sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Conto - O que não foi dito


Deixei mensagem no presente que te dei. Não foi por escrito, foi na intenção de acertar no tamanho da sua sensibilidade e ser lido. E quem sabe, correspondido.

A linguagem dos sentimentos é grafada assim. Dispensa letras e acentos. Elimina as pontuações. E quando se usa papel e lápis é apenas para rascunhar um coração.

Ainda assim os traços devem ser sutís. O desenho confunde quando rascunhado com sombreamento direto. É preciso trabalhar a mensagem no abstrato de forma que a interpretação confira com a intenção, mesmo diante de alternativas e possibilidades.

Penso que acertei no passo dado. Analisei seu rosto e a sua expressão, seu jeito de ser e as suas palavras, o que você veste e como você anda, o que ouve e o que seu olhos manifestam querer.

Foi fácil porque me entreguei. Disso tudo eu soube, inclusive, que seu coração quer algo de mim. Só não posso avaliar ainda se é muito ou pouco o que ele pede. Se posso, já, transformar a pretensão em ato.

Se pareço inseguro tenho motivos para isso. Nem pudemos conversar com mais tempo sobre o que te dei. Você gostou? Entendeu o que eu te disse com o meu ato? E tenho que confirma ainda se fui pleno nesse recado.

Corre o risco de eu ter sido vago. Talvez você precise de certezas que eu, propositalmente, omiti. Achei, no momento, desnecessário. Ou temi ser objetivo. Até eu me confundo após refazer as etapas do que andei.

Sim, de qualquer forma foi uma ação.  Saí do ponto de partida e caminhei. Claro, no máximo eu ousei ao declarar que gosto de você. Mas gostar é tão abrangente e quem merece tal declaração raramente se põe a passar das palavras.

É comum ouvir e deixar diluir. Assim o que foi dito não chega ao coração. Verdade, se o conteúdo se instala as consequências, às vezes, são trabalhosas. Surge a necessidade de comprometimento, de relógios sincronizados e pensamentos parecidos, se não iguais.

Sentimentos são coisas complicadas da vida. Sei disso. Eu mesmo, que ousei mandar mensagem, tenho dúvidas se aguardo resposta. Talvez seja melhor manter assim, na eterna e interessante pretensão.

É certo que, desta forma, sempre verei o teu rosto sorrindo para mim em troca de um mistério que te entreguei com um presente que sei, te fez feliz. E eu posso dizer para mim mesmo, a cada manifestação sua: Ela é linda! 


quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Crônica - O panetone de cada um


Entre a vertigem e o êxtase Luciana prefere os pés no chão.  Escolha certa para quem vive no aperto e na correria e depende da consciência plena para dar conta dos compromissos.  Inclusive os financeiros, estes que mais incomodam e tiram o sono.

O Natal está aí, escancarado nas portas das lojas em decorações vermelhas e verdes e apelativo nos supermercados em panetones que variam de três e noventa e nove a vinte e poucos reais. De repente Luciana se toca que até o panetone faz distinção entre pobres, remediados, mais ou menos ricos, emergentes e milionários.

Pouca diferença há no sabor do mais caro em relação ao que tem preço de promoção. A marca e a embalagem é que fazem um ser possível a todos e outros serem acessíveis para menos. Panetones, aliás, são presentes de Natal que uns e outros recebem.

A prática diz a Luciana que se uma amiga der a ela um panetone junto com um cartão de boas festas, significa que a pessoa que presenteou a coloca num nível inferior de amizade. É mais ou menos amiga.
Não que a pretensão fosse de um presente caro. Uma rosa, às vezes, tem muito mais valor sentimental. E as flores roubadas de canteiros alheios, estas são muito valiosas. Exigiram, no mínimo, determinação e ousadia para serem pegas.

É daí que Luciana, há três anos, decidiu que não mais presenteia com panetones, vinhos e espumantes de quatro e noventa e nove a garrafa. Certa vez ela flagrou no banheiro da empresa uma colega se queixando de ter recebido um vinho que não servia nem para fazer sagu. Imagina se fizesse um ponche com aquilo.

Então Luciana fincou pé. Desde então deixou de presentear por presentear. Para algumas pessoas nem cartão envia, pois quem recebe sente-se na obrigação de retribuir. Ou, na definição exata, retribui por obrigação.

Luciana, agora, só presenteia quem ela acha que merece ser presenteada. Entram os dois filhos, o marido, a mãe viúva, duas das cinco irmãs, uma cunhada e três vizinhas. Ninguém mais. Ainda assim a lista é grande.
Com um holerite de um salário mínimo e meio, Luciana reserva metade do décimo-terceiro para os presentes. Ela quase entra naquela pesquisa marota da entidade que representa os comerciantes de Londrina, cuja conclusão é de que a maioria dos consumidores pretende gastar cerca de quatrocentos reais em presentes.

Quase. Falta um tantinho que Luciana não pode transferir da conta de compromissos assumidos para a conta de presentes. Desde o início de novembro ela pesquisa as opções e os gostos de cada presenteado.

Disso se tem que fora os meninos, cujas pretensões são muito acima da capacidade da mãe, as outras pessoas que receberem presentes de Luciana desembrulharão seus pacotes com muita felicidade. Mesmo que os objetos embrulhados tenham custado muito pouco, elas saberão que alguém comprou algo pensando na alegria de quem recebe. O panetone pode ser barato e tem conteúdo saboroso. Mas da forma que o comércio e as pessoas o usa, torna-se apenas uma simples lembrança para não passar em branco.

Luciana sabe bem disso. Então que cada um compre o seu próprio panetone e espumante. Ela vai presentear com o seu coração somente as pessoas que merecem ser lembradas. Aliás, presentear com panetone, vinho e espumante no Natal é o mesmo que dar um par de meias sociais ao pai no dia do aniversário dele. 





quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Crônica - Joaquim é que está certo


Moço descente este fulano. Um tanto esquemático, às vezes segue procedimentos e rituais que chegam a irritar. Mas dá-se por vencido ao perceber que faz parte dele, por exemplo, entrar no banheiro masculino e só tirar água do joelho no compartimento da direita. São três urinários instalados na parede à esquerda, com cerca de um metro de distância um do outro. Ele pode estar se mijando, mas não usa a patente do meio e da esquerda.  Pela direita o fulano entra na fila e aguarda.

