sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Conto - Grades, correntes e cadeados fechados

Lícia dispensou o café hoje cedo. Preferiu um suco natural de laranja colocado no ponto com duas pedras de gelo. Na pressa, esvaziou o copo com quatro goles enquanto ajeitava as tiras das sandálias e acertava as alças do vestido por cima do silicone do sutiã. Os cabelos foram presos com uma tiara de forma a não caírem sobre as orelhas.

Arrumou-se com simplicidade. E sem querer destacou a sensualidade escondida. O vestido claro descia na medida até a cintura, sem mangas e com decote cavado, mostrando uma pele macia e clara. Depois abria-se em roda até abaixo dos joelhos, com caída perfeita graças ao tecido macio e ao desenho e corte adequados para a medida: nem gorda e nem magra, Lícia estava no peso e não se descuidava da balança.

Nos pés, quase nada. As unhas, em vermelho, é que davam cor, deixando para o segundo plano o trançado duplo de cor clara e pouco enfeite. Sim, uma discrição surpreendente para uma mulher acostumada a carregar no tom da maquiagem. No rosto, só o baton. Nos cantos dos olhos os leves sucos das rugas não foram disfarçados. E reforçaram a expressão serena e altiva de uma pessoa disposta a enfrentar o dia com mudanças importantes.

Na alimentação, o suco no lugar do café. Sem pão e sem manteiga. Nada de açúcar ou adoçante. Nas roupas, o vestido em vez do jeans apertado e a blusa justa, complementadas com os calçados de salto e o perfil prepotente da fêmea agressiva. Na maquiagem, o leve baton. Só as unhas mantiveram o vermelho forte nas mãos e nos pés. Mas cabiam no conjunto e até aliviaram a alvura de todo o resto.

Na condução, Lícia trocou a corona com o marido pelo percurso a pé até o trabalho. Saiu vinte minutos mais cedo e caminhou, aproveitando a solidão para pensar o que mais precisava alterar no seu projeto de vida. E ali estava a principal etapa a ser refeita e resolvida.

Lícia sentia-se presa a um casamento que no começo nada mais foi do que sexo. Depois virou parceria e agora chegava à conveniência. Uma prisão sem correntes e nem grades que prendia ela a ele e ele a ela. A solução parecia fácil. Talvez ele esperasse por um posicionamento dela. E ela pedia a si própria que a manifestação partisse dele.

Mas nada se fazia de parte ou outra. E ambos já se haviam dado chances para o início das conversas. Mas ele nem telefonou a ela para perguntar porque havia dispensado a carona de manhã. E ela nem precisou retornar ligação para avisar que havia preferido almoçar com os colegas do trabalho e ele devia esquentar a sobra da janta. E assim foi por longas madrugadas de insônias, Lícia e ele vivendo juntos. Apenas isso, eternizado e comendo a vida por dentro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

PARTICIPE: