terça-feira, 23 de outubro de 2012

Conto - Inversão acentuada


Perder o rumo. Sempre certinho, Joaquim sempre se imaginou fora da linha. Coragem é que lhe faltava para pisões extras. Como se andasse por calçadas revestidas de pisos milimetricamente assentados, o menino seguia reto. Cabeça levantada, pernadas medidas, velocidade acima da média e braços cadenciados. Sincronia em tudo, podia-se dizer.

Tanto que nunca os sapatos de cadarço foram condenados por desgaste nas solas. Os pares ganhavam o descarte por envelhecimento. Depois, na adolescência, as calças boca de sino se mantinham inteiras nas barras. É que não havia aquele esfregar de pano debilitando o tecido. Jamais a mãe de Joaquim teve que refazer costura ou tapar buraco com cerzido.

Jovem, o filho de dona Armênia fez questão de servir no Tiro de Guerra. De tão disciplinado nunca pegou guarda. As botas brilhavam que nem ouro preto e no exercício de limpeza da arma Joaquim conseguia arrancar elogios do sargento. Não foi por menos que no sete de setembro o moço foi escolhido para conduzir o pavilhão nacional.

O bom modo foi também receita básica do período de namoro. Foram seis anos de procedimentos catalogados. Pegar nas mãos só depois de três semanas. O primeiro abraço, na quinta semana, foi frio e formal. Joaquim parecia o presidente do Senado recepcionando o embaixador do Alasca.

E beijo, não pinta nesta jogada? A pergunta era feita para si mesma por Eneida, a futura consorte. Ela nunca se atreveu a questionar o namorado sobre o sim ou não das travessuras de um casal jovem. Ele, aliás, já havia antecipado: “Aquilo a gente só faz depois de casados”.

O noivado, que durou mais cinco anos, começou com uma festa parecida com a do padroeiro: churrasco, bolo, cerveja para os tarimbados e refrigerante para os que estavam no caminho. Um baile com música de sanfona terminou cinco minutos antes da meia noite.

Então chegou finalmente o casamento, onze anos depois, quando Joaquim já estava formado em contabilidade, tinha comprado um carro e acabara de financiar uma casa. Havia planos de, muito em breve, comprar uma casa na praia ou uma chácara.

Eneida já nem sabia que tipo de sentimento predominava naquela relação. De comportamento um tanto mais adiante que o do marido, ela se punha a refletir sobre eventos circunstanciais durante todo o período de namoro e noivado. Admitia-se ter sido tentada. Por quatro ou cinco vezes admiradores se manifestaram.

Um deles não sabia do comprometimento e quando soube caiu fora. Outro conhecia a ambos e era maldoso. Propunha passeios e lanches sorrateiros. Aquele outro vestia-se de amigo e tencionava seduzi-la com elogios. E veio o cara de pau que travou intimidade e foi direto. Em pouco tempo manifestou que o interesse era um caso e que ninguém precisava saber.

Eneida resistiu. Manteve-se virgem de carne, mas tinha dúvidas da própria reputação quando o assunto era o “eu” que ela trazia dentro de si. A vida conjugal seguiu enfadonha. Mas sobrava uma boa condição de vida, com macarronada nos domingos, pizza sábado e carne todo os outros dias.

Ela imaginou ter se purificado. Nunca mais pensou em extra, embora, já casada, sofresse assédios de açougueiros, cobradores de ônibus, padeiros e até entregadores de supermercados. Ele pirou. Sem dizer nada a ela, jogou para a cônjuge toda a culpa do marasmo conjugal.

E para desforra, está tendo um caso. Encontra-se três vezes por semana com a alma gêmea. Joaquim tem um consolo. Namora escondido um colega de trabalho.


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