Entre teses e pouco menos, quando as defesas são irônicas e provocativas por serem feitas para azucrinar, já disseram que é mania, neuroso, ideologia, miopia e segurança.  O box da direita é o último da parede. O sujeito que o utiliza não corre o risco de alguém passar por trás e dar um esbarrão daqueles de prejudicar a pontaria e mandar água no azulejo e no piso. É coisa que vem desde a infância, segundo dizem velhos conhecidos: fulano sempre se irritou com alguém atrás dele. Talvez por isso ele seja sempre o último da fila.

Tentaram por umas cinquenta e sete vezes saber dele o motivo da preferência. Ele responde secamente que ninguém nada tem a ver com o que ele faz ou não faz. Problema dele! Só falta fulano, cujo primeiro nome de batismo é Joaquim, acrescentar pedido áspero para que não encham o saco. Ele não diz isso, mas a cara mostra que o recado é este.

E a fitinha vermelha amarrada na placa do sedan quatro portas é mistério. Pelo que se sabe Joaquim é pentecostal. Por favor, não confundam: nada a ver com pente para alisar as costas. Já fizeram referência parecida e ele foi rude: chamou o provocador de idiota. Porque tem isso: ser chamado de burro é uma coisa quase normal; ser taxado de idiota é o fim.

Foram outras teses e pouco menos. Uma ala defendeu que era para dar sorte e foi derrotada, pois imagina como o pastor e os irmãos reagiriam diante da prática supersticiosa de um deles? Outro grupo foi para o mais simples: a mulher de Joaquim amarrou a fitinha na placa para identificar o sedan quando vai ao supermercado. O carro é cinza metálico, da cor que todo mundo usa, e de modelo parecido com o de todo mundo. Então se explica.

Ficaria nisso se não aparecesse a divergência investindo na tese de que Joaquim estaria mudando de religião. E deu certo, pois descobriram que era uma Fita de Bonfin, o que leva a crer que a opção é o sincretismo. Falta só saber se é para dar sorte ou faz parte do plano de trocar o veículo. Tipo assim: quando a fitinha arrebentar Joaquim vai à concessionária trocar o velho por um novo.

A verdade é que Joaquim está na dele. Acorda todos os dias na mesma hora, depois do banho nunca penteia os cabelos antes de escovar os dentes, embrulha o sabonete num pano para evitar que o produto fique mole e no café, que sequência: primeiro uma xícara de café, depois um copo americano de leite e para finalizar um copo maior com o pingado. A faca é deixada milimetricamente na diagonal ao lado do pote de manteiga. O pão francês é cortado no meio, em vertical. E se o biscoito estiver no pacote ele não come nada, por se sentir desacatado pela esposa. O biscoito tem que ser colocado na biscoiteira.

Na garagem do prédio o carro dele fica certinho no meio das faixas que separam as vagas dos vizinhos. E ai do beltrano que não fizer o mesmo. Joaquim manda queixa por escrito para o síndico. Assim ele leva a vida. Embora excessivamente regrado é um cara que está no equilíbrio. Chamam-no de implicante. Mas estão equivocados e injustos. Joaquim não incomoda ninguém se ninguém o incomodar.


terça-feira, 27 de novembro de 2012

Crônica - Ratos de ontem e de hoje


O rato recusou roer a roupa do rei. Dizem alguns súditos que foi por respeito. Mas estes são a minoria. Há corrente, pouco mais substanciosa, que defende a tese do repúdio à vestimenta. Desse posicionamento oposicionista sai que a espécie roedora sente nojo do sofisticado, nobre e caro, pois nem sempre a etiqueta que se mostra confere com a qualidade do etiquetado.

Difícil compreender tal defesa. Vi um amigo de faculdade metido num terno preto sobre camisa branca e gravata. Na batida do olho me perguntei: “Foi passado com ferro comum ou a vapor?” Ele parecia qualquer um no meio de tantos outros de ternos negros, gravatas e camisas claras. Achei que o meu amigo devia diferenciar com meias esportivas e tênis camurçado. Pelo menos eu enxergaria um tanto da irreverência dele no passado e diria: “É realmente o meu amigo da faculdade”.

Que coisa estranha! As pessoas mudam e os ratos também. Antes o bichinho roia a roupa do rei. Agora detona só o improvisado do casal que dorme sob o viaduto. O terno do meu amigo da faculdade nem cheiro de naftalina tem. Ele, que no passado morava numa casa de madeira da vila, agora é condômino em um apartamento requintado de bairro onde até catador de papel tem medo de entrar. Podem confundi-lo com um larápio, tamanha é a simplicidade daquele senhor.

Já o casamento que fui foi um desfile. Fui de padrinho, com calças jeans, camiseta e um terno social para fazer de conta que eu apadrinhava com esporte fino. Não enganei ninguém. Todos repararam que nos pés eu usava uma bota. Ainda bem que o cano escondeu o furado das meia. Mas senti, lá pela metade da cerimônia, que essas meias desciam e ajuntavam no meio das solas, formando um monte que me impedia ficar de pé.

Demorou muito para eu descobrir a causa. As botas são justas e as meias são de algodão. Comprei-as numa promoção. Um pacote com seis pares por nove e noventa e nove. Deu no que deu. Na troca de alianças tentei disfarçar. Botei a mão no cano da bota e cacei as bordas da dita. Que nada! Elas já estavam no calcanhar.

Então cochichei para a esposa, metida num longo preto, também improvisado dos joelhos para baixo: “Tô pisando nos canos das meias...” Ela olhou para o chão e nada disse. Tive que insistir: “Os canos das meios formaram uma bola na sola do pé”. E ela, indignada, resmungou que depois da oração de encerramento pediria ao padre uma benção para expulsar a coisa ruim que me fazia delirar.

Casamento é assim. Fiquei preocupado com os ratos da cozinha do salão comunitário. Lá de longe eu vi, na hora que as damas de honra entravam, a cabecinha de um deles espiando do vão sob a cortina. O dono da empresa contratada para o coquetel gritou: “Tira essa cabecinha da vista”.

Assustou o marido da comadre da tia da noiva, que estava de brincadeira com uma mocinha. Ele olhou para a vista da calça e se acalmou. O rato dele estava agitado, mas de cabecinha escondida.

Problema sério. Rato de agora não rói a roupa do rei. O rato é o rei e destrói a vestimenta da mulher que dorme num quarto modesto da favela. E os canos das minhas meias já estão nas pontas dos pés. Que coisa!


segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Crônica - Ah, a solidariedade...


Dependesse de Rita os atos de caridade ocorreriam sem protocolo. Para ela, a alma de quem é fraterno enxerga a realidade de quem precisa e sente que a entrega é merecida. Isso vem de anos. Quando menina esta mulher que hoje beira os cinquenta via seus pais guardando economias durante o ano todo para retribuir aos mais necessitados o que eles haviam ajuntado no período.

