quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Crônica - Que travessura você aprontou


Menino travesso este Saci-Pererê. Quatro dias antes de comemorar a sua data, 31 de outubro, ele aprontou em Londrina. Aliás, dizem que muito antes, quando ainda eram definidos os candidatos a prefeito, Saci-Pererê passou pela cidade vindo num redemoinho. Leu nos precários jornais londrinenses que os preparativos para o Halloween andavam de vento em popa.

E nem foi por revolta. Saci-Pererê não é de guardar ressentimento. Respondeu na brincadeira, fazendo candidatos seis nadas. Alguns poucos ouviram, no momento em que o menino embarcava no seu vento, a gargalhada e o desafio: “Quero ver como é que este povo se sai desta”.

A causa da travessura seria pela importância que o londrinense dá ao Halloween, um evento importado dos Estados Unidos e comemorado com fantasias nada criativas e muito dinheiro dado aos promotores no dia 31 de outubro. O Saci-Pererê, personagem do folclore brasileiro, é lembrado também no 31 de outubro. Lembrado? Poucos sabem que o menino negro de uma perna só, gorro vermelho e caximbo tem uma data comemorativa.

O resultado da travessura: dos seis meia-bocas restaram dois para o segundo turno das eleições municipais. E dois de tamanha ruindade que por pouco não empataram. Soube-se que durante a votação, no dia 27 de outubro, Saci-Pererê passou pela cidade no seu redemoinho. Gargalhando até o desbalde por ter colocado o eleitor londrinense em saia justa.

No caminho para as seções eleitorais ele viu o povo, que parecia norte-americano acostumado ao Halloween tentando sambar: um passinho pra lá, outro passinho pra cá. Sem gingado e nem embalo. Coisa mecânica e ruim de assistir.

Nessa dança deu boi na linha. Berrantes começaram a ser assoprados em todos os cantos da cidade. O gado nem saiu às ruas para comemorar. Exceto cabos eleitorais em carros com buzinas apertadas no último, a grande maioria misturou no barulho que entrava das janelas de suas casas e apartamentos mugidos, buzinas e as gargalhadas do Saci-Pererê.

Menino travesso! Bem que ele podia ter economizado na receita da sua travessura. Porque do jeito que ele fez desde o primeiro turno até a divulgação do resultado oficial, este malvado transformou a política londrinense em piada.

Sim, maldade. Passou do ponto da travessura. Isto não se faz, Saci-Pererê. Londrina precisa de um administrador sério e competente. Agora só nos resta negociar com o menino. Seguinte: a gente passa a valorizar mais o seu dia, 31 de outubro, e você nos devolve a condição de participar de eleições municipais com candidatos capazes de administrar uma cidade do tamanho da nossa.

E pode, quando quiser, voltar para cá em seu redemoinho. Quando vier faça travessuras com os politiqueiros e nos use para conchavos. Tenha certeza que a gente vai armar de montão contra os incompetentes que querem nos governar. Então? Combinado?


terça-feira, 30 de outubro de 2012

Crônica - Apego


É uma bolsa de courvim adquirida numa loja de produtos populares. Nem por isso peca nos acabamentos. O modelo é simples: um compartimento principal fechado com zíper e dentro dele as subdivisões.Não falta onde colocar o telefone celular. Qual fabricante esqueceria desse detalhe? Fora, também com fecho éclair, o compartimento secundário é suficiente para os trocados do ônibus.

Num estabelecimento mais requintado chamariam o material com o qual a bolsa foi feita de couro sintético. E o preço do produto final seria, fatalmente, o de um boi premiado. Ecológica e economicamente correta, Luzia se dá por satisfeita com a sua bolsa. Nela carrega sua vida: as carteiras de trabalho e de identidade, o título de eleitor, as faturas a serem pagas, o desodorante, o batom, a escola de cabelo, a pasta de dente e outras quinquilharias que de tão pouco uso pesam mais do que servem.

E claro, o telefone celular. Com ele Luzia se comunica com outros mundos que não são os seus mais lhe interessam de um jeito ou de outro. Até nas paixões, veja como os aparelhinhos são importantes. Como carregar tudo isso sem uma bolsa? Impossível desfazer-se dela, ainda que o tempo tenha mostrado algumas ranhuras na pele sintética que não é couro de boi e nem tem cheiro de churrasco.

A bolsa de Luzia laceia no sol e fica rígida no frio. Acompanha a dona nos bons e maus momentos. É como um casamento: na alegria e na tristeza, com ou sem dinheiro. Ela já pensou em trocá-la. Mas o apego se disse forte. E não se sabe se a bolsa é de Luzia ou se Luzia é parte daquela bolsa que leva e traz a vida daquela mulher.


segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Crônica - Entre o seis e a meia dúzia


Dois londrinenses passaram a madrugada de domingo para segunda-feira, dia 29 de outubro, acordados. Um porque perdeu e outro porque ganhou.  Mas este,vitorioso, por enquanto nem tem o que comemorar.

O derrotado se belisca desde a divulgação oficial do resultado do segundo turno das eleições municipais. Ele, que se considerava vitorioso, ainda se pergunta: O que aconteceu? O passado esburacado do titio fez diferença?

O ganhador está assustado: O que vou fazer agora? Credo, vou ter mesmo que lidar com o povão? Eu, particularmente, preferia ficar com os meus bois e as minhas vacas...

Ironias de dois destinos e, na rabeira, preocupação para mais de quinhentas mil pessoas. Na verdade, tanto fazia um ou outro ser o ganhador assim como tanto faz outro ou um ser o perdedor. As preocupações da população londrinense seriam as mesmas.

Aliás, são na mesma medida e na mesma proporção. A cabeça coça e na pele frágil do sovaco as feridas estouram. Podia ser diferente? De forma alguma. Desde o primeiro turno o eleitor desta cidade se viu encurralado diante de tantos nomes inexpressivos querendo ser autoridade.

Seis, no total, repetiram promessas vencidas e contaram vantagens que só os apaixonados por eles se convenceram.  Ajuntadas as propostas de cada um, Londrina teria, na segurança pública, um módulo policial em cada esquina. Nada mais do que isso.

É assumir o equívoco dizer que os dois menos piores ficaram para o segundo turno. Lula, nas suas verborragias, até diria: “Menas mal”.

Restaram, assim, o médico bonzinho da saúde pública e o prepotente moço rico motivo de queixas até de frentistas de postos de combustível. Um deles confidenciou que de tão esnobe escancara a porta do carrão quase nocauteando o atendente.

