Passou a febre. Estava em trinta e nove e desceu
dois pontos. Mas ainda sinto calafrios. Mamãe dizia que quando ela vem por
dentro essa sensação perdura às vezes de um dia a outro. É mais ou menos o que
acontece quando dá dor de ouvido.
Uma pontada aguda faz a gente parecer que tem
tiques: a cabeça estremece e o rosto vira para o lado, ao mesmo tempo em que os
lábios ficam contorcidos e as rugas marcam sucos fortes na testa.
Eu já me vi no espelho durante uma crise de dor de
ouvido. Fiquei assustado com o que apareceu diante de mim. E os olhos já esbugalhados
tornaram-se terríveis. Que cena!
A pressão também baixou, por isso descuido no sal. A
calmaria tem um motivo mais ou menos razoável. É tudo porque ontem, sete de
outubro de dois mil e doze, votei. Acreditem. Foi, de fato, o voto mais
ideológico que apertei no botão verde da urna eletrônica nestes últimos tempos.
Eu tanto queria dizer: foi o voto mais ideológico que depositei na urna...
Então devolveram o meu título de eleitor e o
documento com foto. Eu tinha um sorriso de contentamento que impressionou a
mesária, uma senhora lá dos seus cinquenta e tantos anos que demorou meia vida para
achar o meu nome na lista do tribunal eleitoral.
“É com dáblio, senhora. É com dáblio.” E ela em
outra letra me procurando. Em contrapartida, foi-me a senhora muito simpática
na saída: “O senhor está com este sorriso leve no rosto por ter praticado a
democracia?”
Em outra circunstância eu diria que só tenho sorriso
no rosto. Os sucos que tenho na barriga são gorduras que se destacam quando
sento. Quanto à democracia! É melhor não responder nada.
Em outra ocasião eu abriria um discurso profundo e
diria que o voto é o caco da democracia, pois votando estamos apenas escolhendo
os nossos representantes políticos. Depois é que vem o duro do ofício de ser cidadão:
fiscalizar, denunciar quando preciso, exigir postura, procedimento, caráter,
ética, moral e personalidade.
Ah, e conhecimento. Um candidato a vereador colocou
entre suas propostas que se eleito defenderia os projetos de interesse da
coletividade. E se não fosse assim, que outros interesses ele defenderia? Outro
propôs uma política para os animais da cidade.
Medi o tamanho da cabeça dele para ter uma idéia da
quantidade de massa cinzenta dentro daquilo. Conclui que pela pequeneza de
conteúdo no lado do cérebro que comanda a inteligência, o que ele propunha era
uma câmara de vereadores para cães, outra para gatos, uma maior para os equinos
e os frigoríficos para bois, frangos e suínos. Descartei a possibilidade de ele
frequentar restaurantes exóticos para comer torresmo de casca de cágado. Ele
não tem glamour para isso.
Por isso meu voto foi ideológico. Votei em quem
ainda sabe o que é ideologia no contexto partidário e, enfim, na formulação de
uma proposta de trabalho mesmo que o documento tenha fim exclusivamente
eleitoreiro.
O meu voto ideológico foi para o menos votado. Mas
estou consciente e em paz com a minha consciência. E dormi feito um anjo. Que
madrugada recompensadora eu tive!
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