A matemática dos velhos era bastante simples: deu para o casal, os cinco filhos e quatro netos comerem o necessários durante doze meses. Não faltou para o medicamento, quando preciso. Todos estão devidamente vestidos e se não há luxo também nada resta que motive reclamação. O carro é o ideal para ir e vir e os eletrodomésticos não carecem de substituições. A vida é simples e sem exageros, mas bastante confortável à família.

Então o casal pensava naqueles que haviam enfrentado infortúnios por causa de um desemprego, um acidente ou uma doença. Para estes destinavam o que possível, fossem eles parentes, vizinhos ou conhecidos. Uma cesta com alimentos básicos, um jogo de lençol, peças de roupas para as crianças e nada mais. Na lista entravam somente as coisas necessárias.

Na véspera do Natal o velho Corcel saia de casa abarrotado de pacotes. Pai e mãe iniciavam uma peregrinação para distribuir os donativos que começava de manhãzinha e ia até o meio da tarde, quando retornavam para o preparo da ceia.

Nunca os velhos gastaram créditos do telefone para ligar aos programas de caridade da televisão ou do rádio. Aliás, no antigamente nem telefone havia em casa e a televisão ainda não havia descoberto que intermediar doações dava audiência e enriquecia quem faz papel de intermediário. Como sempre, intermediários ganham e muito.

Para explicar isso Rita recorre aos programas de ajuda de hoje, estes que pedem para as pessoas fazerem doações de dinheiro pelo telefone. Ganham financeiramente com esta prática as operadoras de telefone, as emissoras, os artistas que participam em troca de cachê e os anunciantes. E o doador entra na história e sai dela como um anônimo que só serve para patrocinar boas intenções de alheios. E que boa intenção...

É mais ou menos o que acontece com as entidades que colocam voluntários nas portas dos supermercados para ajudar os pobres. Para Rita, é um oportunismo engraçado este de dar esmola com dinheiro dos outros para ficar com fama de bonzinho.

Então Rita recorreu à igreja. Pensou que seria diferente. Campanha de lá, campanha de cá e ela está decepcionada. É, da mesma forma, gente intermediando ajuda. E no fim das contas o grupo de intermediários é o que menos dá socorro e mais aparece. E nem sempre as pessoas mais necessitadas são auxiliadas.

Rita decidiu que vai voltar ao antigamente. Como fazia seus pais. Ela diz que além de haver mais justiça a doação feita com os olhos e a alma eliminam a cegueira: “Tem tanta gente que ajuda os outros pela televisão e não enxerga um vizinho ou um parente que está em situação pior”, finaliza.  


sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Crônica - Partilha, comunhão e vizinhança


A partilha de outrora era, de fato, comunhão. Alguém vai reclamar que já falei do pão caseiro da Dona Maria, vizinha que todo fim de semana aquecia o forno de tijolos construído no quintal e assava cinco ou seis deles. Um era para minha mãe.

Rua Juruá, 181, Vila Nova, Londrina. O endereço é este. A casa onde eu morava foi demolida. Uma bela e moderna moradia está em seu lugar. O pão era feito nas sextas e seguia quase que um ritual. Dona Maria acordava bem cedinho e tratava de colocar as roupas no varal.

Depois, numa mesa de madeira instalada na varanda dos fundos lidava com a massa. O velho rolo de madeira tratava de dar o ponto necessário e o formato era trabalhado com arte. Enquanto a massa descansava, Dona Maria providenciava os gravetos para aquecer o forno.

A lenha se achava no próprio quintal. Nem as mercearias mais atualizadas da época vendiam carvão. Bobagem estocar num bairro sem asfalto nas ruas e com muita vegetação secando na beirada das casas um produto que ninguém usa.

Fogo aceso esperava-se pelo crescimento para em seguida o cheiro gostoso do pão caseiro assanhar a vizinhança. Nas sextas também se faziam as limpezas gerais, com água tirada do poço artesiano lavando até o chão de terra. Não era desperdício, a água abundava e deitava a poeira que encardia os panos de prato.

No final da tarde, ainda antes do anoitecer, o pão passava pela cerca de madeira, das mãos de Dona Maria para as mãos de Dona Luiza, minha mãe. Isso era um hábito entre os vizinhos de outrora. Se alguém fazia um doce de banana, preparava-o em quantidade para repartir com quem mora ao lado.

Ninguém mantinha este hábito por ser uma obrigação. E se fizessem uma lei tornando a prática necessária, com certeza os vizinhos de antigamente dariam às costas. Continuariam a ser fraternos por terem a fraternidade dentro de si.

Aliás, essa comunhão também não dependia de recomendações dos orientadores religiosos inspirados nas escrituras. Por falta de igrejas e de templos nas proximidades raramente a minha vizinhança participava de celebrações. Só nas ocasiões especiais vestiam roupas de domingo e calçados engraxados para um batizado, um casamento, uma missa de sétimo dia em outros bairros.

Mamãe raramente preparava algo diferente e se constrangia ao receber partilhas dos vizinhos. Mas, costureira, ela por tantas vezes acertou caseados, bainhas, botões mal colocados e costuras desfeitas sem cobrar nada das vizinhas. Os favores eram trocados, mas sem que ninguém se sentisse na obrigação de devolver alguma coisa.

Parecia uma família pronta a participar da vida de todos de um jeito produtivo e gostoso. Nada a ver com as promessas escritas e faladas de agora.


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Conto - Outra temporada


O uniforme de trabalho carece de uns acertos. Precisa ser para ontem, não se sabe quando é que os primeiros compromissos da temporada serão fechados. É coisa para ser feita em casa, à noite, no sofá e em frente à tevê durante os intervalos das novelas. Basta uma agulha e alguns centímetros de linha. Com boa visão os pontos ficam caprichados. Um reforço de costura aqui e um cerzido ali resolvem.

Foi um puxão de menino metido a besta que descosturou a manga da túnica. Sorte que não rasgou. O furo na perna da calça, bem na altura da coxa, foi descuido de um fumante. Certo, não teve má fé. Naquele aperto baixou o braço depois da tragada e por acidente apagou a brasa do cigarro no pano. Nem deu tempo para xingar porque ao sentir a dor do queimado e perceber o estrago o sujeito já estava adiante, tentando dar mais um trago no fumo torto e sem fogo.

