terça-feira, 31 de julho de 2012

Crônica - Política e salada mista? Dá bagunça!

Acordou reclamando: “Terminei a noite sem prefeito e acordei sem prefeito”. Costume ruim o desse cara. Nada nunca é perfeito. Há sempre um motivo para queixas: “Saíram os lobos e entraram as raposas”. E já a caminho do trabalho encheu a paciência do porteiro do condomínio: “Aquele babaca que saiu pulando para comemorar a cassação devia ficar encolhido. Deve tanto quanto o cassado”.

Políticos que roubam costumam culpar os meios de comunicação quando são denunciados. Injustiça isso. Claro, tem muitos picaretas fazendo jornalismo. Ou tentando. Mas no geral, exceto falta de cultura e preguiça de alguns profissionais contratados por jornais, rádio e televisão, a maioria tem um compromisso com o leitor. Ficam de fora também os que conceberam, os que autorizaram, os que endossam, os que anunciam e os que fazem aquele jornalzinho novo chamado Nosso Dia, lançado pela Folha de Londrina. A quem? Aos malucos, é claro. Esta é linguagem que adotaram. E o princípio é popularizar baixando o nível. Isso é cultura. Claro, cultura para chafurdar. E a classe média emergente não entende como foi jogada tão baixo pelos donos da publicação.

Mas voltando ao nosso cara. Este temos certeza que a culpa da revolta é a internet. Ele não escuta rádio AM, não lê o Jornal de Londrina, não passa os olhos pela Folha, não assiste os repórteres da TV Coroados declamando poesia em texto policial, não seca a baba dos apresentadores de programas policiais de outras emissoras, não assiste o Pedro Bial e a Fátima Bernardes, não pega receitas da Ana Maria Braga, não perde tempo assistindo o Clayton Conservani correr e chorar, chorar e correr, correr e chorar.

Então a culpa é da internet mesmo: “Estou quase assimilando o popularzão do rouba mas faz”. Como reclama este cara. “Que o cara devia, isto é verdade. Mas não me conformo acordar sem prefeito. Porque aquele que vai assumir não tem cara de prefeito. Me lembra um certo governador: bonitinho, mas tão parado...”

Nessa parte o cara se compromete. Compromete sim. Primeiro se queixa de acordar sem prefeito. Depois chama o certo governador de bonitinho. E o que vai assumir é feio que dói. Fosse prefeita e governadora ainda vá lá. Mas prefeito e governador? “E tira dessa lista aquela senadora. Acho que ali só tem botox. Atente-se que eu não estou falando de uma figura investida no cargo de prefeito ou governador. Estou falando de uma cidade órfã”.

Jogou pesado o cara. Figura investida no cargo? O que e como seria isso? Quanto à cidade órfã, concordamos. Na verdade, tentamos explicar ao cara que Londrina está órfã de políticos sérios há tempos. Um deles foi cassados há 12 anos. Entrou o seu vice e cumpriu tabela. Outro foi eleito e ficou oito anos no ócio. Nem fez e muito menos desfez. E o que foi mandado embora agora, coitado, caiu por uma contravenção pequena diante de suspeitas grandes que ficam blindadas.

E o cara não se convence. Xinga, esperneia, agride: “Celso Daniel, mensalão, Demóstenes Torres, Carlinhos Cachoeira e este vôlei brasileiro afundando aos poucos. E o Lula lá, fazendo de conta, cabelos pintadinhos de loiro. Vou para as tendências, é o jeito. Começo cantando: eu quero tchum, eu quero tcha, no gargalo da boquinha da garrafa para contentar a minha ex-my love que vale mais ou menos nove e noventa e nove...”


segunda-feira, 30 de julho de 2012

Conto - Receio

Cacos de gelo derretem e a água em que se transformam seca. Quanto menor for o fragmento mais rápida é a evaporação. Está na lógica. É fundamento científico e dispensa estudo. Com sol e verão o tamanho do tempo encurta. Com frio ou chuva a resistência é maior. Mas seca. Em qualquer clima, noite ou dia.

Então dá medo quebrar o gelo. Vigora uma espécie de covardia, vencendo-se a tentação de apressar o passo. Ou estanca-se, vestindo de cima abaixo a carapuça dos que temem sair do lugar. O imóvel é a reação dos que não tem ação.

Óbvio e trivial, estes conceitos são necessários. Tem de ser enfatizado quando se quer a consciência de que é preciso se mexer. Adiantar, atrasar, ladear, contornar, avançar, perder, vencer, recuar e derrotar-se. São verbos ou muito mais.

Assim como amar. Diante dos cabelos lisos de uma mulher cujo coração se pleiteia, a conjugação é arriscada. Tudo vai bem por enquanto, neste tempo de um querer consentido, mas não assumido. Uma palavra de lá e uma resposta de cá, outra palavra de cá e uma resposta de lá. É ambiente de simpatia e acato, nada denuncia antipatia e desacato.

Quebrar o gelo é um risco quando não se sabe o que o outro lado espera: manter as insinuações ou provocar? A mulher de expressão cativante estimula só com o olhar. Complicado, porém, saber o que ela pede. Amor, paixão ou simples amizade?

Já houve momentos mais ousados, é verdade. Foi quase no ponto de uma declaração direta. Sem rodeios e acima das linhas das metáforas. Bastariam algumas palavras proferidas num tom audível. Nem baixo nem alto, apenas firmes na pronúncia e sem enfeites na construção. Uma pequena frase, mas capaz de provocar grandes efeitos. Isto seria quebrar o gelo.

