segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Conto - Cadeiras sem parafusos é o caos da vida

A grama está alta e foge de Marilda a disposição de usar os finais destas tardes de sol para colocar o quintal em dia. As podas foram abandonadas faz semanas e no jardim as plantas reclamam atenção. A roseira curva seus galhos. Enfileiradas sobre um suporte de madeira, lá no canto onde a sombra da tarde alivia o calor, os vasos de orquídeas negam beleza. Além do verde manchada de marrom pela poeira, nenhuma cor.

Cuidar do jardim e ajeitar o quintal tem sido tarefas esquecidas. Marilda nem consegue acertar o lado de dentro da casa. A área de serviços virou um depósito. Tudo o que é descartado da sala e dos quartos ganha um espaço ali. Cadeiras que dependem de um aperto do parafuso ficam encostadas.

Até o velho computador sente os efeitos do sol ou da chuva preso a uma estante perto da janela. E ele já deu tanto para Marilda! Aliado na produção de textos poéticos, coragem para terminar as monografias, solidariedade nos momentos de solidão com os acessos às redes sociais e músicas, muitas! Foi por anos um abrir e fechar constante do drive para tocar músicas até o ponto do aparelho se esgotar, desgastado, e se dar ao direito de falhar em algumas ocasiões.

Jardim, quintal e casa, enfim, esperam providências. Nem a lâmpada queimada do abajur foi trocada. A cortida está suja e manchada. Em outros tempos Marilda providenciaria lavagem imediata. E se o resultado da faxina deixasse a desejar, ela acharia tempo para consertar o que estava errado, refazer o que poderia ser melhorado, limpar, cozinhar, passar, almoçar, jantar, tirar um tempo para se esticar no sofá e viver do jeito que ela vivia.

Era uma mistura de coisas feitas em atividades diversas. Tudo ao mesmo tempo. Marilda rascunhava a conclusão de um trabalho importante da pós-graduação no mesmo momento em que esquentava o leite do café da tarde. E aproveitava a caminhada da sala até a cozinha para aguar uma planta, catar um cisco, ajeitar a capa da poltrona, descascar uma fruta e pensar no tema de uma poesia para ser escrita à noite.

A mudança foi radical e nem foi por vontade própria. Na correria de antes Marilda até reservava tempo para os sentimentos mais íntimos. Ela tinha uma paixão, Alfredo, que no auge da relação até inspirou poemas. Depois, quando Marilda ainda jurava amor, ela própria percebeu que as rimas escapavam e a métrica desengonçava, em versos frios e sem nexo, com rupturas e palavras sem força. E os poemas viraram prosas.

Ali começaram os desacertos que, a princípio, nem ela imaginava enfrentar. A presença de Alfredo na casa passou a ser indesejada. Mas por falta de uma conversa franca ele passou a ser mais assíduo. E de tão solícito na vida dela Alfredo passou a ser um inconveniente.

Marilda, desnorteada, reagiu ao contrário. Para camuflar a ojeriza pelo rapaz ela fugiu para as atividades científicas. Produz atualmente uma elogiada monografia sobre biologia, área que ela sempre amou e dela jura nunca abrir mão. E esqueça a casa, o quintal, o jardim, as cadeiras para parafusar, o almoço, a janta e o leite esquentando numa caneca sem brilho.

E Alfredo vai ficando, mais por vingança do que por não ter para onde ir. Parece que ele sabe que Marilda está matando a vida que era dela e do seu jeito, com a sua presença cada vez mais constante naquele ambiente desacertado.  

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