E olha o tamanho da mancha nas costas! Só pode ser o sorvete de casquinha que a criança entornou. Se for isso uma boa lavada devolve a cor. Mas se foram aqueles rapazes que acertaram o tecido com tinta sabe-se lá se sai. E nesse lugar não cabe remendo. Fosse na frente e se faria uma imitação de bolso.Tem até pano sobrando numa das três gavetas do quarto.

Quanto ao branco que imita neve caindo na parte da frente... talvez uns apliques de algodão e ninguém perceba as falhas. Só tem que tomar cuidado, senão o enfeite desgruda e dá vexame. O cinturão preto e largo usa-se o mesmo de antes. É de corvim e só pede uma boa água para ficar novo. As botas, na falta das de couro preto, apela-se para as de borracha. Os pés chamam pouca atenção.

O que vale é o saco de balas. Branquinho, limpo e cheiroso. Tem que dar boa impressão. Tem pais que recusam aos filhos doces carregados em sacos sujos. A barba está pronta. Os óculos estão com as lentes quebradas. Usa-se apenas o aro e pronto. As risadas longas e estrondosas quem é que não sabe imitar? Se a garganta estiver boa sobra para muitas gargalhadas.

Quanta bobagem! Sessenta e sete anos e fazendo este papel. Vou ser de novo Papai Noel pago por uma loja de variedades. E nem me recordo se algum dia, quando criança, recebi uma bala de algum. Nem chaminé a casa onde eu morava tinha. Um dia mamãe comprou um jogo de luz. Foi o único que tivemos nos nossos natais. Acendia e apagava e a gente esperava que ele viesse. Mas quem vinha era o papai, suando após a jornada de trabalho estendida em dezembro. Sempre sem poder trazer presentes.

Vai restar uns trocados com o dinheiro da temporada. Ajuntando com a aposentadoria mando consertar a bicicleta. Ela precisa mais do que graxa. Os dois pneus e mais os raios quebrados nas rodas estão garantidos. E se der compro um selim novo. Que não venha o grupo de reis no dia seis. Pouco tenho para retribuir a visita. 


quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Crônica - Olá! Tudo bem?


A gente costuma ser informalmente dissimulado. Neste 21 de novembro, Dia Mundial da Saudação, percebo travas em mim e nos outros. Ponho a culpa no cotidiano atribulado. Ele é o vilão que nos torna secos e indelicados. Na verdade, somos nós os autores e os protagonistas desse cotidiano que culpamos.

A primeira pessoa que vi após o despertar foi minha esposa. Não lembro se dei bom dia. Entramos nos assuntos corriqueiros de sola, acertando horários e compromissos de cada um. No elevador, descendo para a saída ao trabalho, respondi sem entusiasmo à saudação de começo de dia de dona Hélia. Moramos no mesmo andar, mas chegamos ao térreo em silêncio.

O Dia Mundial da Saudação não é uma data estabelecida para soltar a franga. É um evento de chamada à consciência. A iniciativa é assinada pelos professores Brian McCormack, da Universidade do Arizona, e Michael McCormack, da Universidade de Harvard. Ambos instituíram o World Hello Day.

A proposta é de cada habitante do planeta cumprimentar pelo menos dez pessoas com um objetivo especial: estimular a consciência pela paz no mundo. A idéia surgiu em 1973 quando, entre outras guerras e conflitos, Síria e Egito lançavam duplo ataque à Israel, no Sinai e Montes Golan.

No Brasil, a crise do petróleo teve efeito direto na ditadura militar que tomou o poder em 1964. A população já tinha certeza que o “milagre brasileiro” discursado pelo governo era um blefe. Entre manifestações e reprimendas, o país vivia o engodo de uma paz difundida pelos meios de comunicação a serviço do regime.

No Paraná, às vésperas do Dia Mundial da Saudação, bomba na internet em acessos de toda parte do mundo as cenas de dois policiais militares acuando contra a porta de um estabelecimento comercial uma estudante de 18 anos. Ela participava de uma manifestação pela paz pouco antes da partida entre Coritiba e Vasco. Usava o celular para gravar imagens. Os soldadinhos acharam que a estudante filmava cenas de seus desmandos. Um deles empurrou c menina com truculência contra a porta fechada da loja.

Assim, a saudação para a busca da paz é, no mínimo, causa extremamente nobre. Difícil imaginar como se saúdam neste 21 de novembro os policiais militares envolvidos, seus comandantes, o secretário de segurança pública do Estado, o governador do Paraná e tantos outros que deveriam, como empregados do povo, lutar pela tranquilidade da população. Provavelmente estendem as mãos cabisbaixos, de vergonha. Pois impossível crer que não se envergonhem.

E em casa, no primeiro contato com seus familiares, disseram que estavam à serviço e que o dever do ofício exige truculência, desrespeito, desprezo com quem paga impostos e faz a máquina do Estado funcionar? Sim, todos somos os mantenedores financeiros deste grande condomínio que emprega não somente servidores públicos de boa índole, mas também um bom número de apadrinhados políticos que são ajeitados nas chefias dos órgãos públicos.

Mas tem o que é bom. O 21 de novembro é a data de aniversário de um grande colega de profissão, o radialista MauroSegura. É também aniversário de Alcione, um ícone da música popular brasileira. Sem esquecer de João Ricardo.Quem é ele? João Ricardo criou o grupo Secos & Molhados, que deixou como herança cultural um grande talento, Ney Matogrosso.

E tem melhor ainda: o meu Bom Dia!, Boa Tarde! e Boa Noite! Recheado com carinho e respeito! A todas as pessoas que são próximas de mim e nem tanto. 


terça-feira, 20 de novembro de 2012

Crônica - Calos e bolhas


Calos incomodam. Na devida proporção causam medo tanto quanto a bolha do crédito imobiliário que estourou nos Estados Unidos em 2008. O rompimento põe para fora o líquido transparente que mantinha o calo volumoso e consistente. A sensação que dá é da perda de alguns miligramas de peso na balança que controla a dieta alimentar. É de onde vem o alívio.

Já tive muitos calos. No calcanhar, na planta do pé, na base do indicador da mão direita por culpa de uma tesoura sem corte, no peito do dedão do pé esquerdo e algumas vezes nos olhos da cara. Entendido? Aliás, aquilo foi terçol, se bem que eu não me lembre de ter negado algo a mulheres grávidas antes de acordar com as pálpebras inchadas.

Hoje estou menos calejado. Faz tempo não compro um par de sapatos novos. E quando acontece, normalmente o número é dois pontos acima por pura precaução. A idade avança, a gente anda e os pés incham. O último que eu tive foi bem na dobra do pé direito, acima do calcanhar, onde a borda traseira do sapato faz pressão.