Olhos nos olhos, coração no coração. E os cacos, se ocorrerem, pelo menos dissiparão a umidade de um estado de espírito. Ou quem sabe dois, o de um lado e o de outro. E ambos prosseguirão com mais liberdade para ir, voltar, recuar, ladear, contornar, fazer e desfazer. Não terão mais que inventar palavras e encenar reações quando um diante do outro. Se quiserem, poderão manter um frágil sentimento escorado na tese do amor platônico, aquele que nunca acontece porque se ocorrer transforma o gelo em cacos.

Declarar amor é tão complicado quanto amar.

   

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Conto - Favo de Mel

Tão doce! Esparramado na boca leva à cabeça a sensação de plenitude. Cor de ouro, o licor faz flutuar e a inconsciência dos efeitos levanta questões lúcidas: mantê-lo na boca ou engolir?

Devaneios são temporais. Chegam e vão sem avisos. Duram o tempo que for preciso e quem estabelece esta regra é o acaso. Inútil tentar prolongá-los. Desnecessário pensar em abreviá-los, pois eles se vão muito antes da percepção de uma indesejada presença. Partem enquanto há deleite.

Favo de Mel! Foi assim que eu a conheci. Tal qual o prêmio das abelhas aos que ousam provocar os enxames, o beijo dela era alucinante.

Entrei indefeso e atordoado na armadilha que ela armou. Sem luvas, cara e peitos descobertos, pés descalços avancei pela trilha que ela riscou em seu bosque. Venci labirintos e refiz trechos, sujeito às condições que ela impunha após cada trecho percorrido.

Foi um tempo sem medida, nem longo e nem curto. Se choveu durante o caminho a água foi bem-vinda. Se a estiagem secou a umidade o calor que veio foi agradecido. Frio nunca senti. Nem sono e cansaço. A preguiça embrulhei e deixei num canto lá atrás.

No fim da trilha ela armou a sua arapuca: o coração aberto, feito uma vasilha que mel não tinha a transbordar. Mas derramava amor, tão doce e licoroso quanto o líquido alucinógeno de ouro catado dos favos que as abelhas, desafiadoras e provocativas, escancaram aos olhos dos desprevenidos.

Enchi a boca com os beijos dela. Transbordei meu coração com o amor dela. Favo de Mel! Assim ela se apresentou a mim. Agora ela me deixa amargo num lugar sem armadilhas. Ela fechou a sua arapuca e me deixa fora. Eu volto daquela consentida prisão e penso que nunca estive atado por inteiro. Só senti o sabor precário da plenitude e fugi, como fazem todos os que apenas aceitam o doce.  


quinta-feira, 26 de julho de 2012

Crônica - O lado de lá

Carece de empurrões, mas a vida anda por aqui. Nem sempre na velocidade desejada. Às vezes é um vagar irritante. Em outras ocasiões a ligeireza põe a gente a correr e suar muito.

Construí um muro na beira da picada por onde a vida passa, logo ali. Sem tijolos, nem cal e cimento, é uma divisória imaginária cujas cores variam com o estado de espírito da gente.

Já o vi suave, num azul ou verde que não machucam os olhos. Mas também o fiz flamejante, em um vermelho cansativo ou em um amarelo torturantemente brilhante.

Daqui enxergo o outro lado quando me convém o muro transparente, feito um vidro que reflete as imagens como um espelho. Eu, inclusive, me enxergo nele enquanto vejo o que acontece no outro lado.

É o resultado de uma consciente e assumida insanidade. Nada próximo do ver para crer, que não passa de coloquial reservado para as coisas materiais. Pior ainda, é discurso e raramente chega à prática. Quando ocorre não se traduz.

Ver para crer um carro, uma pessoa, uma cena de infidelidade dentro das paredes alheias, uma prova de amor? Quanta preocupação com o que não nos diz respeito. Certos eventos melhor que fiquem apenas na caixa das dúvidas, trancafiados.

A insanidade que eu digo é aquela além das possibilidades. Digo e pratico. Quase um sonho, permite tirar os pés do chão e voar por ambientes distintos. Agora eu sofro por um grande amor e amanhã ou daqui a instantes o tenho. De uma cena a outra a transforma de loira a morena, alta ou baixa, gorda ou magra, feliz ou triste.

Fantasia! Deixando-a do lado de cá do meu muro eu a faça pobre e reprimida fantasia. Quanto mais além da divisória que não se vê as asas se abrem e rompem espaço e tempo. É por ali que eu vou, sempre num pulo. Mas se quero ser lento envio-me devagar.

A sanidade consentida é tirana e mata aos pouco. A pontada de loucura faz bem por arredondar a vida na medida em que a gente a molda, com as mãos, controlando-a para que um fio, mesmo que frágil, permita-nos a ciência de saber que a verdade está em um lado, inerte e carrasca. No outro vigora o que queremos. E vai que aconteça!


quarta-feira, 25 de julho de 2012

Conto - Todos os dias da vovó

A preocupação risca o rosto de Alice de rugas. Marcas profundas tiram a lisura da pele da testa. Formam um mapa de sucos e relevos, quase horizontal, mas ovalados nos cantos. Completam o desenho os olhos negros, fixos no distante e ausentes do aqui. E como retoques, nos lados e abaixo dos globos oculares, as tiras se estendem simétricas, umas mais longas e outras curtas, carimbando a idade de uma mulher de abundante intempéries: muita chuva e muito sol castigaram aquela pele.

São traços marcantes. Dão a leitura de uma personalidade forte a Alice. Morena quase mulata, cabelos nem tanto pixaim mas ondulados a ponto de enroscar escova, ela parece guerreira no conjunto em que se apresenta: estatura de uns um metro e sessenta, pouco mais ou pouco menos, suportada por um peso equilibrado. Alice não passa de sessenta e dois quilos.