O médico bonzinho já era político. Em dois mandatos na Câmara de Vereadores disse na campanha ser autor de zilhões de projetos transformados em leis. A gente é tão ignorante que desconhece isso. Culpa nossa.

O outro administrou bens da família e foi presidente de uma entidade ruralista riquíssima. Ignorante que somos, não sabemos se, além da exposição agropecuária anual, a gestão do fulano se destacou por um posicionamento forte do segmento. Burrice e ignorância nossa também.

O médico bonzinho tentou fazer a cabeça do povo unindo-se a uma turma da pesada. Parentes, partidos e apoiadores punidos pelo eleitorado com o desprezo e a desconfiança fizeram-no fraquejar.

O moço rico, que já no primeiro turno deu rasteira em outros concorrentes por nunca ter sido político, ficou sendo para o eleitor a possibilidade do novo. O londrinense está muito cansado de raposões.

E agora, moço? Fraco na política e capenga na cultura, o senhor demonstra conhecer Londrina observando-a de cima. E olha, a visão do outro extremo é torturante e desesperado. De baixo para cima a beleza é restrita. Olhar o topo dos edifícios de luxo a partir de suas bases causa instantânea sensação do belo, que vai se apagando, tapada por fumaças.

E depois o desânimo, a tristeza e a revolta. O senhor terá que aprender a entender isso. Contrate um sociólogo de chinelo de dedo e aprende. Evite teóricos que analisam teses em gabinetes condicionados.

É complicado, mas possível aprender. E depois eliminar esse preconceito e pré-conceito de candidato de rico e candidato de pobre. Isso faria parte da sua proposta de mudança?

Acredite, doutor veterinário:  é viável sim, sendo justo para toda a população da cidade. Se assim o fizer, tenha certeza que o senhor não terá que mudar Londrina de lugar, colocando a nossa cidade perto do mar ou da floresta. Basta trabalhar uma ideologia que faça o povo entender que é cidadão. Será que o senhor consegue?


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Conto - Ausências


Foi uma longa conversa! Falamos praticamente de tudo. Da reforma do apartamento, do calor insuportável, das atividades profissionais, das correrias rotineiras e das preocupações constantes com isso ou aquilo. Praticamente de tudo, é bom reforçar.

Certo. A troca de piso vai te custar tanto. A pintura ainda depende da escolha da cor e eu declino da necessidade de contratar um profissional para decidir. É você quem vai ocupar aquele cantinho do planeta para dormir, comer, banhar-se e fazer outras coisas numa pequena parcela do seu dia, pois o restante estará fora.

Então economize. Mande um branco ou uma tinta de tonalidade clara. Se enjoar contrate uma turma de educação infantil. Em uma semana suas paredes estarão tomadas de desenhos de flores, borboletas, passarinhos, luas, estrelas e árvores. Lá em cima, perto do gesso, haverá um sol, único, pintado de laranja. De quem será a obra de arte? Provavelmente a professora subiu na mesa para produzi-la.

E o parecer, pelo que percebo, está rascunhado. Não abuse e nem abra mão dos termos técnicos. Isso vai parar nas mãos de especialistas mais preocupados com a exatidão técnica do que com o conteúdo. Por favor, não despreze as vírgulas. A falta de algumas muda o sentido da frase.

Cuidado com o tratamento. Excelência será sempre excelência. Professor que é doutor exige ser chamado de professor-doutor. Enfim, escreva difícil, de forma que só você e os seus colegas de profissão saibam o que está escrito. Nunca opine e nem dê a entender. Seja direta.

No mais, sinto que exceto queixas triviais nada corre anormal. O calor do qual você se queixa eu também sinto. Sim, pode chover aqui. E onde você se encontra, há possibilidade de temporal. Então o clima é tão imprevisível para você quanto para mim.

Os filhos vão bem também. Idem novamente. Por aqui está na mesma situação. Tem sido corrido sim. Acordar cedo, sair para lá, voltar para cá, retornar para algum lugar e vai-se o dia. O que não se faz para sobreviver?

Então vamos trabalhar. Abração forte e beijos! Você desliga, eu confiro na tela do celular. Mais uma vez deixamos passar. Continuamos sem saber por que nos falamos tanto de coisas que nos afligem e esquecemos dos sentimentos.

Há tempos não nos declaramos e isso é sintomático. Pode ser que ainda haja um respingo de amor, mas a paixão, pelo nosso conteúdo, passou por nós e está longe. Sei disso. Não consigo dizer que te amo sem ter a sensação de que estou repetindo palavras decoradas. 


quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Crônica - Rezas, simpatias e requerimentos


Nada de chuva! Mãe Jandira acende uma vela por dia desde a semana passada. Exigente, ela pede a São Pedro que a água caia em doses de receita médica. Daquele jeito que faz lembrar os bons tempos dos quintais verdes de grama, capim e plantas ornamentais e das ruas sem asfalto dos bairros da periferia. Sem relâmpagos e vento forte. Maneira, mas de molhar a roupa e escorrer os cabelos.

São tantos os assédios ao santo. Duas vezes por semana o pessoal da roça organiza procissão. Logo após o almoço, sob sol queimando e com a barriga cheia. Vai sempre na frente a dona Judite, manipulando o inseparável rosário. Na medida em que ela dedilha puxa cânticos e orações que ganham distância e atraem vizinhos.

Jandira é prima de Judite. Ambas nasceram na mesma comunidade rural. Só estão separadas por força do casamento. Judite casou com um vizinho. Jandira fez namoro com um rapaz da cidade e com ele ajuntou trapos, intenções e local de moradia. Ambas tem fé. Estão certas que o santo, horas dessas, manda uma chuva bendita para molhar o chão e descansar o corpo. Não há ser humano que aguente este calor por tanto tempo.

No parentesco tem o Manuel. Este acredita em simpatia. Já colocou a imagem de Santo Antônio de cabeça para baixo no sol quente. E nada. Então mudou a imagem de Santo Antônio de lugar. Nem um pingo. Ontem ele fez uma cruz de cinza no quintal. Só ventou e esparramou tudo. Hoje cedo ele foi a pé a cidade com o guarda-chuva aberto. Passou vergonha. Agora à tarde ele pensa se é prudente fazer a simpatia do sapo com a barriga para cima dentro de casa. A família não concorda.

Co-cunhado também é parente. Se é assim é dever incluir o Alfredo nesta história. Ele é vereador. Na sessão de segunda-feira Alfredo fez a sua parte. Propôs o encaminhamento de requerimento aos santos da chuva para que mandem água. A proposição foi aprovada por unanimidade.