Que dor. Que tortura. Foi no casamento de Antonieta que o bichinho apareceu. Ela é neta da Raimunda, aquela de quem aluguei parede e meia quando morei sozinho longe da família por motivo profissional. Eram sapatos de amarrar que eu havia comprado seis meses antes, como reserva. O vendedor jurou que os lustrosos vinham em couro legítimo, mas só no primeiro uso, justo no enlace da Antonieta, descobri que aquilo não passava de corvim grosso e duro.

Eu lembro que quando o padre falou ao casal da alegria e da tristeza soltei um gemido. O calo ardia e me obrigava a por o peso do corpo sobre o outro pé, o esquerdo, para aliviar a pressão. O direito, com a bolha doendo, ficava quase no ar. E nada do padre mandar a turma sentar. Troca aliança dali, fotografia daqui, beijinho por ali e o efeito psicológico fez a ardência do calo e o tempo da cerimônia triplicarem.

Da igreja até o salão de festas, onde serviram refrigerante e pão com carne moída antes do bolo, o bichinho estourou. Uivei tanto que um primo-irmão da noiva chegou aos meus ouvidos e pediu para eu moderar. Disse que nem o noivo eu era e, portanto, segurasse a barra: “Parece até que você está ejaculando!” Foi o último comentário que fez antes de se afastar com cara de reprovação.

Ao chegar em casa catei um tesourão de cortar galhos e abaixei a borda do sapato.Ficou feio, mas nunca mais deu calo. Hoje eu tenho bolhas. Isso eu tenho. Aproveitei os incentivos da Dilma e do Mantega e financiei um carro zero com IPI reduzido, um fogão, uma geladeira e outras coisas que nem uso, mas são da linha branca e gozam do benefício do governo federal.

Astolfo, amigo meu que estudou economia em curso à distância, já disse que se eu deixar de pagar e virar inadimplente vou contribuir para aumentar o tamanho da bolha do IPI reduzido. Pago para ver? Ou vejo sem pagar?

Ah, no momento uso um par de tênis de pano. Imita bem as marcas conceituadas e caras. Não pega no calcanhar e mesmo dois números acima não jogam os pés para a frente quando se vai numa descida. É recomendável, porém, cortar as unhas dos pés, principalmente as dos dedões, bem rentes.  


segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Conto - Despedida


Novembro me acorda em seu quase meio, dia dezenove, com uma mensagem aberta. Pode ser tudo ou nada. Pode ser muito: “Saudades...”

É assim, nas reticências, que eu tento ler o seu sentimento. De que tamanho seria a minha ausência em você? Com quais elementos a sua saudade de mim é feita?

Novembro é tempo de baixas. Faz alguns anos e rompemos ali, num dia qualquer do penúltimo mês do ano. Eu com os meus pecados e você com suas incertezas. Ambos inseguros nos colocamos à deriva no mar agitado de uma relação sem porto para atracar.

Desde então todas as tentativas foram vãs. Quantas promessas e juras desperdiçamos desde então. Nunca, porém, chegamos a cobrar pelo que não foi feito. Na verdade, nos cutucamos com o que fizemos um com o outro. Ou, na medida exata, um contra o outro.

Ainda sinto o peso dos seus soluços na hora em que nos despedimos. Foi um choro que eu não sabia que você pudesse chorar. Não foram as lágrimas que me nocautearam, pois água minando dos olhos já havíamos experimentado até nos momentos de felicidade.

O que me vergou foi o arfar do seu peito. O seu choro vinha lá de dentro e a cada respiração cortada o soluço rompia a quietude de um silêncio feito por alguém que nada tinha a dizer.

As chances de novas promessas haviam chegado ao ralo. Eu sabia que a única receita para aliviar a sua dor era dizer que ficaríamos juntos, que a despedida era um equívoco. E tentaríamos dar atracadouro seguro ao nosso porto, este tão frágil tapume colocado sobre as águas do nosso amor.

Sabia, mas não disse. Deixei você chorar mesmo sentindo que o seu choro doía em mim e sabendo que essa dor, em você, era muito maior. Faz tanto tempo...

“Saudades...” É assim que você me pune hoje em dia. Agora, nas suas reticências, leio apenas a mensagem da pessoa que diz que um dia foi bom, pois fosse ruim não haveria saudade.

E aqui, de tão longe e sem ter como atravessar as tempestades que nos separam, eu desperto com o peito dolorido ao perceber em mim o seu choro de tempos atrás pedindo que eu ficasse.

Eu fui e você apagou o mapa do caminho de volta. O castigo que me impõe é acenar que a possibilidade é uma rota impossível e a solidão é a tortura extraída das lembranças. Não há mais choro. Só resta a certeza de que tudo acabou.


quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Conto - Página arrancada


Marlene é um nome rabiscado numa velha agenda. As letras ainda eram desenhadas com certo capricho. Significa que quando Marlene ganhou aquela página eramos, se muito, novatos na adolescência. É provável que pensávamos um no outro sem malícias. E nem pretensões haveria entre amigos de brincadeiras de rua que se torturavam aos risos nos jogos de bola queimada e bétis.

Nada de saliente foi registrado. Nem um beijo ou conversa de cerca com as mãos dadas estão anotados. Se houve namoro deve ter sido graus abaixo do morno. Ignoro se num sábado daqueles fomos ao cinema juntos. Só nós dois, porque em turma até nadamos com os outros nas águas geladas do córrego adiante.

Lembro do rosto de Marlene. Miúdo e delicado, com os cabelos castanhos na altura dos ombros fazendo moldura. A pele era clara e lisa. Evito dizer se tinha maciez, pois nunca afaguei, nem por acidente, qualquer parte de Marlene. Nove ou dez anos, nem sei ao certo a idade dela. E isso me soa normal, já que nem sei quantos anos eu tinha quando Marlene morou no meu coração.

O que me dá certeza é que houve, de mim para ela, algo que nunca chegou a amor. E dela para mim desconheço se fomos apenas duas crianças vizinhas que aproveitaram juntas a infância e iniciaram a adolescência disfarçadamente conscientes de que havia chegado a hora de encerrar as brincadeiras para outros nomes serem escritos em suas agendas.

Ontem Marlene passou por mim. Madura, casada, dona de si e acompanhada pelo marido. Elegante! Foi, na verdade, a única vez que eu vi Marlene como mulher. Foi só então que eu assumi que se um dia falamos um ao outro que eramos namorados, jamais pensamos em fazer das nossas juras mais do que uma brincadeira.