Veste-se com discrição. Moradora de um bairro que se não abriga a classe média está quase lá. Ainda lhe fica bem um jeans e uma blusa de malha, cuja cor invarialmente é sóbria. Azul escura, preta, cinza ou branca são as preferidas. Nada de estampas e muito menos modelos fora dos convencionais. Nos pés Alice caminha sobre sapatos fechados de meia altura, pretos ou marrons. Injusto dizer que ela passa despercebida. Apesar da simplicidade Alice ainda rouba olhares. E olha que ela já está além dos cinqüenta!

Projetá-la vinte anos mais nova levaria a um rosto delicadamente bonito num corpo perfeito nas medidas. Ou menos: quinze ou dez anos, por exemplo, arrancam cenas imaginárias promissoras. Sim, Alice sorri quando o momento exige. Mas não é um riso rasgado. Nunca. É medido. Ou melhor, contido. No resto é uma expressão serena que denuncia levemente a preocupação constante com alguma coisa, o que faz as rugas riscarem o seu rosto com mais sucos e elevações.

O que preocupa Alice? Os filhos já decidiram seus rumos. No passado alguns deles embranqueceram mais cedo alguns fios dos cabelos. Mas em circunstâncias contornáveis, tipo problemas familiares comuns, de soluções fáceis e curto prazo. As finanças estão em dia. Claro, carece de abundância, porém evita lamentações. O financiamento da casa depende de algumas parcelas, dezoito ou no máximo vinte. O carro, já quitado, nem custo elevado de combustível tem. O marido, aposentado, toca uma empresa de cópias e encadernações e venceu a fase de mexer com mulheres alheias para tentar usufruir do bom fruto.

O que será? Netos, é a resposta. Alice os assumiu como uma causa. Rouba-os dos pais, quer decidir na formação deles, briga com os filhos, as filhas, os genros e as noras quando teme perder o controle. E enfim, se estressa. Assim deixa de viver e permite que a vida estampe em seu rosto a cara de alguém que nunca se preocupa com ela própria, mas se entrega demasiadamente nas questões alheias.



terça-feira, 24 de julho de 2012

Conto - Catapultas

Bolas de fogo cruzavam os céus em trajetórias certeiras lá distante, onde inimigos caiam em chamas. Do primeiro ao último disparo os ponteiros do relógio avançavam preguiçosos e lentos. Irritantes, teimavam no tic que retrucava no tac. Sem parar, por segundos, minutos e horas, marcando o tempo esquizofrênico de uma guerra invisível.

Nenhum estrondo se ouvia e nunca uma labareda clareou a pequena sala. Mas seu ocupante, solitário, guerreava contra si próprio empunhando de espadas a rifles. Ele também tinha uma catapulta que jamais alguém que ousou participar de alguma batalha enxergou. É dela que saiam os pesados artefatos em chamas. Atravessavam os vãos das janelas e nunca eram desperdiçados. Fulminantes, descartavam a possibilidade de sobreviventes.

Oitenta e poucos anos. Diziam dele os familiares que o idoso fazia agora a guerra da qual ele nunca foi. Nem sabiam, porém, se em algum momento da vida o velho quis estar numa batalha. Mais por conformismo, nunca por razão, achavam que aquilo era normal: conflitos imaginários como nos anos da infância, quando pedaços de madeira faziam as armas cujos estampidos saiam da boca. Com voz fina pareciam revólveres de pouco calibre. Na voz grossa eram mortais. Com fôlego viravam metralhadoras. No cansaço das correrias eram apenas disparos sem repetição.

Amigos também entravam nas lutas. Sim, apenas os amigos, poucos, porque os que apenas o conheciam de uma conversa ou outra evitavam combates. Difícil armar uma catapulta invisível com bolas que não podiam ser tocadas. Sabia-se apenas que pesavam e muito, a ponto de obrigar quem se atrevesse a pegá-las a um esforço incomum. E o velho queria guerra, com a ajuda de quem quer que fosse a entrar naquela sala. Os inimigos, afinal, existiam. Ficavam além da janela. E não dar combate a eles era aceitar provocações que o incomodavam.

Maldita esquizofrenia. Quais eram os aliados? De que tamanho era o exército contrário? Houve quem dissesse que foram tantas as guerras enfrentadas pelo idoso até chegar aos seus oitenta e poucos anos. A guerra contra o desemprego em alguns momentos da vida. A guerra para educar os filhos. A guerra para pagar a prestação da casa. A guerra para conquistar os genros e as noras. A guerra para ter o carinho dos netos. Tantas guerras, como esta de agora na sala da casa que ele comprou, pagou e agora faz dela o seu campo de batalha.



segunda-feira, 23 de julho de 2012

Crônica - Vento, frio e medo

Venta e faz frio nesta noite de julho. Fosse apenas pela sensação de gelo fora da coberta eu me levantaria para conferir a janela da cozinha. O que sinto, porém, é medo. Muito medo.

É uma janela de tábuas. Sem trinco de metal e nenhum cadeado, ela é presa por uma taramela de madeira, fixado com um prego. Há tempos ela gira com facilidade. Nas tardes de sol, enquanto se espera a fervura da água do café no fogão a lenha, feito de cimento, brinca-se batendo com os dedos em uma de suas quinas para fazê-la girar, feito uma hélice de avião. Ou um ventilador, já que não temos um em casa embora a necessidade de mamãe seja a de tê-lo para aliviar o calor diante da máquina de costura.

