia os chinelos e manchava as roupas.

No pega-pega os botões das camisas pulavam para longe. E depois se veria o que dizer em casa para justificar o descuido, ainda que a chance de sair impune fosse pequena. Puxão de orelha, no mínimo. É assim que os pais consertavam os erros dos filhos naqueles tempos.

Jogava-se conversa fora depois da canseira. Alguns galhos catados ao acaso serviam para uma fogueira, acendida com a caixa de fósforos pega discretamente de alguma cozinha. E a turma se acocorava ao redor para contar casos que os pais ouviram dos avós e que teriam acontecido com parentes de distante passado.

Histórias de dar medo. Da bola de fogo no pasto vindo em direção das pessoas que passavam; do enorme animal que pulava do rio e sentava na garupa das bicicletas quando o trabalhador cruzava a ponte no caminho de volta para casa; da mulher que cantava sem parar todas as noites numa mata ao lado do povoado, e do choro estridente de uma criança lá nas bandas de uma mina d’água que ninguém ousava visitar à noite.

E outras mais, todas com algum tipo de explicação. A corrente no sótão puxada de um lado a outro parece que fora usada contra alguém que perdeu a vida. As versões variavam: o patrão a usou contra um empregado que havia se engraçado com sua filha; ou o empregado teria feito justiça com as próprias mãos após ser maltratado por anos pelo patrão.

Olhos esbugalhados, meninos e meninas cruzavam os braços e se apertavam um no outro. E não era pelo frio. O medo mexia até com os mais corajosos. Subia um frio pela espinha que fazia tremer. Junto com as assombrações se misturavam cobras gigantes que o avô do pai de alguém abateu com um único tiro certeiro. E no descuido e falta de informação, houve quem inventasse ursos enormes quebrando janelas das casas das fazendas em pleno Norte do Paraná.

Nada, porém, mais assustador do que aquilo que todos esperavam acontecer lá pelas nove, nove e meia e até dez da noite, em ocasiões de mais tolerância: o grito dos pais chamando a meninada para se recolher. “Antes trate de pelo menos lavar os pés e as mãos lá no tanque de roupa...”

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Conto - Ladrão de poesias e de pretensões

Tantas canções e nada. Ele as roubava dos autores e delas extraia as letras para presentear pretendidas namoradas com mensagens que só os poetas sabem desenhar no papel.

Algumas acreditavam ser ele o dono da inspiração. Outras sabiam que as rimas e a métrica eram frutos de uma apropriação indevida. Havia as que evitavam conspirar e aceitavam o recado, retribuindo com um aceno: às vezes um encontro na saída da escola ou um passeio na praça do bairro na tarde de domingo.

Possibilidades! No amor adolescente isso tinha peso. E não se esperava muito daqueles primeiros contatos. Quando muito, um leve toque de mão e de sobra a agenda definida para o próximo final de semana. Na despedida, apenas um tchau.

Romântico e cavalheiro, o poeta dos versos emprestados condenava as paixões súbitas. No segundo encontro talvez um beijo e um caminhar mais demorado com as mãos dadas. No terceiro, outros beijos, mais profundos. E assim se mantinha, medido e calculado para o sentimento crescer com o tempo e ganhar consistência.

Algumas possibilidades chegaram ao quarto ou quinto poema, nunca mais do que isso. Houve quem merecesse, entre as pretendidas, autores mais refinados. Assim como algumas não passaram das músicas populares reproduzidas dia e noite nas emissoras de rádio.

Nem todas, porém, queriam uma relação feita de palavras rimadas. Preferiam o fogo do amor queimando nos abraços e nos beijos. Esperavam pela ousadia dele nos afagos, as mãos tocando pontos proibidos num descuido dos olhares alheios. E por falta disso logo se foram, deixando ele livre para ouvir novas canções, extrair as letras e encantar outras pretendidas com versos roubados.

Foram muitas músicas. Vãs tentativas de uma relação romântica num tempo de quentura que exige cada vez mais do físico e muito menos do sentimento. Para umas ele se tornou o grande amigo de confidências e desabafos. Pelo menos isso restou.

E lá vai ele, já com o peso da idade arcando o corpo. Sozinho, ainda ouve canções de outros tempos. E há músicas que trazem junto com as recordações a sensação nele de ter fracassado por não avançar, quando pode, os sinais do coração.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Conto - Palavras cuspidas são armadilhas

Senta e toma fôlego, menina! Bebe uma água. Tem café na garrafa térmica. É de hoje cedo mas ainda está quente. Quer bolacha? Não faça cerimônia. O pão é novo e com uma manteiga vai bem.
E agora me conta, o que anda fazendo da vida? Sumiu, nunca mais apareceu por estes lados. Ficou rica, é? Amigas pobres são esquecidas?

Ah, antes que eu me esqueça: fulano casou com sicrana. Beltrana se separou e está sozinha. Quer dizer, aquilo não é gente de viver sozinha. Ela diz que o marido oficializou com uma amante, com quem teve uma filha. Mas também falam o contrário. O amigo dele, aquele que trabalha na oficina, saiu com a história de que o marido é que decidiu aparar os chifres e se mandou. Que maldade, veja...