Marlene seguiu sem ao menos um cumprimento de mão. Nem me toquei se ela disse um bom dia ou apenas sinalizou com a cabeça um olá. Em casa revirei a gaveta da agenda velha e rasguei a página com o nome dela.


terça-feira, 13 de novembro de 2012

Crônica - Segurar as mãos


O rosto nunca se esconde. Lave-o com água da torneira do tanque de roupa e passe uma gordura. Lisa, a pele faz resvalar as pedras que atiram. A dor física ao contato de cada uma é temporária. O importante é que não restem cicatrizes. A mancha que fica no coração ninguém percebe. As marcas visíveis é que preocupam.

Heróis são ídolos e ídolos são heróis. Nunca, porém, na proporção do casamento tradicional. O para sempre é apenas uma promessa. Heróis se perpetuam nas histórias em quadrinhos porque suas imagens são impressas e preservadas. Nem a qualidade precária do papel usado nos gibis desfaz façanhas mirabolantes pelo bem. Diferente do cinema: cenas movimentadas podem denunciar defeitos.

Ídolos resistem por serem intocáveis. A estonteante beleza da atriz só faz dela uma imagem pretendida. E nem sempre o seu talento é a causa do amor meio platônico e mais fantasia que lhe dispensam. A relação é mantida pelo impossível de ser e acontecer. Enquanto ela for estrela será a preferida.

Heróis e ídolos, há um preço para ambos. Não só nos gibis e nos cinemas a cota devida por estes é alta. Heróis e ídolos fabricados morrem mais cedo. Lutadores bancados por jornais caem após a primeira derrota. Jogadores de futebol carimbados por emissoras de televisão escorregam em seguida à primeira falha.

Há quem suba e outros descem. Tantos sobem e descem as escadas rolantes instaladas no cotidiano da multidão. Pais são ídolos de seus filhos até quando forem pais. Mães são heroínas eternas e só se transformam em barro se pecarem no quadrante dos instintos maternais.

Os braços descem e se estendem até o meio das coxas. O rosto brilha de um sebo natural. O hálito forte e repugnante do café atordoa. A fala é limpa, pois todos os engasgos foram reprimidos no extenso maço de papéis. É a cola do orador, em letras garrafais, sustentando um discurso.

Ele é um herói e ídolo. E de tão ídolo virou herói, ninguém se importa com a diferença entre um e outro. O povo faz silêncio, é hora de ouvi-lo. Ele ajeita o corpo e se posta. Alivia a pressão da gravata e se toca: onde colocar as mãos enquanto cumpre o seu papel de falar tantas mentiras? 


segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Crônica - Ontem, hoje e amanhã


O tempo não pára, canta Cazuza na imortalizada obra que deixou. Vítima da cultura tupiniquim que valoriza os talentos depois que eles se vão, o roqueiro ganha hoje mais respeito morando na outra dimensão do que em vida. Talvez por isso Noel Rosa tenha deixado para as gerações futuras Fita Amarela, lançada em 1933 e ainda cantada com entusiasmo por novos e veteranos. Sem choro e nem vela!

Olha um jeito polêmico de falar da teoria da relatividade. Com o perdão de Albert Einstein, o físico alemão que teorizou a relação tempo-espaço com propriedade e fundamentação, embora cá para nós, simples mortais, o entendimento disso tudo dependa de uma equação feita e refeita seguidas vezes até a exaustão e o desânimo.

De repente alguém diz que é simples: quando o sujeito está parado o tempo passa mais rápido; quando o sujeito está em movimento o tempo anda que nem tartaruga. Então complicou mais. O seu compromisso é para daqui a quarenta minutos e o deslocamento até o local combinado gasta vinte. Sentado no sofá enquanto espera a hora de sair os vinte minutos restantes parecem oitenta. Seria isso?

Claro que não é tão simples assim. Conveniente, portanto, deixar Einstein no sossego. Antes que ele desperte e nos acuse de vulgarizar à ninharia a sua teoria. Mas continuemos com o tempo apelando a Belchior, cuja tese causa tanta polêmica nos fóruns da internet quanto as defendidas por outros ilustres: ainda somos os mesmo e vivemos como nossos pais...

É! Ainda prefiro Cazuza. Como ele diz em ideologia, os meus heróis do passado hoje disputam cargos eleitorais para defenderem os seus e as suas comissões. É mais ou menos o que escreveu o poeta e jornalista Mário Quintana: “O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente”. O tempo que passou, enfim, cobra a consciência de muitos que vivem neste tempo de agora.

Verdade! Aquele ex-líder estudantil articulava nos diretórios acadêmicos para que a sua causa fosse fortalecida. Hoje ele conta vinténs nas travessas e negocia benefícios nas ruas sem saída. Assim, entre a velocidade da luz invariante e o espaço-tempo curvo, ambos do físico alemão que já citamos, melhor ancorar mesmo em Cazuza.

Ideologia! Preciso de uma e não a encontro. Claro, menos aquela apregoada por Joseph Goebbels, provavelmente a mando do seu patrão, Adolf Hitler. Goebbels, que era ministro da propaganda no Terceiro Reich, compactuava com Hitler ao afirmar que “as grandes massas cairão mais facilmente numa grande mentira do que numa mentirinha”.

Quantos morreram de corpo ou alma nessa história? Mas eis que na política atual tupiniquim, grandes, médios e pequenos homens que derivaram para a carreira de homens públicos mentem grandes, médias e pequenas mentiras. E ficam impunes. Que decepção é você, meu amigo. Talvez por isso Belchior venha a calhar: nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam...

A diferença entra os de agora e os do passado é que Hitler e Goebbels admitiam ser sacanas com as massas. Agora as massas elegem sacanas como seus representantes. Quantos deles gritaram palavras de ordem nas manifestações realizadas nos campus universitários?

E o amanhã, onde é que entra? Vamos deixar este tópico só no título, por enquanto. Depois a gente vê o que faz.


sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Crônica - Insônia


Bem que podia ter origem orgânica. A tal da serotonina, por exemplo, causaria mais alívio do que pânico. Em consultas de comadres, dessas que são feitas nas filas dos caixas dos supermercados, alguém disse que se a serotonina vai mal a vida vira um saco. Mau humor, falta de sono, coração descompassado, dores e meleca na capacidade de pensar fazem da vítima um traste.

O problema de Arnaldo é a insônia. Ele já tentou contar carneirinhos e na terça passada já estava no animal de número dois milhões e quinhentos e setenta e um mil pulando a cerquinha de madeira. Ultimamente, depois de contar os bichinhos, Arnaldo se põe a classificar o comprimento dos roncos da mulher. Usa o cronômetro do telefone celular e conseguiu registrar dois recordes: o mais longo mediu quatro segundos e o mais alto fez a vizinha do apartamento ao lado bater na parede.