As tábuas da janela são presas por duas dobradiças. São quatro madeiras presas com duas ripas, uma em cima e outra abaixo, também com pregos que enferrujaram com o tempo. O peso faz com que o conjunto saia do esquadro constantemente. Às vezes a janela não fecha, outras vezes, quando precariamente consertada, joga nos cantos e fica frouxa. A parede que a sustenta nem batente dispõe. É, na verdade, apenas um corte, um buraco aberto para existir naquele lugar uma janela.

As dobradiças, aliás, estão precárias. Já me referi a elas linhas atrás, mas evitei detalhes do estado em que se encontram. Enferrujadas, tortas e presas com arame, porque de tanto tempo que a casa existe nem os parafusos se sustentam nas madeiras.

Mas não é disso que tenho medo. Os arame estão seguros e a fresta que mostra o lado de fora, por falha na junção das tábuas e o envelhecimento da mata junta já nem me preocupam.

Tenho medo que o vento bata na janela, aproveite-se da folga e faça a taramela girar. Se isso acontecer a janela se abrirá. Mas não é o vento que poderá invadir a casa que me dá medo. Tenho medo dos monstros que mamãe me disse, invadem as casas precárias para roubar coisas que estão dentro delas.

Temos muito pouco em casa, é verdade. O que é meu está num canto da cozinha, atrás da porta que também é de madeira, tem frestas e dobradiças precárias. Mas a porta tem um trinco de metal, diferente da janela que só é presa com a taramela. Guardo naquele lugar um vidro com bolas de vidro, uma pipa que montei ontem à tarde e a linha enrolada numa lata de óleo. É pouco, mas é meu.

Também se me levarem só isso quando alguém entrar pela janela dou-me por conformado. Só não quero que o monstro leve minha mãe e minhas três irmãs. Porque se o monstro fizer isso ficarei sozinho e não terei mais motivo para ficar naquela casa.

Faz tanto tempo que morei lá. Mas ainda sonho com ela em noite de vento, frio, janela batendo e muito medo. Mamãe foi para o céu, tenho certeza disso. E é ela que vem me despertar dos pesadelos de agora que são freqüentes. Sinto calafrios.


sexta-feira, 20 de julho de 2012

Conto - Barulho e movimentos

Vem de longe a gritaria das crianças no intervalo das aulas. É quase música os sons que se misturam: gritos, chamados, cantigas e assovios. Um motorista buzina. Outro arranca e ronca o motor acima da potência do enlatado. Pneus rangem no asfalto e o sorveteiro entoa sua canção de improviso na gaita de plástico. Deve ter sol lá fora. Os dias de chuva são mais quietos.

A vida passa apressada diante dos olhos da velha senhora. Bons tempos aqueles de anos passados. Os barulhos podiam ser vistos. Sim, olhados com os olhos, da janela ou da porta, por cima do muro de cimento, pela fresta das cortinas ou sob a sombra das árvores da praça. E entre o final da tarde e o começo da noite, no momento em que a escuridão ainda é um manto transparente, ouvia-se até os beijos dos namorados e via-se casais abraçados.

A vida passa arrastada diante dos olhos do desempregado. Bons tempos aqueles. Saia-se do trabalho ainda com sol mesmo nas estações frias, quando a luz do dia se rendia mais cedo. E se ouvia e se via. Crianças na saída das escolas, ônibus estremecendo o asfalto, correrias, vida e outras cenas tão comuns quanto curiosas. Até os passeios dos casais de aposentados, lentos e de mãos dadas, contavam histórias de enredos variados: sucesso, estremecimentos, reconciliações, idas e vindas.

A vida passa empurrada para os desiludidos. Bons tempos. Quando havia possibilidades e ouvia-se música para ver o velho vinil rodar na vitrola, enquanto corações apaixonados entravam na melodia e assumiam a voz de quem cantava. Era ela cantando para ele e ele cantando para ela num palco íntimo. De tamanha exclusividade que até a agulha da vitrola encerrar o passeios pelos sucos que davam o som podia-se amar.

A vida passa. Bons tempos. O barulho agora não comove. Assume-se o silêncio. Nada se ouve e nada se vê. A sirene pede passagem. É mais um acidente em algum lugar. Nada mais que isso. Lá fora a vida passa. Aqui dentro nenhum som tem movimento.


quinta-feira, 19 de julho de 2012

Crônica - Enfim, amiga!

Eu que a tenho como criança misturo sentimentos agora, quando você se põe mulher. Está namorando, é? Quem é o fulano? O que ele faz? É educado? Estuda? Tem boa aparência? Ah, trabalham juntos! Isso é complicado, menina. Qualquer olhar atravessado de um ou outro para terceiros ou terceiras deflagra crises. Algumas duram a eternidade de uma tarde inteira.

Sei muito bem disso minha carinha. Já enfrentei. Faz muito tempo, mas ainda guardo alguns desses momentos. Admito que essa situação confunde. Eu ainda não sei se faz bem ou mal lembrar de coisas que torturaram. Me parece que dá vontade de reviver.

Ah, muito cuidado com os sentimentos e seus conceitos. Tenha sempre definições claras. A paixão, por exemplo, neste primeiro estágio do namoro é só um fogo que dá vontade de beijar, abraçar, acariciar, ficar junto, sonhar com o futuro e enfim, se entregar. Mas modere-se. Não passe disso. Controle as mãos, não os desça abaixo da cintura.

Já o amor é quase consolidação. Atente-se que é mentira quando dizem que é eterno. Acaba sim. Vira companheirismo ou piedade. Vira parceria, comodidade, conveniência e até falsidade. Perceba desde já que o amor acaba sim. Às vezes uns se iludem e tentam recomeçar. Horas depois constatam que foi fatal. E então assumem o conformismo.