E você? Me diz alguma coisa. Pega mais um café. Esqueci de oferecer leite. Tem leite na geladeira, quer que eu esquente? Nossa, nem me dei conta que você sempre gostou de café com leite. Ou melhor, café no leite, verdade? Um pinguinho de café no leite, é assim que você gosta.

Não quer? Mudou de gosto? Ah, entrou numa de dieta. Mas o pãozinho com manteiga desse tamanho que você cortou nem vai pesar na balança. Dá para fechar um buraco no dente se tiver algum. Você está com uns dentes bonitos. Sem querer ser indiscreta: são naturais?

É, a arcada está bem alinhada, branquinhos os dentes. Juro que eu imaginei ser dentadura. Credo, estou brincando. Você sabe que eu gosto de brincar.

Mas fala de você agora. Prometo que não vou cortar. Eu deixo você falar o tanto que quiser. Aliás, a minha irmã fica irritada quando conversa comigo. Ela diz que de cada dez palavras minhas ela consegue apenas responder sim ou não.

Então me diz. Gostando do apartamento novo? Eu fico imaginando: minha amiga sempre gostou de quintal grande e agora tem que viver naquele aperto. Abriu a porta dá de cara com a vizinha da frente. Pisou forte e lá vem reclamação do vizinho de baixo. Aumentou o volume da música e o morador de cima interfona pedindo pra desligar. Mas acostuma, né?

E o bairro? O bairro é bom. Eu acho bonito aquele lugar onde você mora. É limpo, tem muitas árvores. Tem mercado por perto? Onde é que você está fazendo compras? Passei por lá estes dias e vi que tem um açougue na quadra seguinte. E faz assados no domingo. Você já comprou por lá? Ah, que pena. Se você tivesse provado e gostado eu juro que no próximo fim de semana daria uma chegadinha lá.

Então me diga. Fiquei sabendo que está de namorado novo. Olha, cuidado. Morando sozinha num apartamento daquele bairro nobre e de namorado entrando e saindo... se fosse aqui, você sabe. Todo mundo estaria comentando.

Como eu fiquei sabendo? Nem te digo. Outro dia passei por lá na volta da consulta médica. Você não me viu, eu estava do outro lado da rua. Mas eu vi. Você chegou com o rapaz num carro novinho. Muito lindo o carro do seu namorado. Eu sempre disse para o meu marido: tem que saber escolher a cor do carro.

Não, mas, foi só isso. Eu vi você e ele descendo do carro e entrando pelo portão do prédio. Lá só tem uma vaga de garagem? E quando ele decidir dormir no seu apartamento tem que deixar o carro lá fora? Sabe que é um perigo, né, amiga. É nos bairros nobres que os malandros agem. Aqui, coitados, o que eles iam achar?

Mas você ainda não me disse nada de novo. Continua estudando? Trabalha no mesmo lugar? E a sua mãe, como é que está encarando esta história de você morar sozinha? Coitada, sempre preocupada com os filhos. Eu digo sempre pra ela: agora é a sua vez. Passeia, nada de ficar cuidando dos netos. Está na hora de se divertir um pouco.

Não quer mais café? Foi tão rápido. Nem deu tempo para você me contar alguma coisa. Parece que só eu falei. Nossa, será que eu exagerei na conversa. Sabe aquela viúva da terceira casa depois da esquina? Pois é. 
A desaforada me chamou de faladeira. Fiquei sabendo. Faladeira, eu? Está certo que eu falo bastante. Mas faladeira não, concorda? Como? Você fez com a cabeça que não concorda. Até você deu para me censurar. 

Tudo bem, você se enganou, é isso? Não, fica mais um pouco. Está cedo. Fala mais um pouco de você porque senão eu fico com a impressão que só eu falei...  

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Andar por ai ou ser politicamente correto

No dia 18 de novembro de 1928 nasceu o Mickey. O nome de batista dele é Mortimer. O carinha bebia que nem um poço seco e fumava igual chaminé de fogão de lenha durante o preparo do feijão. Um terror para os padrões da sociedade, mas na época entendia-se que ele havia surgido para dar um contraponto ao ser humano seguro e consciente.

Talvez uma mexida. Ou, quem sabe, um tapa na cara. Mas foram os próprios criadores de Mortimer que trabalharam a sua redenção. Ou, diríamos, conciliação com o útil e agradável. Então, por sugestão de Lílian, mulher de Walt Disney, Mortimer ganhou um apelido simpático: Mickey.

Deixou de beber e de fumar. Tornou-se um modelo exemplar de espécime. Mickey é um ratinho, mas no imaginário de quem o lê é um ser protótipo, ideal para nele ser inspirado, sabedor, ciente e consciente, comportado e eterno namorado da Minie.

Poderíamos ousar e dizer que o Mickey, depois de largar a bebida e o cigarro e abandonar o seu nome de batismo, virou uma chatice. Reúna o maior número de gibis dele e confira: raramente o Mickey sorri. E se não sorri, pior ainda quando se exige uma gargalhada.