Fosse serotonina o debilitado se conformaria só pelo fato da causa estar longe de um problema psiquiátrico. Para Arnaldo, psiquiatra é médico de louco. A cabecinha dele foi sempre pequena e merece desconto em casos extremos e pouco menos. Ele até andou pesquisando no Google. Descobriu que a serotonina é um neurotransmissor. Arnaldo nem sabe que bicho é esse, mas leu que ele está no cérebro e manda no humor, no sono, no apetite, no ritmo do coração, na temperatura do corpo, na sensibilidade à dor, nos movimentos e nas funções intelectuais.

Credo, que trecos são esses? Funções intelectuais tem a ver com o curso de formação política que Arnaldo frequentou por determinação do partido? E sensibilidade a dor? Arnaldo ainda é dos que castigam os filhos com tapas. Quanto mais forte a mancha vermelha na pele é maior. O ritmo do coração deve ser música de apaixonados e de cornos. Humor são aqueles programas sem graça da rede globo. Apetite, este sim. Arnaldo come que nem boi. E a temperatura do corpo nunca variou. Ao longo dos quase cinquenta anos Arnaldo sempre andou em casa sem camisa com a temperatura acima dos dezoito graus. Mas sono?

O açougueiro na semana passada sarrou. Disse debochado e na cara dura para Arnaldo que só não consegue dormir quem está ficando louco. E ainda por cima ironizou pesado: “Eu, se tivesse mulher que nem a mulatinha vizinha não dormia mesmo. Ficava a madrugada toda lá. Mas com a parceira que eu tenho na cama trato de pregar os olhos rapidinho. Aquilo dá uns cento e vinte quilos. Ainda assim é mais magra que a sua patroa”.

Louco, Arnaldo? Só se deu circuito nesse neurotransmissor. Ou secou a bateria dele. Arriou e não dá carga. É igual carro velho gaguejando na virada da chave na partida. A primeira range, a segunda tosse e a terceira se cala para sempre. Bem quem podia ser a seratonina. Arnaldo tem medo de ir ao médico de cabeça. Vai que o sujeito descobre o seu segredo.

Ele, na verdade, já sabe a causa da sua insônia. Apenas não a assume. Arnaldo mente, maltrata, despreza, ignora, escanteia e bate. Nunca assume seus erros. Pelo contrário, trata sempre de achar culpados entre parentes, amigos, colegas de trabalho, partidários e convivas de outros círculos. Arnaldo falta com a ética e faz questão de mostrar um caráter pobre e em ruínas.

Antes Arnaldo nem se ligava do que fazia. De uns tempos para cá a coisa mudou. Quando põe a cabeça no travesseiro e fecha os olhos passam as imagens de pessoas decepcionadas, tristes, revoltadas, sofridas e enganadas. E não adianta contar carneiros e roncos. As expressões das pessoas tomam a frente. Arnaldo ainda é político brasileiro. Pelo menos até que o psiquiatra o leve para o manicômio.



quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Conto - Incertezas


Está para acontecer. É previsível na expressão das pessoas. Mistura ansiedade, aperto profundo no coração, esperança, medo, otimismo e sufoco na garganta. Tem gente que espera melhora. Há quem aposte no pior. Expectativas, enfim, são balaios colocados nas portas das lojas para vender de pasta de dentes a inseticidas. E neste caso até fatias de melancia entram nas promoções.

Olhos esbugalhados sob franjas desarrumadas nas testas dividem espaço com o mirar distante de um ponto que nem existe. Ninguém está presente no agora neste tempo de aguardo. Cabeças, troncos e membros, eretos ou arcados, permanecem em seus postos. Mas o pensamento vai longe. Quando o corpo anda os passos são desconcertados.

É como olhar de cima o vento empurrando o trigo ainda na lavoura. A mutidão vai e volta. Sem ensaios, os braços formam uma estranha coreografia e desenham um quadro sem nexo. Cores variadas mudam de um ponto a outro e fazem um mesclado incessante e cansativo.

Ir e ficar são as opções. Não há terceiras possibilidades e a certeza de que o que está vindo não tarde aumenta em cada um a procura de um horizonte que permita sensação de segurança. Pelo menos isso.

Os rostos se viram de lá para cá. Exceções à parte, nem meia dúzia ou sessenta olham para trás. Que sejam seiscentos ou seis mil, a proporção é a mesma: o medo do passado pode ser tanto quanto o do presente e o do futuro. Ou a esperança deixada para trás é impossível de resgate.

Projetos encalhados, planos incompletos, possibilidades adiadas e contas a pagar enchem e transbordam o cofre que cada um tem dentro de si. Tiroteios nas ruas, desemprego, mentiras, roubos, promessas não cumpridas e injustiças colocam a mutidão em dúvida. E ela está para chegar. Como virá o amanhã?


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Conto - Transformação


Construir o amor e dali o relacionamento. Jamais Silmara havia pensado nisso. Entre a tese e a prática ela é uma pessoa que prefere o acontecimento. E o amor até o momento foi resultado da ação e da reação.
Nem sempre, porém, os resultados foram exatos. Sentimento não é matemática e está sujeito a equívocos nada parecidos com uma multiplicação errada. A tabuada do coração é muito diferente e não se decora.

Mas, no fim das contas o fechamento do balanço deu de equilibrado a positivo. O saldo negativo, às vezes, é tão pertinente quanto as sobras. E pode-se puxar o relatório com lascas decepadas da paixão tanto quanto o desenho de um coração cravejado de pedras preciosas.

O problema é o tempo. Os dias passam e quanto mais as raízes dos cabelos exigem retoques as dúvidas aumentam. A idéia antes desprezada de armar uma plataforma e transformá-la em porto seguro começa ironicamente a atormentar. Feito uma gargalhada estridente ferindo tímpanos e entrando na alma.

Silmara, na verdade, está cansada de eventos. Casos são deformáveis e derretem como gelo. Onde o sol bate mais forte a imperfeição da forma é mais presente e tudo aquilo que se esperava escapa pelos dedos, feito um líquido impossível de ser retido nas mãos.

Foi assim com Alberto. O relacionamento instável acentuava mais nuvens do que estrelas. Havia momentos de entrega plena. Quantos, porém, renderam fotos jogadas na tela do monitor? A falta de posse de ambas as partes provocou ciúmes. Era impossível prever o amanhã quando ambos, da boca para fora, prometiam liberdade para o outro e no exercício da vida a dois exigiam tutela.

