segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Conto - Palavras cuspidas são armadilhas

Senta e toma fôlego, menina! Bebe uma água. Tem café na garrafa térmica. É de hoje cedo mas ainda está quente. Quer bolacha? Não faça cerimônia. O pão é novo e com uma manteiga vai bem.
E agora me conta, o que anda fazendo da vida? Sumiu, nunca mais apareceu por estes lados. Ficou rica, é? Amigas pobres são esquecidas?

Ah, antes que eu me esqueça: fulano casou com sicrana. Beltrana se separou e está sozinha. Quer dizer, aquilo não é gente de viver sozinha. Ela diz que o marido oficializou com uma amante, com quem teve uma filha. Mas também falam o contrário. O amigo dele, aquele que trabalha na oficina, saiu com a história de que o marido é que decidiu aparar os chifres e se mandou. Que maldade, veja...

E você? Me diz alguma coisa. Pega mais um café. Esqueci de oferecer leite. Tem leite na geladeira, quer que eu esquente? Nossa, nem me dei conta que você sempre gostou de café com leite. Ou melhor, café no leite, verdade? Um pinguinho de café no leite, é assim que você gosta.

Não quer? Mudou de gosto? Ah, entrou numa de dieta. Mas o pãozinho com manteiga desse tamanho que você cortou nem vai pesar na balança. Dá para fechar um buraco no dente se tiver algum. Você está com uns dentes bonitos. Sem querer ser indiscreta: são naturais?

É, a arcada está bem alinhada, branquinhos os dentes. Juro que eu imaginei ser dentadura. Credo, estou brincando. Você sabe que eu gosto de brincar.

Mas fala de você agora. Prometo que não vou cortar. Eu deixo você falar o tanto que quiser. Aliás, a minha irmã fica irritada quando conversa comigo. Ela diz que de cada dez palavras minhas ela consegue apenas responder sim ou não.

Então me diz. Gostando do apartamento novo? Eu fico imaginando: minha amiga sempre gostou de quintal grande e agora tem que viver naquele aperto. Abriu a porta dá de cara com a vizinha da frente. Pisou forte e lá vem reclamação do vizinho de baixo. Aumentou o volume da música e o morador de cima interfona pedindo pra desligar. Mas acostuma, né?

E o bairro? O bairro é bom. Eu acho bonito aquele lugar onde você mora. É limpo, tem muitas árvores. Tem mercado por perto? Onde é que você está fazendo compras? Passei por lá estes dias e vi que tem um açougue na quadra seguinte. E faz assados no domingo. Você já comprou por lá? Ah, que pena. Se você tivesse provado e gostado eu juro que no próximo fim de semana daria uma chegadinha lá.

Então me diga. Fiquei sabendo que está de namorado novo. Olha, cuidado. Morando sozinha num apartamento daquele bairro nobre e de namorado entrando e saindo... se fosse aqui, você sabe. Todo mundo estaria comentando.

Como eu fiquei sabendo? Nem te digo. Outro dia passei por lá na volta da consulta médica. Você não me viu, eu estava do outro lado da rua. Mas eu vi. Você chegou com o rapaz num carro novinho. Muito lindo o carro do seu namorado. Eu sempre disse para o meu marido: tem que saber escolher a cor do carro.

Não, mas, foi só isso. Eu vi você e ele descendo do carro e entrando pelo portão do prédio. Lá só tem uma vaga de garagem? E quando ele decidir dormir no seu apartamento tem que deixar o carro lá fora? Sabe que é um perigo, né, amiga. É nos bairros nobres que os malandros agem. Aqui, coitados, o que eles iam achar?

Mas você ainda não me disse nada de novo. Continua estudando? Trabalha no mesmo lugar? E a sua mãe, como é que está encarando esta história de você morar sozinha? Coitada, sempre preocupada com os filhos. Eu digo sempre pra ela: agora é a sua vez. Passeia, nada de ficar cuidando dos netos. Está na hora de se divertir um pouco.

Não quer mais café? Foi tão rápido. Nem deu tempo para você me contar alguma coisa. Parece que só eu falei. Nossa, será que eu exagerei na conversa. Sabe aquela viúva da terceira casa depois da esquina? Pois é. 
A desaforada me chamou de faladeira. Fiquei sabendo. Faladeira, eu? Está certo que eu falo bastante. Mas faladeira não, concorda? Como? Você fez com a cabeça que não concorda. Até você deu para me censurar. 

Tudo bem, você se enganou, é isso? Não, fica mais um pouco. Está cedo. Fala mais um pouco de você porque senão eu fico com a impressão que só eu falei...  

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