E o que dizer do amanhã? Case! Não case! Apenas fique! Viva! A última das alternativas é a mais recomendável. Viva! Assim, se quiser casar então se case. Se não quiser não se case. Se preferir apenas ficar, fique. Mas sempre consciente que ara cada receita há uma dosagem. E cada dose tem um preço.

Sendo assim, encerro conversa vendo o seu rosto feliz. Você ri à toa, menina! Algo está te fazendo bem. Então apaixone-se e ame. Limite-se a isso e as suas derivantes. Só depois, meses e anos passados, decida sobre o futuro. E use camisinha. Agora já temos preservativos femininos. 


terça-feira, 17 de julho de 2012

Crônica - Jesuscidência às avessas

Ainda estou com cara de trouxa. Até derramo uma remela do canto dos olhos e tenho babado muito. Os cabelos que normalmente penteio para trás, feito executivo que tem reuniões freqüentes com políticos, deixo-os agora caídos na testa. 

Lambo os beiços seguidamente e fico com a língua de fora. Coço os ouvidos com as pontas dos indicadores de minuto a minuto. Sou um tique nervoso ambulante. Até manias que eu havia controlado voltaram. Feito imitador do Michael Jackson, passo as mãos na genitália sem perceber. Na rua, no ônibus, na porta do condomínio, na frente da casa da vizinha, nas costas do açougueira da esquina, no caixa do supermercado. Estou incontrolável. E garanto que essa situação nada tem a ver com uma nova palavra que ouvi domingo, no Fantástico: Jesuscidência!

E quanto mais penso mais fico com cara de trouxa. Me venderam gato por lebre. Prometeram um entrevista bombástica com a ex-primeira dama Rosane Collor. Foram dias de chamadas. A princípio considerei em primeiro lugar: “Até que ela ainda está bonitinha esta ex-primeira dama e ex-mulher de um ex-presidente!”

Aliás, deu até briga em casa. Minha mulher ligou na Globo às seis ou seis e pouco da tarde, quando um pouco-nada falava bobagens e chamava todo mundo de babaca. Impliquei: “Não pago tevê a cabo para ficar ligado em porcaria”. Deu um BO danado, ela queria me trucidar: “Tenho certeza que você está louco de vontade de assistir a entrevista com a Ex. Então por que fica enchendo o meu saco?” Estranhei. Que eu saiba ela não tem saco...

Engoli as palavras e assumi o silêncio e o conformismo. Ela tinha razão. E toma banho, janta, coloca o pijama, atende o telefone e nada. Fui obrigado a assistir mais uma do Clayton Conservani. Que tédio!? Desta vez ele nem chorou... Nem me lembro se apareceu o Maurício Krubusly de novo com aquelas produções chatas. Acho que dormi. E nada de Rosane Collor.

O que sei é que num momento de impaciência e descontrole gritei, sentado na poltrona: “Essa loira vem ou não vem, caramba?” Foi um escândalo. A mulher já queria saber quem era. O filho mais velho me encarou com o canto dos olhos. O mais novo passou por mim e esbarrou na minha cabeça com força suficiente para provocar torcicolo.

Loucura. Até o empate do Palmeires tive que ver. Escutei o vizinho de baixo, corinthiano, dar um grito: “Timinhos de merda estes dois. E ainda tem gente neste prédio que é palmeireinse e sãopaulino. Na próxima reunião do condomínio vou sugerir que eles paguem multas por estimularem o fracasso...” Solidária, minha mulher recomendou: “Liga pra isso não. Depois da entrevista com a Rosane Collor desce lá na garagem e risca o carro dele”.

Então, quando eu estava meio de lado na poltrona, com um olho fechado e outro aberto, entrou a matéria. A novidade é que ela, a Rosanezinha, tem uma pensão de dezoito mil reais e quer mais. Quer um valor igual ao o das amigas que nem foram casadas com ex-presidente ou senador e tem pensão de quarenta mil reais. 

A única coincidência de Rosane com estas amigas é que são todas ex-mulheres de algum cara com a conta derramando cédulas de cem reais. E para não ser injusto, devo mencionar que para a Rosanezinha nada é concidência. É Jesuscidência. 

Eu estou incontrolável. Gisele, minha colega de trabalho, já me denunciou ao meu chefe. Disse que eu paro em frente da mesa dela e fico passando a mão no saco! E o meu chefe não acredita que é um tique nervoso que me ocorre sempre quando sou enganado...


segunda-feira, 16 de julho de 2012

Conto - Estações dos anos

(publicado no livro Painel 2012 de Novos Autores Brasileiros - Câmara Brasileira de Jovens Escritores)


Um dia ele pediu um pão e um gole de café. Ela preparou uma bandeja farta: pão, café, leite, manteiga, suco e frutas.

Mal começava o verão e nas rebeldias do clima, que na primavera trouxe frio de inverno, cabia também pedir um agasalho. Ela se ofereceu com um abraço.


Passou o verão e estendeu seu destempero ao outono. Quente, de mormaço, suor e garganta seca. Ele pediu um alívio e ela respondeu com um beijo.


O inverno surpreendeu com afagos. A primavera aprofundou as carícias. O outono revelou peitos arfantes. O verão foi de paixão e nem o sol quente foi tortura.


Fez-se então outro outono que de novo chamou o inverno, que preparou como pode o tempo que seria a primavera, que previu desde muito cedo o clima que viria no verão.


Ele pediu mais uma bandeja farta. Ela nem o pão trouxe. E foi assim até a mudança da estação, quando ele cobrou um abraço e ela negou as mãos. 


O período quente chegou muito antes do verão, ainda na primavera, justo no dia em que ele quis um beijo para acalmar a sede de amor. Se ao menos com água ela retribuísse...