Mickey, se transposto para a realidade brasileira, seria aquele cara que ainda criança demonstra precocidade em assuntos complicados. Sim, aquele tipo de criança que a gente enxerga como um velho sábio, quando não cria ojeriza devido ao desnível entre a aparência infantil e a cabeça de doutor.

Por isso Mickey namora eternamente Minnie e deixa a impressão de uma relação vencida: é o velhinho namorando a jovem ratinha. Depois, aquela criança precoce será na escola sempre o melhor. Quando começa a trabalhar se destaca e agrada os chefes.

Um dia decide-se pelo namoro comportado. Chega o noivado, que só deve ocorrer quando a casa do futuro casal já estiver comprada, mesmo com financiamento da Caixa. E isso dói...

Depois do noivado o Mickey brasileiro planeja o casamento, que de acordo com a sua previsão deverá ocorrer só depois da esperada promoção no serviço. Já casado, o Mickey brasileiro esconde embaixo da cama toda a sua precoce inteligência e faz filhos: um, dois, três e quatro, se o quinto não escapar para o óvulo da mulher.

Nessa fase o Mickey brasileiro já está pensando na aposentadoria. O carro ele só compra à vista, nada de financiamento. Aliás, a casa da Caixa já está quitada. E ele pensa numa chácara ou num casa de praia. E corre atrás do imóvel muito antes de saber se a Minnie brasileira e os filhinhos tupiniquins querem mesmo a Casa de praia ou a chácara. É ele quem decide.

E chega a aposentadoria. E a vida acaba. Aliás, chata, demorada e sem acontecimentos que mexem, o Mickey brasileiro é igual ao Mickey do Walt Disney: um conformado com a vida como ela é. É muita ousadia dizer que o Mickey é um carinha politicamente correto?

Há quem prefira subverter e mencione o poeta Francisco Otaviano de Almeida Rosa (1825-1889), num trecho muito conhecido: “Quem passou a vida em brancas nuvens / E em plácido repouso adormeceu, / Quem não sentiu o frio da desgraça, / Quem passou pela vida e não sofreu / Foi espectro de homem, não foi homem, / Só passou pela vida, não viveu.”

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Crônica - Em papo de futebol tem que ser doutor

Arroz, feijão, batatinha, bife e futebol. A bola das vez é o Corinthians. E eu, falso torcedor de um time decadente, nem sei mais qual é a cor da sua camisa. Era verde, agora sei lá qual tonalidade colocaram no caldeirão da tinturaria.

O almoço é na base do prato feito. Comida para ser engolida, no máximo, em 15 minutos. Nada a ver com economia. É que o restaurante é pequeno e se o trabalhador demora na mesa chegam outros e ficam rodeando. Às vezes lançam um olhar intimador do tipo: “Tu não se toca não?”

Por isso mesmo é que nesta quinta-feira, dia 17 de novembro de 2011, como apressado e obrigado. Obrigado sem relação com agradecimento. Obrigado a saber que o Corinthians agora é líder do Campeonato Brasileiro com 64 pontos e para conquistar o penta pode até empatar uma das três últimas partidas.

E tenho detalhes: só pode empatar se o Vasco tropeçar lá na frente. Em outro ambiente eu participaria da conversa usando ironia: “E se tropeçar lá na frente perde a chuteira na grande área adversária? Não dá para marcar descalço?”

Fico quieto. Silêncio, porque este assunto o senhor não domina. Conformo-me, porém, pois posso não ter conhecimento de classificação, tabela, desempenho de jogador, erro do juiz e reação da torcida. Justo, eu não assisti o jogo do Corinthians. “Quanto mesmo foi o resultado? Um a zero? E o Corinthians ganhou? Que bom... contra quem mesmo foi o jogo? Ah, Ceará...”

Nessa tentativa de me enturmar a minha batatinha escapou do garfo. Tão dura que estava, pulou do prato e rolou por três mesas. Disfarço e vejo que na queda esbarrou na barra do jeans da mulher do lado e deixou uma mancha de óleo.

Sorte que saio do constrangimento da batata com um assunto mais familiar: Flamengo! É que li de manhã que o clube comemora aniversário neste 17 de novembro. Pelo menos isso eu sei e posso participar com segurança da conversa: 

“Pois é, o time presidido pela Patrícia Amorin comemora aniversário de 116 anos em crise financeira. Nem o contrato com o Ronaldinho está certo. É um time histórico. Surgiu em 1895 com as cores azul e ouro. Só depois mudou para o vermelho e preto. E começou só com o remo. Por isso se chama Clube de Regatas do Flamengo. Futebol ali só foi iniciado em 1912. O primeiro jogo, no campo do América, foi de goleada: dezesseis a dois sobre Mangueira em jogo apitado por Belfort Duarte...”

A essa altura o bife já estava crocante de tão seco e seboso. A última batatinha do prato nem deu para o gosto, porque foi misturado ao arroz puro. É que o feijão veio uma mixaria e dele nem mancha restou. E eu contando a história do Flamengo. Para ninguém...

Pois após criarem certa expectativa em torno da partida da noite, pela Libertadores, concluíram que o Figueirense ganharia e deixaria o Flamengo no chinelo. E foram embora, palitando os dentes. Que desaforo!