Então, quem sabe?


terça-feira, 23 de outubro de 2012

Conto - Inversão acentuada


Perder o rumo. Sempre certinho, Joaquim sempre se imaginou fora da linha. Coragem é que lhe faltava para pisões extras. Como se andasse por calçadas revestidas de pisos milimetricamente assentados, o menino seguia reto. Cabeça levantada, pernadas medidas, velocidade acima da média e braços cadenciados. Sincronia em tudo, podia-se dizer.

Tanto que nunca os sapatos de cadarço foram condenados por desgaste nas solas. Os pares ganhavam o descarte por envelhecimento. Depois, na adolescência, as calças boca de sino se mantinham inteiras nas barras. É que não havia aquele esfregar de pano debilitando o tecido. Jamais a mãe de Joaquim teve que refazer costura ou tapar buraco com cerzido.

Jovem, o filho de dona Armênia fez questão de servir no Tiro de Guerra. De tão disciplinado nunca pegou guarda. As botas brilhavam que nem ouro preto e no exercício de limpeza da arma Joaquim conseguia arrancar elogios do sargento. Não foi por menos que no sete de setembro o moço foi escolhido para conduzir o pavilhão nacional.

O bom modo foi também receita básica do período de namoro. Foram seis anos de procedimentos catalogados. Pegar nas mãos só depois de três semanas. O primeiro abraço, na quinta semana, foi frio e formal. Joaquim parecia o presidente do Senado recepcionando o embaixador do Alasca.

E beijo, não pinta nesta jogada? A pergunta era feita para si mesma por Eneida, a futura consorte. Ela nunca se atreveu a questionar o namorado sobre o sim ou não das travessuras de um casal jovem. Ele, aliás, já havia antecipado: “Aquilo a gente só faz depois de casados”.

O noivado, que durou mais cinco anos, começou com uma festa parecida com a do padroeiro: churrasco, bolo, cerveja para os tarimbados e refrigerante para os que estavam no caminho. Um baile com música de sanfona terminou cinco minutos antes da meia noite.

Então chegou finalmente o casamento, onze anos depois, quando Joaquim já estava formado em contabilidade, tinha comprado um carro e acabara de financiar uma casa. Havia planos de, muito em breve, comprar uma casa na praia ou uma chácara.

Eneida já nem sabia que tipo de sentimento predominava naquela relação. De comportamento um tanto mais adiante que o do marido, ela se punha a refletir sobre eventos circunstanciais durante todo o período de namoro e noivado. Admitia-se ter sido tentada. Por quatro ou cinco vezes admiradores se manifestaram.

Um deles não sabia do comprometimento e quando soube caiu fora. Outro conhecia a ambos e era maldoso. Propunha passeios e lanches sorrateiros. Aquele outro vestia-se de amigo e tencionava seduzi-la com elogios. E veio o cara de pau que travou intimidade e foi direto. Em pouco tempo manifestou que o interesse era um caso e que ninguém precisava saber.

Eneida resistiu. Manteve-se virgem de carne, mas tinha dúvidas da própria reputação quando o assunto era o “eu” que ela trazia dentro de si. A vida conjugal seguiu enfadonha. Mas sobrava uma boa condição de vida, com macarronada nos domingos, pizza sábado e carne todo os outros dias.

Ela imaginou ter se purificado. Nunca mais pensou em extra, embora, já casada, sofresse assédios de açougueiros, cobradores de ônibus, padeiros e até entregadores de supermercados. Ele pirou. Sem dizer nada a ela, jogou para a cônjuge toda a culpa do marasmo conjugal.

E para desforra, está tendo um caso. Encontra-se três vezes por semana com a alma gêmea. Joaquim tem um consolo. Namora escondido um colega de trabalho.


segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Crônica - Dilema


O sujeito pára o outro sujeito na rua e conta um lero. Diz que é da cidade vizinha e teve que se deslocar em busca de um documento. Então vem o drama: não tem dinheiro para o ônibus de retorno. E completa: nem dinheiro para um pão tem.

A gente sabe que é mentira. Mas ajuda. Ajuda? Vicia ainda mais o fulano. Ele acha que é mole enganar. Acontece que ao dar um dinheirinho ao cara, mesmo desconfiando que o sujeito engana,  a gente referenda uma situação que só faz crescer o número de pessoas que se aproveitam da bondade do próximo.

O segundo turno das eleições municipais 2012 em Londrina tem muito a ver com essa história de cima. Os dois finalistas jogam com tudo: sou bonzinho, ousado, pertinente, preocupado, idealista, engajado e assim por diante. Sou, enfim, o cara. E sou técnico, ambos insistem.

O difícil é saber se um dos dois é o cara certo para uma cidade de quinhentos mil habitantes e uma área abrangente que soma cerca de um milhão de pessoas. A boca de ambos é mole. Nenhum dos dois convence.  Os gestos são falsos.

Além disso, o passado de ambos é vago. Não condiz com o que dizem. Como ter um bom prefeito que nada fez? Ah, estamos escolhendo o novo! Nem tanto. Um está cercado de velhas raposas. O outro tem um perfil elitista e segmentário. Há alguma ação concreta de ambos? Nada! Nem o que já foi político e nem o que já foi líder de um grupo restrito tem o que mostrar.

Líder? Político? Existem conceitos para estes termos. E se aplicarmos os conceitos um ou outro se enquadram? Difícil. Se fossemos benevolentes diríamos que ambos são projetos vencidos. Extremamente descartáveis, pedem a passagem de ônibus para retornar.

E o caminho, pelo que se vê, é a profissão originária de ambos.Lá poderão mostrar que são bonzinhos, técnicos, ousados e completos no universo em que atuam. Cá fora a história é bem diferente.


sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Crônica - E tanto faz...


Dois postes disputam o lugar a ser iluminado. O vencedor terá lâmpada própria. Mas para si serão direcionados holofotes. Nunca de luz negra. É que vigora o tabu da transparência quando ela incide. Nada a ver, mas a nudez cultural e ética pode refletir um caráter obscuro. Então a prevenção é defesa.

Um ou outro. O risco é iminente. Sim, iminente. Aqui, em hipótese alguma, fala-se de eminência. Nem os parônimos e muito menos a análise fria do perfil dos postulantes permitem equívocos. É iminência. Iminência e risco.

São dois postes e as lâmpadas de seus currículos são fracas. Algo comparado a um doze volts ligado a uma bateria prestes a arriar. A carga rápida não sustenta e a normal leva tempo, ao ponto da desistência. Incandescentes, quando acesas parecem pequenos tomates desses que se colhem para as bancas de promoções.