Afagos, carícias, arfar do peito, sussurros, gemidos e paixão passaram a compor uma lista de desejos que ele manifestava sem tanta convicção de merecer. Ela retrucava com desprezo.


Foram-se mais quatro estações. Tampouco piedade sobrava naquela relação. As cobranças dele deixaram de ser feitas. Ela, tão perto, colocava-se distante.


Ele havia construído sua vida com ela sobre uma plataforma de pedidos sem contrapartidas. Recebeu e pouco deu. Apostou saber construir o clima certo para qualquer estação. 


Ela fez a princípio que não entendeu. E não foi de pronto que se rebelou. Apenas fugiu aos pouco. Ignorou com leveza. Desdenhou com charme. Foi sutil e nunca se viu obrigada a dizer não. Apenas evitou atos que antes pareciam sentimentos e se mostraram meras cenas de amor.


Foi quando ele decidiu se aninhar em outros braços. Descompromissado, pediu pão e ganhou bandeja farta. Insinuou frio e recebeu abraços. Implorou calor e faturou paixões. 


E ela, aliviada, foi buscar novos verões. No caminho viveu primaveras, outonos e invernos mais promissores do que os de antes. Correu outros riscos de confundir paixão com amor. Mas, consciente, soube medir a oferta para a proporção do que lhe era dado. E assim passou a ter mais do que dava. 



sexta-feira, 13 de julho de 2012

Conto - Mapas e trajetos

Viu-se no vidro da porta de uma loja e o que percebeu foi uma imagem muito mais cruel do que um espelho refletiria, impositivo e sem perdão: você é o que está vendo. Abaixo dos olhos, após fazer a curva determinada pelos sinais da idade, havia outras marcas. Além de rugas, o molhado das lágrimas com formas indecifráveis e feitos desenhos rascunhados ao acaso.

A palma da mão direita subiu e secou um lado. No outro restou um mapa de algum lugar. Provavelmente de onde Lorena queria estar e, sendo assim, as lágrimas vinham de lá. Imagina-se que por culpa da inesperada precipitação os córregos transbordaram. Saudade de alguém ou amor impossível? Ninguém, exceto a figura refletida, estaria em condição de revelar.

Se é longe ou perto também é mistério. Às vezes fica ali, logo adiante, em percurso possível de vencer em minutos. Isso quando o que determina a distância é a geografia. Ou tem-se que de um ponto ao outro muitos quilômetros consumam horas e dias, ainda mais quando o espaço é calculado por sentimentos.

Enquanto se mira os desenhos adquirem outros contornos. São mais lágrimas descendo, sinal que a chuva é intensa. Agora, escorrendo, formam estradas sinuosas de aclives e declives na altura da maçã do rosto. Seria o trajeto a ser seguido ou um aviso de perigo? Ir ou não rir até o lugar onde o coração está é um dilema.

Fica-se meio órfã de alma, porque tudo o que faz chorar está muito longe do vidro que reflete a imagem triste de Lorena. O anúncio ao lado vende passagens e estadias. Ela não se convence com a oferta e deixa o local. Mapas e trajetos desenhados no rosto pelas lágrimas secam com o tempo.


quinta-feira, 12 de julho de 2012

Conto - Identidade carimbada

Eu quero sair candidato a vereador usando um nome popular: Cebola. Então me disseram que eu não tenho nada a ver. Não sou feirante e nem dono de quitanda. Não planto e nem colho. Gosto, mas isso não significa que eu me identifico com a causa de quem planta, colhe, vende ou prepara nos restaurantes.

Recomendaram: tem que ser algo forte, que o leitor ouve ou lê e enxerga a sua cara. Pensei e muito. Gastei duas madrugadas e um dia fervendo o cérebro. E não é que foi justo na hora de lavar o rosto que me veio a idéia? Juba de Leão.

Por que? Simples, mas convincente. Sou loiro e tenho os cabelos lisos e longos. Repartidos no meio e caindo pelos lados da testa eles lembram um leão, que é forte, temido e rei. Chato é que puseram obstáculo: leão é prepotente e político tem que ser moderado em público; rei nenhum faz alguma coisa. E pense nas criancinhas, filhos dos eleitores. Vão influenciar os pais a não votarem num bicho brabo.

Viram como é? Muito complicado. Sugeriram Coxinha da Nona! Eu heim? O que é vão pensar de mim. Outro veio com a idéia de Beto da Mandioca! E quando é que eu trabalhei com mandioca? Nunca. E tem os dois sentidos: mandioca porque é grande ou mandioca porque gosta do produto? Fiz de conta que não era comigo.

Tem um vizinho lá da rua que é um cara de muito bom senso. Meio sabidão, ele gosta de falar pausado, sem atropelar as palavras, enquanto a galera se cala para ouvi-lo. É certo que ele tem fama de assediar as casadas do bairro, mas na circunstância nada tem a ver.

Esse camarada despontou na esquina, durante uma conversa de troca de idéias, como uma luva feita de encomenda. “O que você faz da vida, Beto? Joga, canta mulhereda, enrola no serviço, faz compra de supermercado, engata a marcha com a patroa, dá ré para encostar no veículo de quem está atrás, assovia, chupa cana ou, enfim? Aliás, sua patroa tem muito apelo. Quem sabe usando o que ela tem de forte?”