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Conto - Nosso brinquedo de papel

O barco feito de folha de caderno eu dispensei. Ficou perdido em algum lugar fora do meu controle. Sei que tinha um texto seu, escrito especialmente para mim. Na verdade eu não o li. Sim, porque o barco que você me deu eu o perdi.

Ou não me dei conta. Ou o barco nem chegou a mim. Talvez você tenha se equivocado por culpa de dúvidas se o barco com a mensagem deveria cumprir o seu trajeto. E ele tenha ficado no seu porto a balançar, deteriorar e naufragar, levando junto o texto e a mensagem que eu não li e nem sei do que trata.

Não minto, se soubesse teria respondido. Ou, delicado nas omissões, teria ao menos acenado que o seu barco chegou, mas sem o recado, por ter enfrentado no percurso tempestades que engoliram a tinta da caneta.

Certo, por enquanto eu perco por ter vacilado. Eu quis ser gentil e fui falso. Inventei uma nau e seu trajeto quando me perguntou sobre o seu barco. Pensei que você se referia a um brinquedo qualquer feito com folha de caderno.

Só despertei sobre o meu erro quando áspera você me acusou de não saber responder a pergunta que me fazia no texto desenhado no casco de papel. Foi uma tentativa de consertar uma situação. Veja que compliquei ainda mais.

Não, o seu barco nunca atracou no meu porto. Ele deve ter ficado no caminho ou nunca você o colocou a navegar. Por isso eu não pude responder. Nunca houve, enfim, uma pergunta. E só agora eu me questiono sobre o que perdi. Quem sabe eu tenha ganhado. Me desculpe.

E você, está pronta para repetir a pergunta? Se não te interessa retomar um assunto de tão longa viagem e trajeto acidentado, ainda assim eu respondo, agora consciente e sem medo de errar: querida, o seu barco não chegou até mim porque você o reteve nas suas águas. Passado tanto tempo, creio que o que eu pudesse te dito na época em que o fabricou ficou à deriva. Convém não ajuntar as letras que forem encontradas no caminho. Será muito difícil transformá-las em frases que possam ser entendidas.

Assim, minha amiga, continuamos, ambos, cafajestes sem soluções para nada que nos diz respeito. Estamos acostumados a isso, concorda?

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Conto - Distância e tempo, tempo e distância

A voz ao telefone é apenas amigável. Respeitosa mas longe, em nada se parece com aquela de tempos atrás. Velhos amigos, porém cansados, apenas se suportam e cumprem com a obrigação de se falarem de vez em quando.

É praticamente uma vida o que sustenta o contato. Um passado agora trocado por intervalos variados, porque ela e ele mantém em suas agendas os telefones um do outro na lista dos favoritos. O ontem foi realmente de mútuas prioridades. E as listas deixaram de ser atualizadas, com ambos mantidos em destaque.

Os telefonemas eram, no mínimo, diários. Nos bons tempos houve ocasiões de muito exagero, com um ligando e o outro respondendo duas ou três vezes de manhã, mais três ou quatro de tarde e quatro ou cinco à noite, no curto período em que não estavam juntos. E as madrugadas eram de valores elevadas nas contas pagas às operadoras de telefonia.

Valia a pena. Ela amava ele e ele amava ela. Assim se juravam e planejavam algo eterno. Loucura que não tem fim e se renova. Sem rotina para evitar desgaste. Como se cada contato fosse o primeiro.

Era desse jeito em tudo. No café da manhã, no almoço, na janta, no lanche da tarde, no passeio no calçadão, nas idas ao shopping, nas compras e na cama. Exceto os costumes teimosos e encralacados, o resto se pautava na fuga do que foi ontem para experimentar de um jeito diferente.

No sexo, até obscenidades passaram a ser consentidas. Da cama passaram ao sofá, do sofá foram para a área de serviço, da área de serviço optaram para a máquina de lavar. Até que desceram para a sala de ginástica do condomínio, onde a bicicleta ergométrica passou a comportar em alguns horários de pouca freqüência do local dois corpos no acento e quatro pés nos pedais.

Não se sabe se o que dava sentido a aquilo era o aparelho ocupado por duas pessoas ou a possibilidade de um flagrante. Ambos admitiam que as duas hipóteses eram válidas. Mas como nada podia ser repetido por mais vezes do que o necessário, havia o consenso da busca do mais interessante: no carro estacionado na garagem do prédio, na rua, na praia, na piscina, no escritório, no elevador e haja mais opções.

Quanto aos demais elementos da relação, há tempos não se tinha mais cabeça para fazer diferente. Café com mais leite, leite com mais café e pronto. Pão esquentado no microondas hoje e aquecido na chapa amanhã. Manteiga ou margarina. Suco de laranja ou melão. Por esta rua ou por outra. No mercado antes ou depois.

E foi crescendo um vazio. Não havia como criar nada de novo. No começo ambos negavam essa possibilidade, embora assumissem um comodismo. Para compensar, gastavam o estoque do inusitado no relacionamento físico. Com a janela aberta e a luz acessa, na porta do apartamento, na escadaria, com o carro em movimento e nada mais.