Fósforo, eis a questão. Luz negra é resultado da falta dele, fósforo. Então quando informaram aos postes postulantes sobre isso, trataram ambos os concorrentes de providenciar caixas de fósforos de acender fogão a lenha. Imaginaram ambos que se suas lâmpadas careciam de fósforo, era porque na modernidade os fogões dispõem de acendedores elétricos.

Ignorância extrema. De um e de outro. E tanto faz. Ninguém percebe tanta burrice. As pessoas que podem decidir sobre o futuro dos postes buscam carismas, que não encontram. O que acham são bocas moles de gestos e expressões que falseiam. E tanto faz. Quase ninguém percebe.

Ídolos de barro. Heróis sem passado. Um dos postes tem escoras. Não se sustenta por si. Depende de braços a empurrá-lo de um lado a outro de forma que não cambaleie. Algumas dessas escoras estão podres. Outro, um centímetro mais inteligente, aposta ser o preferido por parecer bonzinho. Fora isso é a fotografia da insegurança e pode despencar ao primeiro vento.

São dois postes e o lugar a ser iluminado é amplo. Nenhum, com suas luzes incandescentes de baixa voltagem, consegue mostrar para o que veio. E a cidade está muito escura.


quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Conto - Reticências...


Três pontinhos. Terminar uma frase assim dá agonia. Sei disso, mas teimo em usá-los. Penso que provoco. Dúvidas, expectativas, apreensões e questionamentos pousam sobre cada marquinha digitada. Juntas criam um emaranhado na cabeça ao complementarem um dizer trabalhado nas entrelinhas.

Reticências nunca fecham uma linha de raciocínio. Deixam em aberto. É o dito que não é dito. Letícia me acusa quando me comunico assim com ela. Diz que armo e espero por uma presa. E então...

Até nessas duas palavras encerradas com elas, as reticências, Letícia acha maldade. Concordo que os três pontinhos causam suspense. Imagine-se lendo: é um tom indefinido que não é pergunta e nem admiração.

Realmente, aguarda-se do interlocutor o inesperado. Uma resposta para dar o assunto por encerrado, um consentimento sem nexo e, de preferência, no caso de Letícia um equívoco: “Vamos que eu tenho pouco tempo”.

É assim. Ela é afirmação e ponto final. Letícia é reta. Não é nem pessoa de responder pergunta com outra pergunta. De minha parte eu confesso que a exatidão de Letícia às vezes me confunde. É por isso que recorro aos três pontinhos.

A última reticência que usei foi depois de um encontro. Escrevi que foi bom, num ambiente maravilhoso e aconchegante. Mas... E ela respondeu que sendo assim, nunca mais. Ainda tenho esperança de revê-la após um frase terminada com três pontos.


quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Conto - Persistência


Até usos recentes a camisa folgava o suficiente para respirar. Agora aperta na altura do peito e causa aflição. Lembra uma corda prendendo o corpo ao encosto da cadeira. Neste sufoco aumenta a impressão que a liberdade, já distante, cada vez mais viaja a um lugar imaginário onde jamais será possível chegar para resgatá-la.

O velho escriturário é magro. O peso caiu pouco mais após a pneumonia do último inverno. Se há excesso na barriga ninguém percebe quando o trabalhador se põe de pé. É levemente visível na cadeira por força da lei da gravidade. Só ao ficar sentado a gordura despenca e forma as dobras. Saliências e sucos se intercalam. Mas esse não é o motivo do aperto pouco acima, pois vê-se que o pano sobra ao redor.

Nem se cogita também que os peitos cresceram. Diziam nos intervalos das brincadeiras de rua, lá nos tempos de trás, que menino viciado em masturbação ficava com as tetas iguais de meninas. Agora, a esta idade, pesava no velho escriturário a indisposição para este tipo de prazer, embora a vontade persistisse como outrora.

É provável que o aperto venha das costas. Nada, porém, relacionado ao pulmão ainda vigoroso, embora a pneumonia tenha sido recente. O problema é a corcunda que se acentua e leva o trabalhador a envergar o corpo para frente, sentado ou de pé. Então, quando tomado pela sonolência, a cabeça cai levemente para a frente, os ombros declinam e o calombo aponta, repuxando a camisa bem naquele ponto.

É um cochilo leve e rápido durante o expediente. O velho escriturário imagina que nunca o flagraram dormindo no trabalho. Mas há dois registros que o contrariam, apesar de ninguém ter cobrado aqueles momentos com rispidez. Num deles a jovem recepcionista tocou seu ombro esquerdo com solidária delicadeza e perguntou com voz maternal se estava se sentindo bem. E ele respondeu que havia emprestado um minutinho para fechar os olhos e descansar as vistas.

No outro o velho trabalhador foi dominado por um pesadelo de provocar suor. Alguém o pressionava contra uma parede, empurrando justamente a parte do corpo onde a camisa apertava. E faltava respiração. Nem força para gritar socorro havia. Nesta vez o próprio escriturário se censurou pelo descuido, após despertar ao ouvir no próprio sonho um ronco pesado e forte.

Sessenta e quatro anos de vida e trinta e cinco anos de registro em carteira. O velho trabalhador espera a aposentadoria. Ele quer aposentadoria integral. Jamais imaginou parar sob o efeito negativo do fator previdenciário. Faz poucos meses ele recusou proposta de entrar com o procedimento, mesmo a empresa provando que os doze meses nenhuma diferença fariam no valor que iria receber.

Mas ele teimou. Não por causa do valor. O que o faz enfrentar diariamente a jornada de trabalho é um orgulho que só quem já trabalhou tanto tempo sabe o que é. E quando não houver mais trabalho sabe-se lá o que pode acontecer. As dobras da barriga podem aumentar, a corcunda deve apertar mais a camisa na altura do peito e nos minutinhos roubados para o cochilo há de acontecer outro pesadelo tão incômodo como o anterior: o do vazio que faz do rosto o reflexo de um sentimento de solidão e tristeza.


terça-feira, 16 de outubro de 2012

Crônica - Não é, papai?


- Papai está desapontado com você, filho. Muito desapontado. Eu dei para você a máquina que tive como brinquedo durante muitos anos e você não sabe como funcioná-la? É decepcionante, filho.

- Mas, papai, eu tenho outros brinquedos. Eu gosto de disputar corrida de carro, gosto de viajar de jatinho e de helicóptero, gosto de comer em bons restaurantes e gosto muito daquilo, sabe?

- Filho, a máquina é um brinquedo importante. Se você não gosta de brincar com ela não devia ter aceitado. Deixasse a máquina para outros.