Pergunta longa e demorada. Bem, jogar hoje em dia não posso. Só vez ou outra na mega, mas futebol já era. Cantar mulherada de que jeito? Estou com uma falha na arcada superior e bem na frente. Se eu falo tenho que tapar a boca senão a pessoa enxerga a banguela. Enrolar no serviço? Isso é ofensa. Sou cabo eleitoral de carteirinha e sempre dei duro para eleger pouca bosta. Agora é a minha vez. Saio candidato. E com a patroa faz tempo que eu não mexo no câmbio porque ela se diz cansada noite após noite. Sei lá o que cansa a minha mulher nessas reuniões diárias da igreja...

“Então é isso. Usa Betão da Lanchonete. E acrescenta um slogam, uma frase de efeito: “O que eu preparo o povo come...” Sinceramente? Eu não entendi. O que ele está insinuando? E para completar chegou um outro que pegou a rabeira da conversa e disse: “Pode também usar Betão Cara de Alce. Isso tem peso porque vão lembrar de você na hora”.


quarta-feira, 11 de julho de 2012

Conto - O cuidador de carros

Metido num bermudão tão surrado quanto a malha da camiseta estampada, o cuidador de carros assume o seu posto desde as primeiras horas da manhã. Se ele atrasar outro guardador ocupa o seu trecho e ele fica sem o que cuidar.

Os motoristas começam a encostar seus veículos no território do cuidador titular a partir das 7h30. Eles também tem pressa, apesar de iniciarem a jornada de trabalho às 8. Atrasados correm o risco de não encontrar vagas.

É uma jornada longa e sem parada a do cuidador. Sem almoço, porque os donos dos carros que ele guarda não retornam para suas casas no intervalo. Almoçam ou lancham nos estabelecimentos próximos seguros, pois o cuidador toma conta de seus veículos por um preço que é quase esmola: um, dois ou quando muito cinco reais. Às vezes, sem miúdo no bolso, a gorjeta fica para amanhã e acaba no esquecimento.

O cuidador é fiel ao seu ofício. Cuida e auxilia na manobra. Zela-se para manter a confiança dos patrões. Bermudão surrado, camiseta em estado precário e chinelos de dedo nos pés, ele apenas cuida dos carros mas há quem desconfie que o cuidador é um risco. Foi assim que os donos dos carros viram, já por repetidas vezes, o cuidador com as mãos na nuca e encostado à parede durante revistas feitas por policiais.

E nunca, ninguém que tem o carro cuidado se mostrou. Assistiram a cena atrás das persianas que impedem a claridade das ruas de entrarem nos escritórios.


terça-feira, 10 de julho de 2012

Conto - O dono da bola

Fui eu que me fiz. E me vejo completo. Sou patrão e me sobra bom saldo na conta. Troco de carro quando tiver vontade. Alugo, compro, desfaço e negocio nem sempre por ser preciso. Às vezes é por prazer e mesmo assim venço e derroto.

Eu mando. Em casa, no trabalho, na escola dos meus filhos, no frentista do posto de combustível, nos políticos, na igreja, na polícia, no promotor e no juiz.

Eu determino. Quando e onde a minha foto é publicada na coluna social. Eu exijo. O pagamento em espécie das comissões a que tenho direito das negociações que acerto com os políticos.

Eu sou o dono. Do jogo de camisas e da bola do time que é meu. Eu escalo a equipe, eu estabeleço as regras do jogo, eu obrigo o árbitro a engolir o apito, eu faço e aconteço. E nunca será diferente.

Eu boto medo no diretor da faculdade e amordaço os professores. Eu calo a boca do apresentador da tevê. Eu banco o conforto do diretor do sindicato. Eu digo o que a situação deve fazer. Eu patrocino os coquetéis da oposição. Jamais será de outro jeito.

Se eu bronqueio todos acatam. Em casa, no trabalho, na sessão da câmara, na redação do jornal, na assembléia do clube de serviço, na reunião do condomínio, nas confrarias, nas convenções dos partidos. Sou forte a qualquer hora. Sou superior onde quer que seja.

Se não tenho amigos eu nem ligo. Compro companhia e se me dói a alma remendo com curativo e cicatrizo feridas que a solidão abre. Eu sou o dono da bola de vidro que nada vale. Eu faço as pessoas que me cercam dependerem de mim. Eu pago a todos, pouco ou nada, só pelo prazer de vê-los cuidar de uma bola de vidro.

Se ela cair estilhaça. Eu continuo inteiro. E mando, compro, desmantelo, banco, financio, exijo e determino. Eu sou o poder. Absoluto e intocável. Nem percebo o seu olhar de desprezo. Ignoro o silêncio que se faz quando chego.



segunda-feira, 9 de julho de 2012

Conto - O guardião

Cuido da bola de vidro o dia todo. Delegaram a mim esta missão. Dizem que é tarefa nobre. Só quem é íntegro merece nomeação para tal. Cuidar para que ninguém a toque. Zelar e impedir que a poeira do ar a manche. Permitir que ela se faça com suas luzes de cores alternadas. Agora é azul, depois acende o vermelho e chega o amarelo, o verde, o violeta, o mais escuro, o mais clarinho.

E se me perguntarem para que servem a bola, as luzes e as suas cores serei obrigado a confessar: ignoro. Só domino que se me pagam para cuidar é porque elas tem serventia. Recebo nem tanto assim. Dá um salário e meio, pouco menos, pouco mais. Explicaram que o que me sustenta não é o dinheiro. É a responsabilidade de cuidar da bola de vidro. Então parece ser um trabalho que enobrece, repito que isso eles deixaram claro.

Fico de pé, nem ouso sentar na cadeira a uns quatro passos da mesa onde a bola está. Às vezes entra um inseto e o meu trabalho é evitar que ele pouse naquilo que eu cuido. Mosquito nenhum vai manchar a minha referência. A bola de vidro é dos grandes aqui da empresa. Presidente e diretores, um monte. Além de outro tanto que é gente de confiança. Então, se eu sou o responsável pela segurança da bola, também sou de confiança.

