quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Conto - Persistência


Até usos recentes a camisa folgava o suficiente para respirar. Agora aperta na altura do peito e causa aflição. Lembra uma corda prendendo o corpo ao encosto da cadeira. Neste sufoco aumenta a impressão que a liberdade, já distante, cada vez mais viaja a um lugar imaginário onde jamais será possível chegar para resgatá-la.

O velho escriturário é magro. O peso caiu pouco mais após a pneumonia do último inverno. Se há excesso na barriga ninguém percebe quando o trabalhador se põe de pé. É levemente visível na cadeira por força da lei da gravidade. Só ao ficar sentado a gordura despenca e forma as dobras. Saliências e sucos se intercalam. Mas esse não é o motivo do aperto pouco acima, pois vê-se que o pano sobra ao redor.

Nem se cogita também que os peitos cresceram. Diziam nos intervalos das brincadeiras de rua, lá nos tempos de trás, que menino viciado em masturbação ficava com as tetas iguais de meninas. Agora, a esta idade, pesava no velho escriturário a indisposição para este tipo de prazer, embora a vontade persistisse como outrora.

É provável que o aperto venha das costas. Nada, porém, relacionado ao pulmão ainda vigoroso, embora a pneumonia tenha sido recente. O problema é a corcunda que se acentua e leva o trabalhador a envergar o corpo para frente, sentado ou de pé. Então, quando tomado pela sonolência, a cabeça cai levemente para a frente, os ombros declinam e o calombo aponta, repuxando a camisa bem naquele ponto.

É um cochilo leve e rápido durante o expediente. O velho escriturário imagina que nunca o flagraram dormindo no trabalho. Mas há dois registros que o contrariam, apesar de ninguém ter cobrado aqueles momentos com rispidez. Num deles a jovem recepcionista tocou seu ombro esquerdo com solidária delicadeza e perguntou com voz maternal se estava se sentindo bem. E ele respondeu que havia emprestado um minutinho para fechar os olhos e descansar as vistas.

No outro o velho trabalhador foi dominado por um pesadelo de provocar suor. Alguém o pressionava contra uma parede, empurrando justamente a parte do corpo onde a camisa apertava. E faltava respiração. Nem força para gritar socorro havia. Nesta vez o próprio escriturário se censurou pelo descuido, após despertar ao ouvir no próprio sonho um ronco pesado e forte.

Sessenta e quatro anos de vida e trinta e cinco anos de registro em carteira. O velho trabalhador espera a aposentadoria. Ele quer aposentadoria integral. Jamais imaginou parar sob o efeito negativo do fator previdenciário. Faz poucos meses ele recusou proposta de entrar com o procedimento, mesmo a empresa provando que os doze meses nenhuma diferença fariam no valor que iria receber.

Mas ele teimou. Não por causa do valor. O que o faz enfrentar diariamente a jornada de trabalho é um orgulho que só quem já trabalhou tanto tempo sabe o que é. E quando não houver mais trabalho sabe-se lá o que pode acontecer. As dobras da barriga podem aumentar, a corcunda deve apertar mais a camisa na altura do peito e nos minutinhos roubados para o cochilo há de acontecer outro pesadelo tão incômodo como o anterior: o do vazio que faz do rosto o reflexo de um sentimento de solidão e tristeza.


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