- Eu não disse que a máquina é desimportante, pai. A máquina é, sim, muito importante para mim. Com ela eu viajo de jatinho, vou daqui até logo ali de helicóptero, invento uma desculpa e vou participar de uma corrida de carro, janto onde eu quero e faço aquilo, sabe?

- Então você só aceitou a máquina que eu te dei de presente para intermediar outras brincadeiras? Assim você me assusta, filho? Fico mais triste ainda...

- Pai! Veja que eu com a máquina estou fazendo o povo lembrar de você. E olha que faz tanto tempo não falavam nada de você. Agora vivem comentando que eu sou seu filho.

- Pois é, filho. É que você sempre se afasta quando as pessoas que fazem o comentário vão complementar a conversa. Elas dizem, de um jeito irônico, que você só se parece comigo no formato do nariz. O resto é diferente...

- Isso não é verdade, pai. Dizem também que o meu rosto é igual ao seu. Que eu lembro muito você.

- Filho, veja você saindo da conversa de novo antes do assunto ser fechado. As pessoas dizem, depois que você se afasta, que a maior diferença entre nós está no que você tem dentro da cabeça. E eu, aqui de cima, não tenho condições de contestar estas pessoas.

- Pai, se eu me afasto antes das conversas chegarem ao fim é porque estas pessoas são povinhos. Um monte de gente ignorante. Outro dia encheram o meu saco porque não tinha ciclovia num lugar lá de não sei onde. E eu por acaso ando de bicicleta? E se estão pensando que algum dia eu vou voltar naquele lugar estão delirando. Eu heim...

- Isso eu tenho reparado, filho. Eu ensinei você a dar as primeiras pedaladas. Hoje nem no guidão você pega. Sorte minha é que você não usa o selim para outras coisas. Aquela ponta bicuda é um perigo.

- Pai, eu já disse que gosto de brincar de jatinho, helicóptero e carro de corrida. Bicicleta, eu?

- Fico cada vez mais decepcionado, filho. E imaginar que fui eu que fiz você...

- Não se decepcione, pai. Um dia desses eu vou brincar com a sua máquina. Só preciso de um tempo, pai.

- A vida corre tanto quanto o carro de corrida que você pilota com gosto. O tempo que você me pede está ficando para trás. Daqui a dois anos você pode por a perder a máquina que eu coloquei nas suas mãos, filho.

- Que nada, pai. Daqui a dois anos eu brinco um pouquinho aqui e outro tantinho ali. É o suficiente para eu não perder a máquina que você me deu.

- Não confie assim. Tem que brincar todo dia com a máquina, senão você a perde, meu filho.

- Pai, eu só preciso de um tempo. Vou continuar dormindo por mais dois anos e nas próximas eleições eu conto uma história e o povinho aceita. Te garanto que continuo com a máquina que você me deu. Agora, pai, sem querer ser desrespeitoso com o senhor, deixar eu dormir. Daqui a dois anos eu começo a governar.


segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Crônica - Sem lógica e sem sentido


O pacote de arroz cinco quilos, de marca mediana, saia por menos de sete reais há duas semanas. Hoje a mais barata custa dez e alguns quebrados. O óleo de soja, na promoção, podia ser comprado por dois e setenta. Não há mais por menos de três. E assim acontece com todo o resto: feijão, massa de tomate, açúcar, papel higiênico, sabão em pó, detergente, pasta de dente, sabonete, cotonete, fralda, cebola de cabeça, tomate, prego, parafuso, serrote, grão de bico, carne de boi, martelo e coisas necessárias.

Alguém falou lá em casa: comprar só os produtos que não tiveram os preços elevados após as eleições de sete de outubro. Sábado, num supermercado, havia lâmpadas flurescentes por cinco e noventa e nove. Uma pechincha. A vizinha precisava de apenas uma, mas comprou dez. O problema foi na hora de fazer o almoço. Lâmpada clareia. Porém não faz salada e nem cozido. Lâmpada ilumina, entretanto não limpa a parede e nem lava a roupa.

A Quitéria, do sétima andar, revelou uma estratégia interessante. Ela peregrina pelas segundas, terças, quartas, quintas e sextas verdes, eventos adotados pelos estabelecimentos para desovar produtos encalhados. Outro dia achou a dúzia de ovos tamanho médio por dois e vinte e nove. Realmente, um achado interessante. Na concorrência o preço estava tabelado em dois e noventa e nove.

Comprou oito dúzias. E perdeu cerca de seis quilos, tamanha é a distância que percorre atrás de preços baixos. Além disso, na casa dela a família entrou no regime de alimento único, de resultado surpreendente de acordo com as revistas de variedades e também conforme o Jô Soares. Reparem que ele perdeu alguns gramas. É ovo cozido como prato principal, ovo frito como acompanhamento, ovo mexido como substância e vitamina de ovo como aperitivo. Três agregados marcaram consultas para o mês que vem. Suspeitam que o colesterol subiu.

Difícil está para Alfredo, aposentado da casa ao lado. Quando a banana tinha preço de banana ele consumia uma dúzia por dia. Agora, exceto nas desovas, quando a fruta já está mole, o fulano não tem fundos para bancar nem seis delas por dia. Então ele busca laranjas. Aquelas moles de tanto tempo de exposição acha-se até por sessenta e nove o quilo. Algumas tem mais casca do que suco dentro. Outras estão secas. Mas é possível comer, e não chupar, pelo menos cinco por dia.

Carne suína só se for paleta. Aquele negocião redondo, cortado com serra de açougue, às vezes custa apenas cinco e noventa e nove o quilo. O sabor é igual um isopor esquentado na água quente. Mas aproveitem que o vidrinho de molho de pimenta, de marca para gente menos exigente e mais pobre, ainda está compatível. Outro dia tinha um supermercado vendendo por um e setenta e nove. Daí chegou o dono de uma mercearia e levou tudo. Vai colocar no seu estabelecimento por três e oitenta e sete.

Tudo isso porque fulano ganhou e sicrano perdeu nas eleições municipais. Pelo menos foi isso que disseram no terminal urbano. Há versões mais convincentes. Como a de que o arroz sobe porque a chuva foi pouca ou muito. Ou porque ventou da esquerda para a direita quando devia ser da direita para a esquerda. Ou porque os pingos caíram de pé e não na diagonal. Vejam como a ideologia está até nesta parte.

Sorte que está todo mundo ganhando muito bem. Sim, isso é fato, pois ninguém tem reclamado de nada. Os preços sobem, a inflação quando dá alta é com saltinhos inexpressivos, o mensalão continua condenando e Londrina prossegue sem prefeito. O que está no cargo experimenta o poder. Os dois que disputam a sucessão, pelo que mostraram até agora, pouco ou nada sabem sobre o que a cidade precisa.

