Cabelinho pixaim, minha colega do terceiro ano do
curso primário, lá atrás no ano de 1965, era como eu parte de uma turma heterogênea
naquela escola pública da Vila Nova, em Londrina. O Grupo Escolar Nilo Peçanha,
na Rua Araguaia, reunia estudantes de famílias diferentes economicamente.
Ricos, quase ricos, remediados, pobre e miseráveis matriculavam seus filhos
ali.
A Rua Araguaia era a única via do bairro calçada com
paralelepípedos. Asfalto só se via acima da linha férrea, umas quatro quadras
acima.Sapatos masculinos tinham que ter cadarços naquela época. Nada a ver com
algum tipo de preconceito. É que em dias de chuva os esportivos atolavam no
barro.
Meu pai era dono de uma bicicleta cargueira e vendia
peixes nas ruas. Minha mãe era costureira. Eu estava com nove anos de idade e
noção de ter ou não ter dinheiro passava longe. Só anos mais tarde, numa
conversa com minha mãe, soube dela que em determinados momentos passamos a pão
e mortadela. Mas nunca sentimos fome.
As minhas roupas e os meus calçados eram simples,
disso eu me lembro. Um par de sapatos Vulcabrás novos sempre foi muito
festejado. Imagino que minha colega de cabelo pixaim enfrentava em sua casa
privações até piores. Ela nem bolsa escolar tinha. Carregava os materiais numa
sacola.
Um dia minha coleguinha levou um bolo, assado
naquelas formas feitas de lata e vendidas nas ruas. Quando a professora Denise
entrou na sala e logo após a oração diária, minha coleguinha anunciou: “Professora,
eu trouxe um bolo para repartir na hora do recreio. Minha mãe só pediu para
explicar que na hora que ela foi bater o bolo não tinha açúcar em casa. O bolo
ficou sem doce”.
A gargalhada foi geral. Eu juro: não sei se eu
gargalhei e se eu gargalhei ignoro se foi em tom de ironia ou por achar graça
do jeito da minha coleguinhas dizer que o bolo não tinha açúcar. Não sei mesmo.
Quarenta e sete anos passados, eu tento me convencer
que se eu gargalhei foi de achar graça da minha coleguinha. Ela sentava na
minha frente e por ser discriminada pelas outras meninas da classe conversava
muito comigo. Isso me conforma. Tento assim assumir que eu apenas achei graça.
Jamais gargalhei de deboche.
Me conforma também eu ter ciência que eu e minha
coleguinha éramos iguais. Simples, sapatos sujos de poeira, roupas básicas e
aquele comportamento típico dos pobres no meio de uma turma com ricos: meio
acuados e pouco participativos com medo de falar e mostrar a boca desdentada.
Mexo na memória para saber qual foi a reação da
professora. Enquanto não consigo enfiar a mão para vasculhar essa parte faço de
conta que a professora Denise soube, de um jeito soberano, fazer com que a falta
de açúcar no bolo feito pela mãe da minha coleguinha fosse algo normal e
corriqueiro na casa de qualquer pessoa, rica, pobre, remediada, miserável ou
quase lá.
Aquele bolo foi o meu lanche no meio da manhã. E eu
lembro dele e da minha coleguinha em diferentes momentos dos meus dias. Às
vezes em frente das panificadoras, outras nas estantes dos supermercados. E
lembro também quando passo por uma mulher de cabelo pixaim. Como estaria a
minha coleguinha hoje?
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