Decidiram evitar outras ousadias e o vazio foi mais sentido. O que acontecia várias vezes ao dia passou a ser diário. Não durou muito e virou semanal. E depois mensal, bimensal, trimestral e já faz tempo que eles apenas se conversam por telefone. Sem euforia e declarações forte, ambos se toleram como bons amigos. É o que restou.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Conto - Grades, correntes e cadeados fechados

Lícia dispensou o café hoje cedo. Preferiu um suco natural de laranja colocado no ponto com duas pedras de gelo. Na pressa, esvaziou o copo com quatro goles enquanto ajeitava as tiras das sandálias e acertava as alças do vestido por cima do silicone do sutiã. Os cabelos foram presos com uma tiara de forma a não caírem sobre as orelhas.

Arrumou-se com simplicidade. E sem querer destacou a sensualidade escondida. O vestido claro descia na medida até a cintura, sem mangas e com decote cavado, mostrando uma pele macia e clara. Depois abria-se em roda até abaixo dos joelhos, com caída perfeita graças ao tecido macio e ao desenho e corte adequados para a medida: nem gorda e nem magra, Lícia estava no peso e não se descuidava da balança.

Nos pés, quase nada. As unhas, em vermelho, é que davam cor, deixando para o segundo plano o trançado duplo de cor clara e pouco enfeite. Sim, uma discrição surpreendente para uma mulher acostumada a carregar no tom da maquiagem. No rosto, só o baton. Nos cantos dos olhos os leves sucos das rugas não foram disfarçados. E reforçaram a expressão serena e altiva de uma pessoa disposta a enfrentar o dia com mudanças importantes.

Na alimentação, o suco no lugar do café. Sem pão e sem manteiga. Nada de açúcar ou adoçante. Nas roupas, o vestido em vez do jeans apertado e a blusa justa, complementadas com os calçados de salto e o perfil prepotente da fêmea agressiva. Na maquiagem, o leve baton. Só as unhas mantiveram o vermelho forte nas mãos e nos pés. Mas cabiam no conjunto e até aliviaram a alvura de todo o resto.

Na condução, Lícia trocou a corona com o marido pelo percurso a pé até o trabalho. Saiu vinte minutos mais cedo e caminhou, aproveitando a solidão para pensar o que mais precisava alterar no seu projeto de vida. E ali estava a principal etapa a ser refeita e resolvida.

Lícia sentia-se presa a um casamento que no começo nada mais foi do que sexo. Depois virou parceria e agora chegava à conveniência. Uma prisão sem correntes e nem grades que prendia ela a ele e ele a ela. A solução parecia fácil. Talvez ele esperasse por um posicionamento dela. E ela pedia a si própria que a manifestação partisse dele.

Mas nada se fazia de parte ou outra. E ambos já se haviam dado chances para o início das conversas. Mas ele nem telefonou a ela para perguntar porque havia dispensado a carona de manhã. E ela nem precisou retornar ligação para avisar que havia preferido almoçar com os colegas do trabalho e ele devia esquentar a sobra da janta. E assim foi por longas madrugadas de insônias, Lícia e ele vivendo juntos. Apenas isso, eternizado e comendo a vida por dentro.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Conto - Um celular no vibrador engana e muito

E ela ria. Era um riso misturado: timidez e contentamento. Havia uma causa, não era à toa. E a causa era dela. Exclusivamente individual, egoísticamente indivisível. Sem possibilidade de um aluguel temporário ou empréstimo com dividendos consideráveis. Nada disso. Dela, somente dela.

Ela ia de ônibus para algum lugar. Bancos ocupados, corredores apertados e ela, de pé, esticando os braços para segurar lá em cima. Nas costas uma grande mochila cheia de algumas coisas: babador, travesseirinho, tapa-olho, esmalte, lixa, acetona, espelho com o emblema do São Paulo, reserva de absorvente feminino, pão com mortadela, banana e chicletes. Um peso, coitada!

Presa no pescoço por uma tira, o aparelho de telefone celular colocado no vibrador balançava na altura do umbigo. Quanto mais curva o ônibus fazia, mais o celular batia no corpo após virar de um lado a outro. Nas paradas, mais balanço e mais o aparelho se mexia.

Atrás um fulano bem ajeitado, novinho, o tipo pretendido. E o ônibus fazendo curva e balançando. Não só o celular. Também o corpo dela. E, quem sabe, o dele também. Por que não? E o ônibus parando, arrancando, dobrando esquinas e indo. Ela rindo, o telefone balançando e batendo no umbigo, os corpos se encostando.

Ela pendurada com as mãos esticadas no pegador lá do teto. Ele atrás fazendo de conta estar indiferente e alheio ao que acontecia com a moça da frente. E vai o motorista apertar o pé no acelerador, fazendo os corpos jogarem para trás. E pisa no freio, levando os corpos para frente. E faz curva, jogando todos para os lados. E as mãos esticadas, os ombros doendo com o peso da mochila, o pão com a mortadela cheirando e a banana amassando.

