sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Crônica - Meu lanche do meio da manhã


Cabelinho pixaim, minha colega do terceiro ano do curso primário, lá atrás no ano de 1965, era como eu parte de uma turma heterogênea naquela escola pública da Vila Nova, em Londrina. O Grupo Escolar Nilo Peçanha, na Rua Araguaia, reunia estudantes de famílias diferentes economicamente. Ricos, quase ricos, remediados, pobre e miseráveis matriculavam seus filhos ali.

A Rua Araguaia era a única via do bairro calçada com paralelepípedos. Asfalto só se via acima da linha férrea, umas quatro quadras acima.Sapatos masculinos tinham que ter cadarços naquela época. Nada a ver com algum tipo de preconceito. É que em dias de chuva os esportivos atolavam no barro.

Meu pai era dono de uma bicicleta cargueira e vendia peixes nas ruas. Minha mãe era costureira. Eu estava com nove anos de idade e noção de ter ou não ter dinheiro passava longe. Só anos mais tarde, numa conversa com minha mãe, soube dela que em determinados momentos passamos a pão e mortadela. Mas nunca sentimos fome.

As minhas roupas e os meus calçados eram simples, disso eu me lembro. Um par de sapatos Vulcabrás novos sempre foi muito festejado. Imagino que minha colega de cabelo pixaim enfrentava em sua casa privações até piores. Ela nem bolsa escolar tinha. Carregava os materiais numa sacola.

Um dia minha coleguinha levou um bolo, assado naquelas formas feitas de lata e vendidas nas ruas. Quando a professora Denise entrou na sala e logo após a oração diária, minha coleguinha anunciou: “Professora, eu trouxe um bolo para repartir na hora do recreio. Minha mãe só pediu para explicar que na hora que ela foi bater o bolo não tinha açúcar em casa. O bolo ficou sem doce”.

A gargalhada foi geral. Eu juro: não sei se eu gargalhei e se eu gargalhei ignoro se foi em tom de ironia ou por achar graça do jeito da minha coleguinhas dizer que o bolo não tinha açúcar. Não sei mesmo.

Quarenta e sete anos passados, eu tento me convencer que se eu gargalhei foi de achar graça da minha coleguinha. Ela sentava na minha frente e por ser discriminada pelas outras meninas da classe conversava muito comigo. Isso me conforma. Tento assim assumir que eu apenas achei graça. Jamais gargalhei de deboche.

Me conforma também eu ter ciência que eu e minha coleguinha éramos iguais. Simples, sapatos sujos de poeira, roupas básicas e aquele comportamento típico dos pobres no meio de uma turma com ricos: meio acuados e pouco participativos com medo de falar e mostrar a boca desdentada.

Mexo na memória para saber qual foi a reação da professora. Enquanto não consigo enfiar a mão para vasculhar essa parte faço de conta que a professora Denise soube, de um jeito soberano, fazer com que a falta de açúcar no bolo feito pela mãe da minha coleguinha fosse algo normal e corriqueiro na casa de qualquer pessoa, rica, pobre, remediada, miserável ou quase lá.

Aquele bolo foi o meu lanche no meio da manhã. E eu lembro dele e da minha coleguinha em diferentes momentos dos meus dias. Às vezes em frente das panificadoras, outras nas estantes dos supermercados. E lembro também quando passo por uma mulher de cabelo pixaim. Como estaria a minha coleguinha hoje?


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