É um texto sem lógica e sem sentido. Mas o que, neste início de semana, dá um rumo neste país pelo menos agora? Então vamos entrar na dança e dançar. Pelo menos até a gente colocar as partes do cérebro no lugar certo e ver o que é possível fazer para que a coerência e as verdades possam nos respaldar. Isso tem muita urgência, caramba!


sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Crônica - Minha chuva e minha fé


Teve uma chuva matreira na manhã de hoje. Veio para abençoar. Começou brincalhona na tarde de quinta. Forte, invadiu o sol mas deixou espaço para seus raios perfurarem o fim do dia nublado. Assim se misturou. Soberana por ter conseguido se dizer presente sem abusar do domínio.

Engrossou e abrandou no tempo certo. Depois, chegada a hora dos trabalhadores retornarem para suas casas após cumprida a jornada pela vida, sobrevida e adiante, a chuva se recolheu. À noite, quase no anúncio do rodízio com a madrugada, ela voltou. Persistiu por horas seguidas. Lavou, refrescou, levou para longe o cheiro da poeira.

Ainda no começo desta sexta ela prosseguiu. Camarada, convidativa e ciente de estar agradando. Uma chuva que permitiu sair sem proteção. Se molhou foi para o bem. Gotas que amansaram os cabelos revoltados dos homens. Gotas que nem foram repudiadas por mulheres de cabelos feitos. Gotas pedidas por meninos e meninas.

A chuva trouxe um doze de outubro de temperatura equilibrada. Nem calor, nem frio. E testemunhou emoções de pessoas em meio aos burburinhos das rezas e das orações. A chuva foi parceira e solidária de quem chorou por fé. Foram rostos de olhos de lágrimas e de gotas caídas do céu.

Lembrei que ainda sou criança apesar do avançado da idade. Que ainda choro quando sinto necessidade de chorar. Que sou humano. Lembrei de outras crianças com a minha idade: minha esposa, meus três filhos, minha nora e meus dois netos, estes ainda crianças na idade. Lembrei de minhas irmãs, crianças mais velhas que eu. Lembrei de meu pai, de infância que desconheço mas imagino difícil. Lembrei de minha mãe, dona Luiza, criança até na missão de ser mãe.

Lembrei de Nossa Senhora Aparecida. Vi comigo mesmo a imagem dela e juro, enxerguei sob o manto o rosto de minha mãe. Tive um dia feliz, pois sou criança nos braços daquelas que me abençoam. A chuva chorou no meu rosto feito lágrimas de contentamento. 


quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Crônica - Há veias abertas


Há de vir chuva, tudo indica. Menos as previsões publicadas nos jornais impressos ou declamadas por apresentadoras bonitas nos telejornais, os sintomas, de resto, são tantos. Lucinda faz a releitura de um livro. Passa um vento quase frio na varanda. Mas, se houvesse sol, ela jamais estaria naquele local para a pausa do depois do almoço. O calor subindo do piso seria insuportável.

As Veias Abertas da América Latina. Uma grande obra. Escrito há tempos por um jornalista e escritor uruguaio, Eduardo Galeano. Sim, tempo. Havia uma previsão de frente fria. É bom adiar a idéia de guardar as cobertas no maleiro do guarda-roupa. Além do trabalho de trazer a escada, ainda há o exercício de socar as peças para acomodá-las nos pequenos compartimentos.

A primeira leitura foi lá pelos anos de 1.970. Setenta e dois ou setenta e três, tanto faz. O livro foi lançado em setenta e um. Lucinda era estudante universitária. Na época a obra de Galeano foi censurada no Brasil e em outros países desta América Latina. O conteúdo ia contra os interesses dos ditadores que mandavam por aqui.

Lucinda tem dúvidas se na época chegou às últimas páginas. Era um período de militância, porém nem todos os alinhados estavam convictos. Ler A Ilha, de Fernando Morais, lançado em 1976, era regra. O tema é Cuba e quem não tinha leitura ou ao menos referência de uma obra desse porte era acusado de ser alienado. O mesmo ocorria com As Veias Abertas da América Latina.

Assim Lucinda, como tantos outros daqueles tempos, carregava na bolsa artesanal feita de pano pelo menos meia dúzia de livros bem vistos no meio universitário. Tempo! Será que essa chuva vem? Assim do jeito que está vigora uma sensação de desconforto: vento frio e poeira girando quase feito redemoinho. Quantas folhas no chão! Precisa sobrar um tempo para passar a vassoura.

Galeano fala do domínio estrangeiro sobre a América Latina. Primeiro os europeus. Depois os norte-americanos. Lucinda discursava na época do lançamento do livro contra o imperialismo americano. Mas não se furtou e em casa, longe da militância, bebeu coca-cola para provar o gosto do líquido preto adocicado. Gostou. Errou e traiu a militância? Se assim foi, ela sabe que muitos líderes se embebedavam com whisky. Ainda se fosse uísque, comprado do Paraguai...

As veias abertas falam do sangue derramado por aqui por culpa desses domínios. Sangue que sai da veia, com mortes, fome e violência de outras espécies. E coágulos cerebrais devido à interferência na cultura através de uma política limitadora. Quantas cabeças deixaram de pensar?

E imaginar que ainda hoje tem feijão para cozinhar. Na panela de pressão seria um tempo. Mas tem o fogão de lenha ali fora. Dá um cozido mais saboroso se o fogo vem dos gravetos catados no quintal. Leva horas de cozimento. Se a chuva vier tem que ser no fogão a gás. Se persistir este nublado dá para arriscar.

As Veias Abertas da América Latina teve venda reduzida nestes tempos de agora. Mas um presidente latino presenteou um presidente norte-americano com um exemplar. E o livro de Galeano, que ocupava o 54.295 num ranking de obras mais procuradas, no dia seguinte subiu para o segundo lugar. Foi por isso que Lucinda desengavetou o livro. Está certa que vai chegar à última página.

Há veias abertas na América Latina, pensa Lucinda. Da vizinhança vem uma música. Sertanejo universitário, o que é isso? Música para não pensar, conclui Lucinda. Primeiro os europeus, depois os norte-americanos e agora do jeito que eles queriam: nós mesmos nos matamos culturalmente.


terça-feira, 9 de outubro de 2012

Crônica - Versões e distorções


Nilzete está de sobrepeso. Mas não é sobrepeso de gordura moldando a blusa de malha de um jeito escandalosamente denunciador. Pneus sempre saltaram do cós das calças apertadas e já houve quem dissesse que aquilo dava charme.