Ela rindo. Um riso tímido e contente. E quem tivesse a capacidade de decifrar aquela expressão diria que ela se achava satisfeita e realizada por um motivo muito especial. Era realmente uma carinha de felicidade imensa.
E ela rindo, até que percebeu que as cócegas que sentia na barriga descoberta eram causadas pelo vibrador do celular, que havia sido acionado mais de dez vezes naquele curto trajeto. 

Então ela não riu mais. Não era a mão daquele rapaz que a tocava após cada curva, cada parada, cada esquina dobrada e cada saída brusca dos pontos de ônibus.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Conto - Só ela tem a cura para sua dor profunda

Dor esquisita aquela que acomete Narinha. Tira-lhe a voz e esconde o seu sorriso. Coloca-a indisposta e meia que largada, quase um zumbi andando sem rumo. Ela dispensou a ajuda de médicos. Disse que daquela dor ela se cura. Leva tempo, admitiu ter conhecimento. Mas assumiu por si própria buscar a cicatrização que, sabe-se lá onde vai deixar marca.

Narinha comentou certa vez que sua dor é profunda. Que vem lá de dentro e por não ser de ferida exposta não alivia com uma boa pomada. Também difere da dor muscular. Então nem a massagem serviria para alguma coisa. Nada tem a ver com os ossos. Dispensa-se, portanto, medicamentos e exercícios.
Queixa-se que dói muito mais que uma queimadura. Que arde no coração. Sufoca o peito, cria angústia e vira para uma agonia estranha. Que é uma dor constante e não vem de pontadas que torturam o físico e atrapalham o raciocínio.

A dor que Narinha sente e descreve faz pensar. E quanto mais se pensa mais dói. E se dói torna impossível parar de pensar. Estranho isso! Ela confidencia que parece um vício: dói e se pensa na causa da dor; e se tenta manter a cabeça vaga, mas elas voltam, a dor e o pensamento, uma alimentando a outra.

Recomendaram uma terapia, vai que se tenda para o prazer. E se for assim a dor vira uma nicotina e o pensamento se transforma em cevada, amarelando as pontas dos dedos, aumentando a cintura, destacando as estrias e, realmente, tornando Narinha dependente de um sofrimento.

É quando ela foge e substima o que sente. Avisa que é uma dor de cotovelo, coisa de amor não correspondido, e que uma cotoveleira comprada em qualquer farmácia se não cura de vez pelo menos alivia. Então se percebe que Narinha quer manter a dor e o pensamento que a sustentam. Para dar tempo.

Só ela sabe que a cura depende de uma cirurgia na alma para consertar um desamor do passado ou extirpá-lo de vez com um transplante que coloque um novo amor lá dentro.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Conto - Jogo de aflições e de destemperos

O campo é enorme para o futebol do menino. As traves tem redes. O gramado é um tapete. A bola tem brilho e cheiro de novo. A camisa pesa. Parece cair pelos ombros raspando a pele. O pano do calção dança conforme se anda. Da cintura descem as pontas do cadarço que o mantém no corpo do menino. As meias, sem as dobras, cobririam as coxas. E as chuteiras incomodam. Pesam, seguram a articulação dos pés. As travas fincam mais do que deviam. O calcanhar pega e atiça o calo.

O time entra em fila indiana. O menino está lá no meio e segue o da frente automaticamente. Não fosse assim imagina que teria de ser empurrado. O técnico grita ordem na fila e mais rápido. É para correr e não andar. Um atrás do outro lá para o meio do campo. Sem bagunçar.

E ali naquela risca imaginária é só seguir o capitão, não tem como fazer errado. Quando todo mundo estiver parado cumprimenta a torcida. Juntos. Ninguém cumprimenta antes e nem depois. Vira para o outro lado e cumprimenta a torcida do outro lado. Também juntos.

E toma aqui a bola, sobra tempo para um aquecimento. Dá uma corridinha, acostuma os pés com a grama. Olha que essa bola está no calibre oficial. Não é aquela mambembe e amarrada. Ela foge dos pés se não tiver domínio.

Treina uns passes. Mande de bico para o gol. Recebe e ajeita, brinca com ela, não se intimida. Está com medo da torcida, menino? Agora é jogo, vamos lá, faz de conta que ela não existe. E vê se não titubeia. Aqui se der bobeira está morto para o jogo. Isso é disputa, vale ponto, se está com medo fale agora e nem começa a partida.

Você vai descer pela esquerda, tem que criar um corredor. E se vier o adversário olhe sempre para os lados, procura alguém para passar e receber lá na frente. Não tenta enfeitar e dar uma de bom. Isso aqui não é brincadeira. Divide com os companheiros, não seja egoísta.

Lá na frente, está vendo aquele de cabelo longo? Ele é mais alto que você. Mas tem que dar um jeito nele, na arte ou no esbarrão. Ele é grande mas você é melhor. Arte ou esbarrão tem que te dar vantagem. Se livra dele sem medo e lança. É um chutão sem frescura lá no meio, você sabe fazer isso. Se esqueceu mando logo para casa. Vai lá na arquibancada e assiste o resto do jogo com os pais. Comigo é assim.