Tese e fato. Essa distância se repetiu com mais dois. Um deles, casado, discursava um dia se separar. Silmara, naquele evento, intimamente torcia para que ele continuasse com matriz. Filias costumam ser tratadas com mais respeito, assim pensava ela. Além disso a vida conjugal do amante permitia a Silmara viver além dos limites de um quarto de hotel.

Ir ao shopping sozinha e sentir-se valorizada ao receber um elogio masculino, sem ter que se vigiar, causava bem-estar. E quem não gosta de uma escapadinha leve, mesmo que a saída seja apenas um suco na mesa de uma lanchonete? Verbos bem conjugados podem, enfim, provocar sensações valorosas e inesquecíveis.

Sim, porque atos prazerosos correm o risco de durarem muito pouco. O terceiro companheiro de Silmara é prova disso. Bom na prática e no formato, mas sem recheio, ele desmanchou por si mesmo o desenho de um parceiro ideal. Deixou como lembrança apenas os gemidos fortes e incontroláveis dos bons momentos.

E agora? Seria o pretendido um pretendente? Silmara e Rodrigo, um ex-colega da faculdade, andam de insinuações. Ele prefere as ciências exatas: uma cena de amor que é mais sexo hoje, um jantar na semana que vem em data e horário pré-definidos, uma viagem rápida no mês que vem aproveitando sobra de tempo do compromisso profissional longe de casa. Ela entrou nas nuvens e quer um vôo que saia de um lugar e chegue a outro, com a certeza do desembarque.

Rodrigo é a Silmara do passado. Silmara é o resgate daquilo que disseram seus pais: agora e para sempre. E os cabelos brancos pedem retoques de tintura nas raízes com mais frequência. 


terça-feira, 6 de novembro de 2012

Conto - Roupa limpa


A máquina deixa sabão no pano do lençol mesmo com três enxágues. Sarah prefere o tanque de louça instalado na área de serviço. É pequeno, quase metade dos de cimento que ficavam na varanda dos fundos. Algumas peças a mais e a água transborda. O ralo, no pé da parede azulejada, serve para isso. E depois um pano torcido por duas ou mais vezes permite a secura confortável do ambiente.

A camisa branca tem marca na gola. É suor misturado ao pó. Uma escova passada branda sobre o ponto resolve e evita que o encardido pegue. Mas sem tanta força, senão danifica o tecido. O bolso merece atenção. No lado de dentro, bem rente à costura, a sujeira se acumula. Sarah é detalhosa e nunca deixa de virar o bolso do avesso para eliminar os resíduos. A escovinha menor é mais adequada. Em alguns casos carece de uma escova de dente pequena e macia. Assim ela tem certeza que tudo o que era para ser lavado ficou limpo.

E as calças jeans, quanto trabalho. Se ainda novas o azul forte disfarça. Na meia vida é bom usar só uma vez. Repetir dá impressão ruim. O leve marrom do pó do ambiente acentua no desbotado quando o sol bate. E vão pensar que a peça não vê água faz tempo. As barras, muito cuidado. São ali que pegam no chão quando o calçado é baixo. Tem que virar do avesso e esfregar com vontade. Demora, mas o sujo vai. Fica uma dobra marcada, mas dá sensação de limpeza.

Meias manchadas no calcanhar entediam na hora de lavar. Antes usavam as sociais, de cores escuras e pano fino. Agora, brancas e de algodão, tomam mais tempo no tanque do que as cobertas e as toalhas de banho. Este par é impressão que foi usado vários dias. Ou o tênis está sujo por dentro. É tanto sabão que dói a ponta dos dedos. Se encardir não há jeito, melhor trocar por outro e acertar a limpeza do calçado.

A máquina faz tudo. Basta ligar, programar e esperar. Ensaboa, deixa de molho, enxagua e centrifuga. Uma, duas ou três vezes. Sarah duvida. No tanque de louça ela esfrega até sair a mancha de massa de tomate do branco da camiseta. E depois, no enxague, espera escorrer água límpida para depois torcer. Não sobra sujeira e sabão.

Tem ainda na lavagem de Sarah uma poção sem cheiro, cor e forma. É o amor que Sarah tem pelas pessoas que usam as roupas que esfrega. As peças penduradas no varal dão impressão de limpeza da alma. 


segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Crônica - Mentiras


Nem vermelho Lupércio fica mais quando mente. Antes até gaguejava. Evidenciava um tique nervoso que lhe era pegajoso desde criança, de passar a palma da mão na testa seguidas vezes como se estivesse a limpar uma sujeira. A voz passava do grave para estridente e a fala ganhava velocidade. Eram tantas palavras sem vírgulas e pontos finais, de forma a evitar contrapontos de quem ouvia. O pé direito, sempre à frente do outro, batia as pontas apressado enquanto o calcanhar girava de lá para cá.

Agora a única denúncia manifestada é a entonação ensaiada das afirmações. Lupércio fez um desses cursos de oratória promovidos por bajuladores interessados no dinheiro alheio. Aprendeu sim. Consegue falar no microfone sem engasgar. Pronuncia-se pausado e dá ênfase em algumas colocações. Improvisa até na hora de fugir de um assunto para entrar em outro que domine mais. Dá bom dia com entusiasmo. Critica com veemência. Agride com sutilidade. E mente. Mente tanto que acaba de ser nomeado orador oficial da empresa.

Já não passa a palma da mão na testa. Agora ajeita os cabelos empastados de gel ao ponto do redemoinho atrás só ser percebido quando olhado de cima. Ontem ele convenceu a esposa que iria a um evento. Três horas depois retornou dizendo-se eufórico com a sua performance: confidenciou à mulher que havia sido aplaudido de pé por mais de trezentas pessoas, diretores e colaboradores de onde trabalhava há doze anos. Nunca a reação dos ouvintes havia sido aquela.

Ela desconfiou do perfume e foi checar o carro na garagem. Encontrou no encosto do passageiro cabelos longos e loiros de quem se mexeu muito no assento. E ele teve que mentir e o fez com a naturalidade agora costumeira. Explicou que eram cabelos de dona Alzira, a velha senhora responsável pelo café a quem ele deu carona de volta após saldado o compromisso naquele auditório alugado para comportar tanta gente. E nem gaguejou. Quem tremeu foi a esposa ao receber ligação de Alzira pedindo para avisar que precisava de condução para transportar do local do evento ao escritório os apetrechos de cozinha.