Ela duvida. Até os quatorze Nilzete se vestia ainda adolescente e nem reparava no ponteiro da balança da farmácia. Aos quinze decidiu emagrecer por culpa de uma colega de escola, da mesma idade, tida como a bonitinha da sala de aula. Meninos faziam fila na saída para cortejar a beldade.

Valeu o esforço. Em menos de dois meses Nilzete perdeu quatro quilos. Ficou um palito e a cara murchou. Os beiços ficaram mais salientes tamanho foi o vazio que o rosto sofreu. E os olhos saltaram, graúdos, negros e fixos nos meninos em idade de namoro.

Seguiu dentro do peso até os vinte e três. Depois começaram as variações para cima e para baixo. Perde hoje, ganha amanhã. Nos finais de semana a sobremesa assustava. A segunda e a terça tornaram-se dias de pouca comida.

Aos vinte e oito, já com dois filhos, um nos braços e outro puxando a saia da mãe, Nilzete começou a perceber os pneus. Certa vez imaginou que se tivesse um carro, que fosse um fusca, não ficaria a pé no caso de um prego furar alguma redonda.

Brincadeira sem graça que ela nem com as amigas repartiu. Engoliu para si mesma e tomou aquilo como um ponto de partida para recomeçar tudo, como fez aos quatorze. Em vez de perder, porém, ganhou mais peso. O rostinho chupado voltou a ser rechonchudo.

O sobrepeso de agora está nos oitenta e poucos quilos. As calças são compradas seis números maiores em relação à altura de Nilzete. Cortando as barras dá para confeccionar uma saia para a filha já moça. Na última compra Nilzete doou para a vizinha o pedaço de pano que sobrou e com aquilo foi feito um bermudão para o adolescente da amiga. Com bolso e tudo.

Este sobrepeso, se dobra a estima de Nilzete, não é tanto assim de fazê-la ficar vergada e cabisbaixa. Ela já está acostumada com a gordura. E o marido faz tempo não reclama. Lá pelas onze da noite eles e deita e ronca feito uma motocicleta com a injeção eletrônica engasgando.

O sobrepeso de agora é outro. As eleições foram para o segundo turno e Nilzete não tem entre os dois que disputam a prefeitura da cidade o candidato que ela quer ver prefeito. Disseram a Nilzete que a democracia é igual um campeonato. No caso do segundo turno existe a fase de classificação e a final. Assim, os dois que sobram é porque marcaram mais gols. E são os potenciais donos da vaga.

Mentira. Democracia é uma vida. E se os dois que restaram não prestam? A democracia manda Nilzete votar num deles? Não seria inconsequente escolher alguém em quem não se confia? Nilzete desconfia de teses e versões. A propaganda massifica distorções. Nilzete quer e não quer as regras. Nilzete odeia imposições. Nilzete está prestes a chutar o balde. Mas a propaganda é forte e destrói conceitos de palavras como democracia. Então ela arqueja, preocupada consigo e com os seus. Ela suspeita que em ambos os casos vai dar mensalão.


segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Crônica - Meu voto ideológico


Passou a febre. Estava em trinta e nove e desceu dois pontos. Mas ainda sinto calafrios. Mamãe dizia que quando ela vem por dentro essa sensação perdura às vezes de um dia a outro. É mais ou menos o que acontece quando dá dor de ouvido.

Uma pontada aguda faz a gente parecer que tem tiques: a cabeça estremece e o rosto vira para o lado, ao mesmo tempo em que os lábios ficam contorcidos e as rugas marcam sucos fortes na testa.
Eu já me vi no espelho durante uma crise de dor de ouvido. Fiquei assustado com o que apareceu diante de mim. E os olhos já esbugalhados tornaram-se terríveis. Que cena!

A pressão também baixou, por isso descuido no sal. A calmaria tem um motivo mais ou menos razoável. É tudo porque ontem, sete de outubro de dois mil e doze, votei. Acreditem. Foi, de fato, o voto mais ideológico que apertei no botão verde da urna eletrônica nestes últimos tempos. Eu tanto queria dizer: foi o voto mais ideológico que depositei na urna...

Então devolveram o meu título de eleitor e o documento com foto. Eu tinha um sorriso de contentamento que impressionou a mesária, uma senhora lá dos seus cinquenta e tantos anos que demorou meia vida para achar o meu nome na lista do tribunal eleitoral.

“É com dáblio, senhora. É com dáblio.” E ela em outra letra me procurando. Em contrapartida, foi-me a senhora muito simpática na saída: “O senhor está com este sorriso leve no rosto por ter praticado a democracia?”

Em outra circunstância eu diria que só tenho sorriso no rosto. Os sucos que tenho na barriga são gorduras que se destacam quando sento. Quanto à democracia! É melhor não responder nada.

Em outra ocasião eu abriria um discurso profundo e diria que o voto é o caco da democracia, pois votando estamos apenas escolhendo os nossos representantes políticos. Depois é que vem o duro do ofício de ser cidadão: fiscalizar, denunciar quando preciso, exigir postura, procedimento, caráter, ética, moral e personalidade.

Ah, e conhecimento. Um candidato a vereador colocou entre suas propostas que se eleito defenderia os projetos de interesse da coletividade. E se não fosse assim, que outros interesses ele defenderia? Outro propôs uma política para os animais da cidade.

Medi o tamanho da cabeça dele para ter uma idéia da quantidade de massa cinzenta dentro daquilo. Conclui que pela pequeneza de conteúdo no lado do cérebro que comanda a inteligência, o que ele propunha era uma câmara de vereadores para cães, outra para gatos, uma maior para os equinos e os frigoríficos para bois, frangos e suínos. Descartei a possibilidade de ele frequentar restaurantes exóticos para comer torresmo de casca de cágado. Ele não tem glamour para isso.

Por isso meu voto foi ideológico. Votei em quem ainda sabe o que é ideologia no contexto partidário e, enfim, na formulação de uma proposta de trabalho mesmo que o documento tenha fim exclusivamente eleitoreiro.

O meu voto ideológico foi para o menos votado. Mas estou consciente e em paz com a minha consciência. E dormi feito um anjo. Que madrugada recompensadora eu tive!


sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Crônica - Meu lanche do meio da manhã


Cabelinho pixaim, minha colega do terceiro ano do curso primário, lá atrás no ano de 1965, era como eu parte de uma turma heterogênea naquela escola pública da Vila Nova, em Londrina. O Grupo Escolar Nilo Peçanha, na Rua Araguaia, reunia estudantes de famílias diferentes economicamente. Ricos, quase ricos, remediados, pobre e miseráveis matriculavam seus filhos ali.