E deu o apito inicial. A bola chegou a ele rápido. O menino desceu pela esquerda. A camisa desceu nos ombros. O cadarço do calção parecia solto. A chuteira ardeu no calo. E lá na frente o gramado pareceu a linha do horizonte. Longe, sem fim. A bola escorou no pé do primeiro adversário, que deu um gingado, enfeitou com a direita e passou correndo mais do que o menino podia. E o jogo acabou para ele na tentativa do primeiro ataque. Pesou nele a responsabilidade e isso o técnico não havia previsto.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Conto - Mais dessas coisas de ligações perigosas

O problema é que Adamastor era avesso a essas coisas de tecnologia e ganhou de Laurita um aparelho de telefone celular com tudo o que não se usa e só atrapalha quem precisa apenas do básico para se comunicar: atender e ligar. O de antes nem FM tinha. Era o botão vermelho para ligar e desligar, o verde para atender e os números para discar. E aquelas letrinhas junto com os números Adamastor nem se importava para que serviam.

Foi no segundo aniversário de namoro que Laurita presenteou o amante com aquele negocião que mais parecia um notebook. E cadê os números? Como se faz para ligar? Precisou Laurita dar uma aula e mostrar que o teclado qwerty era retrátil. Bastava uma leve pressão na base e surgiam as letras em branco. Mas cadê os números? Bem ali, em preto, junto com algumas das letras.

Em casa Adamastor informou à esposa e os filhos que havia tirado o novo celular numa rifa. Sabe, ação entre amigos, daquelas que nem se espera retorno e só se compra para ajudar um colega ou outro em dificuldade. 

E de repente sai a sorte. A rifa, na versão passada à família, custou apenas cinco reais. E o aparelho, segundo levantamento que a filha fez na internet, custava dez parcelas de noventa e sete e setenta e oito.
Foi por isso que Nilzete, esposa de Adamastor, queixosa e melosa reclamou ser pé fria até nas rifinhas de um real para sorteio de panetone. E Adamastor completou que só ganha quem arrisca. Que cara de pau! Ah, se Nilzete soubesse qual era o risco...

O novo celular tinha GPS, Wi-Fi, 3G, Bluetooth, porta-treco para cerveja, caniveteira elétrica, palito de dente, fio dental, cotonete, pinça para tirar pelo das orelhas, barbeador e só não funcionava tudo isso porque ficava nas mãos de um brucutu da tecnologia.

E daí começaram os problemas. Laurita gostova de arriscar e de colocar o amante em risco. Costumava telefonar lá pela meia noite e meia, sabendo que naquele horário Adamastor fazia o seu esforço para ser um homem presente na vida conjugal. Era difícil, mas ele comparecia sim. Pelo menos uma vez por semana acontecia, depois de Adamastor se inspirar em realidades lá de fora para chegar ao ponto e gritar, estou presente.

Para confundir Laurita, Adamastor variava os dias. Se na semana passada foi quinta, nesta jamais seria na sexta e muito menos na quarta. A sequência fugia estrategicamente do crescente e do decrescente. Então de quinta caia para o domingo, do domingo para sexta, da sexta para segunda. Assim havia menos possibilidade de numa ligação de Laurita quando a coisa estava em andamento.

Porque se assim acontecesse Laurita perceberia pelos vacilos na voz do Adamastor. E ela não pouparia. Xingaria, ameaçaria rompimento e viria com insinuações, do tipo: e se sua esposa fica sabendo de mim, heim?

E foi justamente na sexta que Laurita ligou lá pela uma da madrugada. Adamastor já estava de costas para Nilzete, após explicar que naquele dia não daria, o trabalho havia acabado com qualquer ânimo. Depois das insinuações Laurita apelou para o meloso, com o repetido eu te amo, o cansativo preciso tanto de alguém para fazer massagem, o enjoativo recurso de tentar causar ciúme: o vizinho estava me espiando pela janela e ele me viu nua...

Nervoso, Adamastor, no escuro, fazendo de conta que conversava com um colega infeliz com a troca de seção, tacou o dedo numa tecla e ativou o viva-voz justo na hora em que Laurita se queixava que enquanto ela dormia sozinha Adamastor tinha a companhia da esposa, aquela gorda de cara enrugada e cabelo de bruxa. Nilzete ouviu muito bem quando Laurita, sem dó, desferiu: ela parece um barrilzinho, acho que por isso você não larga dela...

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Conto - As ligações denunciam casos proibidos

Sorrateiros. É assim que Adalgisa e Antero se obrigam a conviver. Ajuntam cotidianos de restrições e cuidados e nem sempre conseguem momentos a sós. E quando consolidam parte do tempo é gasto em cobranças de um e outro, briguinhas por ciúmes e provocações. O resto é de sussurros entremeados por palavrões.

Sim, é assim que se completam: cobranças, briguinhas, provocações, sussurros e palavras desenfreadas no tom e no conteúdo. Não há, para ambos, outra receita para o prazer. Há um consentimento velado, quase um código de postura: o que não se faz em casa é permitido aqui.