A Rua Araguaia era a única via do bairro calçada com paralelepípedos. Asfalto só se via acima da linha férrea, umas quatro quadras acima.Sapatos masculinos tinham que ter cadarços naquela época. Nada a ver com algum tipo de preconceito. É que em dias de chuva os esportivos atolavam no barro.

Meu pai era dono de uma bicicleta cargueira e vendia peixes nas ruas. Minha mãe era costureira. Eu estava com nove anos de idade e noção de ter ou não ter dinheiro passava longe. Só anos mais tarde, numa conversa com minha mãe, soube dela que em determinados momentos passamos a pão e mortadela. Mas nunca sentimos fome.

As minhas roupas e os meus calçados eram simples, disso eu me lembro. Um par de sapatos Vulcabrás novos sempre foi muito festejado. Imagino que minha colega de cabelo pixaim enfrentava em sua casa privações até piores. Ela nem bolsa escolar tinha. Carregava os materiais numa sacola.

Um dia minha coleguinha levou um bolo, assado naquelas formas feitas de lata e vendidas nas ruas. Quando a professora Denise entrou na sala e logo após a oração diária, minha coleguinha anunciou: “Professora, eu trouxe um bolo para repartir na hora do recreio. Minha mãe só pediu para explicar que na hora que ela foi bater o bolo não tinha açúcar em casa. O bolo ficou sem doce”.

A gargalhada foi geral. Eu juro: não sei se eu gargalhei e se eu gargalhei ignoro se foi em tom de ironia ou por achar graça do jeito da minha coleguinhas dizer que o bolo não tinha açúcar. Não sei mesmo.

Quarenta e sete anos passados, eu tento me convencer que se eu gargalhei foi de achar graça da minha coleguinha. Ela sentava na minha frente e por ser discriminada pelas outras meninas da classe conversava muito comigo. Isso me conforma. Tento assim assumir que eu apenas achei graça. Jamais gargalhei de deboche.

Me conforma também eu ter ciência que eu e minha coleguinha éramos iguais. Simples, sapatos sujos de poeira, roupas básicas e aquele comportamento típico dos pobres no meio de uma turma com ricos: meio acuados e pouco participativos com medo de falar e mostrar a boca desdentada.

Mexo na memória para saber qual foi a reação da professora. Enquanto não consigo enfiar a mão para vasculhar essa parte faço de conta que a professora Denise soube, de um jeito soberano, fazer com que a falta de açúcar no bolo feito pela mãe da minha coleguinha fosse algo normal e corriqueiro na casa de qualquer pessoa, rica, pobre, remediada, miserável ou quase lá.

Aquele bolo foi o meu lanche no meio da manhã. E eu lembro dele e da minha coleguinha em diferentes momentos dos meus dias. Às vezes em frente das panificadoras, outras nas estantes dos supermercados. E lembro também quando passo por uma mulher de cabelo pixaim. Como estaria a minha coleguinha hoje?


quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Crônica - Picotador de papel


- Quinta, sexta, sábado e domingo. Faltam quatro dias... quinta, sexta, sábado e domingo. Faltam quatro dias...

Deoclécio repete isso desde cedo. Está enchendo o saco. Com voz esganiçada e falando aos gritos, ele insiste:

- Quinta, sexta, sábado e domingo. Faltam quatro dias... quinta, sexta, sábado e domingo. Faltam quatro dias...

Não se sabe a que Deoclécio se refere. Seriam as eleições municipais? Se for, o sujeito nem candidato é!

Na empresa onde trabalha Deoclécio é o encarregado de passar no picotador de papel os jornais que falam mal do patrão. Ele, na verdade, é uma das engrenagens da engenharia de produção.

Acontece assim: às seis da manhã a secretária da diretoria folheia todos os jornais e marca com um X em vermelho as matérias que poderiam desagradar o dono da empresa.

Às sete e meia chega o adolescente encarregado de percorrer as bancas de jornais do centro para comprar todos os exemplares dos jornais que poderiam desagradar o dono da empresa.

Deoclécio, o terceiro da linha de montagem, entra às quinze para às oito e começa a passar os jornais que poderiam desagradar o dono da empresa no picotador de papel.

Aliás, Deoclécio é um funcionário bem equipado e instalado. Ele ocupa sozinho uma sala de tamanho quatro por cinco. Uma escrivaninha e uma cadeira são os únicos móveis. O resto do espaço é ocupado por oito picotadores de papel.

- Quinta, sexta, sábado e domingo. Faltam quatro dias... Quinta, sexta, sábado e domingo. Faltam quatro dias...

Embora mantenha a sala com a porta fechada, lá de longe os colegas ouvem Deoclécio repetir:

- Quinta, sexta, sábado e domingo. Faltam quatro dias... quinta, sexta, sábado e domingo. Faltam quatro dias...

Considerando que hoje é quarta, só se pode imaginar que Deoclécio se refira mesmo à eleição. Teria ele algum parente candidato? Seria vontade de votar? Alguma coisa a ver com a democracia?

Ontem Deoclécio passou pelos picotadores de papel oitenta jornais. Eram quatro publicações diferentes. Até as páginas de esporte e de resumo das novelas foram picotadas.

Hoje, até estas horas da tarde, noventa e sete jornais já foram picotados. Faltam mais vinte e três, isso se não aparecer mais alguns, tardios.

E Deoclécio, debruçado sobre a escrivaninha, no intervalo entre o correr de um picotador a outro:

- Quinta, sexta, sábado e domingo. Faltam quatro dias... quinta, sexta, sábado e domingo. Faltam quatro dias...

A repetição mexe nos nervos dos colegas. Juanita, operária da zeladoria da empresa, foi nomeada a encarregada de ensacar os papéis picotados e dar um fim neles. Ela até tentou tabular conversa com Deoclécio:

- Deo... Deozinho... por que você está repetindo isso desde cedim?

A resposta foi um silêncio constrangedor. E enquanto Juanita permaneceu no local Deoclécio não repetiu. Mas foi ela bater a porta pelo lado de fora e veio:

- Quinta, sexta, sábado e domingo. Faltam quatro dias... quinta, sexta, sábado e domingo. Faltam quatro dias...

Irritante. Só no final da tarde a auxiliar da assistente da secretária executiva, ao abrir equivocadamente um comunicado endereçado a Deoclécio, desvendou o mistério.

Dizia o comunicado que estava confirmada a transferência de Deoclécio para o setor de lavagem de copos descartáveis após as eleições de sete de outubro.