Mesmo ao telefone as conversas entre ambos são comedidas. Frases cortadas ao meio e mensagens enigmáticas até chegam a causar suspeita. Certas vezes Adalgisa conversa com Antero fazendo de conta que uma amiga está no outro lado da linha. E Antero, no celular, é chamado de Maria, Raquel, Leila ou qualquer outro nome de mulher. Isso incomoda, mas ele tem de aceitar. Pelo menos tem o consolo de poder ouvir de Adalgisa o slogan dos amantes: “Eu te amo, minha amiga! Abração e muitos beijos!”

Pior para Antero. Ele precisa caprichar nos assuntos de futebol ou dos negócios para falar com Adalgisa e ela odeia os dois temas. Exceto quando ele improvisa bem, como nas supostas ironias dos times que perdem ou ganham: “Se o verdão ganhar eu passo a mão na tua bunda durante uma tarde inteira...”

Assim não se cria desconfiança, pois nas conversas de futebol as besteiras são permitidas em praticamente todos os ambientes. É uma espécie de linguagem admitida que comporta, sem discriminação, inclusive o uso de apelos sexuais para reduzir o provocado. Dizer em circunstância normal que vai apalpar a bunda de outro homem é suspeito. Mas se colocar futebol no meio está liberado. É pura provocação. Assim Antero pensava.

Adalgisa era casada com Lindomar. Antero estava amasiado oficialmente com Maria da Conceição. E foi que um dia Adalgisa flagrou Lindomar com o celular colado no ouvido, falando baixo, quase aos sussurros. Quando Adalgisa se aproximou Lindomar aumentou o tom da voz e começou a criticar o governo por causa da proposta de aumentar as taxas do Detran.

No meio dos xingamentos quem estava do outro lado da linha era um tal de Renato. Conversa vem, indignação vai e, por descuido, na despedida Lindomar se desfaz de Renato, que na verdade era Laura, com um abraço especial e um beijo na boca.

Antero também descobriu que esses namoros secretos por telefone dão encrenca. Ele percebeu quando Maria da Conceição, num contato com uma pessoa que ela chamava de Rita, deu aquele suspiro de sensação estranha e virou os olhinhos quando disse tchau e mandou um beijo.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Conto - Esperteza, sorte e muito sucesso na vida

Eu vou falar de Antonio, cabra esperto e de sorte que veio da roça ainda moleque e se fez na construção civil lá de baixo. Começou como ajudante de ajudante. Depois virou ajudante. E agora tem ajudante.

É trabalho, costuma dizer aos outros que insinuam nele um certo apego aos colegas que são chefes. Servil, Antonio tem dessas coisas de bondade. Vai lá buscar um maço de cigarros e ele sai correndo, na frente de qualquer um. Pé aqui e outro ali e Antonio está de volta com a encomenda na mão.

Manda ver uma água gelada senão a peãozada não agüenta neste calor e Antonio já vai lá adianta, com o garrafão térmico na mão, bater na porta da vizinha do canteiro de obras para pedir a gentileza. E nunca houve quem não o atendesse.

Segura o portão senão esse troço cai nas costas do eletricista que está mexendo no motor do acionamento automático e surge, não se sabe de que canto, Antonio escorando sozinho aquele peso. Muito prestativo o menino.

Ele pretende chegar a mestre de obra, mas por enquanto vai se contentando como pedreiro. E não é por incapacidade. Antonio manja do assunto. Não fosse por ele o piso do quintal da obra recentemente entregue pela empreiteira ia ficar sem caída, ajuntando água nos cantos. E a laje lá da porteira daquele sobradão? Feita na massa pura quase que foi entregue sem as caixas para instalar a luz. Se Antonio não percebe o instalador é que ia ter motivo para criticar a empreiteira.

Acabamento. Sim, essa era, na verdade, a especialidade de Antonio. Um retoque mal feito, um quebradinho no canto do piso recém-assentado e assim por diante. E ninguém tinha motivos para por defeito no que ele fazia. Antonio não deixava rebarba.

Um dia veio a sorte grande naquele canteiro de obras, mas o único contemplado foi Antonio. Deu lá uns vinte e poucos mil reais da quadra da mega e o dono da empreiteira até se assanhou com a possibilidade de uma sociedade.

Mas Antonio, eita cabra de visão, pretendia mais. Quebrou cabeça pensando em que aplicar o dinheiro, que ajuntado às economias dava um valor interessante. No sarro disseram a ele montar uma indústria da multa, mas ele não é bobo. Sabe que isso é das prefeituras, dos estados e das autoridades federais, que contratam empresas de fiéis parceiros para tocar o negócio e repartir os lucros.

Fiéis, esta é a palavra certa. Então Antonio planejou o útil ao agradável e anunciou que ia montar uma igreja. Bateu cabeça três noites e quatro dias pensando num nome: dízimo diga quem és? Até que não era mal, mas ainda fraco em apelo.

E veio nesse período gente pedindo emprestado. Antonio não nega. Mas cobra alto pelo empréstimo desde que tenha uma boa garantia em troca. Já se passaram oito meses desde que o prêmio saiu e Antonio já está com dois carros na garagem. A conta bancária dobrou. E Antonio, agora, já pensa em ser político ao mesmo tempo em que comanda a turma de peões da construção na empreiteira que tomou de um ex-proprietário endividado. É danado o menino.