À noite, em casa, eu nem durmo direito. Fico pensando na bola. E se eu chegar amanhã no serviço e a bola estiver quebrada? Dá até pesadelo. É, já sonhei com ela aos cacos, suja e sem brilho, com as luzes apagadas e as cores foscas. Perderia toda a confiança que depositam em mim. Certo que ganho pouco, mas tenho uma missão nobre a cumprir.

Alguns riem de mim. Tem gente que ri de frente, outros riem por trás. Nem ligo. Até de bobo da corte me chamam. Acham que a bola é nada e o serviço que me deram é só para me manter ocupado. Nem ligo. Isso é intriga, coisa de invejosos. Eu, que já servi tanto a empresa e aos seus grandes jamais seria enganado.

Nem me passa pela cabeça que me fariam de tonto. Aqui eu já testemunhei contra ex-empregado encrenqueiro, fiz entrega de flores e presentes para amantes, assinei documento sem saber o que estava escrito e pus, nisso e muito mais, as minhas mãos no fogo por esta gente graúda. Até menti quando preciso. Nem me passa pela cabeça...


sexta-feira, 6 de julho de 2012

Conto - A face oculta

De frente são olhos claros. Marcantes porque miram com firmeza o objeto que se coloca adiante. Ou algo. Ou alguma coisa. Ou alguém. Sob sobrancelhas desenhadas eles se destacam. Redondos e milimetricamente postos, rebaixam com delicadeza a parte de onde o nariz se anuncia, leve, reto, pequeno e atraente.

Nem arrebitado e nem chato, mais fino do que largo, dispensa qualquer tipo de retoque. O nariz é perfeito e feito para aquele formato de rosto, que começa com o ovalado sutil da testa e desce afinando sensato até o queixo, onde se vê o quadrado suave, como se os contornos tivessem sido moldados por mãos acostumadas à arte da perfeição.

Não há exageros nas curvas e nas dobras mais acentuados. O reto é sequência natural de um projeto bem feito. A boca é sensual. Tem lábios suficientemente grossos e tão longos quanto o desejado. Está na medida certa para a pretensão.

É possível observar o rosto de frente sem lê-lo. Diria-se no bater dos olhos que é um rosto naturalmente lindo que dispensa acertos com a trucagem dos cremes, batons, sombras e tantos outros recursos contidos em embalagens miraculosas. Algum realce feito com senso acrescentaria, é verdade.

Haveria, no entanto, dificuldade para folhear a expressão que o rosto exprime. É pelo medo de ler o que os olhos dizem, o que os lábios sugerem e o olfato a que as narinas estão acostumadas. O rosto constrange quem o encara quando passa do ponto de apenas enxergar e se quer ver.

Feito uma barreira levantada espontaneamente, o rosto impede a quem o encara uma interpretação. E fica-se sem saber se ele está sereno ou tenso. Se sorri ou está triste. Se quer ou repugna. Se pede ou dá. O rosto é a face oculta de uma linda mulher que se olha de soslaio, temendo constranger a beleza que ele é.


quinta-feira, 5 de julho de 2012

Conto - Achado e perdido

Número 36, pé esquerdo. De confecção fina e couro macio, tem salto alto e taco levemente gasto. Nenhum sintoma de joanete. A cor é bege, nem tão brilhante e muito menos opaca. O meio termo causa impressão natural.

O cheiro é de um sapato com pouco uso e não se vê deformidades. Provável que saiu de um pé delicado, o mesmo que suporta, junto com o outro pé que deve continuar calçado, um corpo pequeno na largura e suficiente na altura.

A idade é um mistério. Modelo assim poderia ser usado por mais nova ou mais velha. Então se fica na metade, entre a pele lisa da juventude e as primeiras rugas escondidas pelo creme.

A cor caberia para a mais clara e ficaria justo também na morena. Porém a mulata seria a dona ideal do pé descalço. E os olhos, as sobrancelhas, o nariz e os lábios comporiam uma mulher apaixonada que à saída do baile deixou sair do pé esquerdo o sapato bege quando subia na carruagem de abóbora.

Assim ele se pôs a procurar por uma princesa. Tantos pés experimentaram mas em nenhum deles o sapato coube tão bem quanto nela, a vizinha da casa em frente, do outro lado da rua. Sim, apaixonada por ele, que a detestava.  


quarta-feira, 4 de julho de 2012

Conto - Três ruas abaixo, sempre reto

Daqui é perto, quase um pulo só. Faz mais de vinte anos e não passo lá. Tenho medo de recaída e sei que não vou me aguentar. Se isso acontecer a dor é tamanha. Bate um martelo grande na cabeça do prego espetado no coração. Nem sangra, apenas fura e dói cada vez lá no fundo onde não se pode tocar.

É de mexer com a respiração. Lateja e o ar rareia. Dá pontadas e pensa-se que é o fim. Não tem remédio que cure. É segurar do jeito que der, trancar os dentes e fechar os olhos pra ver se estanca. Careta a gente faz, impossível ter cara boa com choro espirrando como se fosse bombeado da alma.

O andar é meio tonto. É porque a gente baqueia de vez. As pernas pesam, os braços nem forças tem para movimentar. Cada passo é um sacrifício. E se vai empurrado por impulso que não se sabe de onde vem. Mistério que não se entende: a gente quer ir adiante e parece que alguém empurra pra trás. Sempre assim, até na hora que a gente se vira e tenta mudar direção. E a força agora é do outro lado e leva a gente pra trás. Então não se sai do lugar.

Ali tinha uma casinha verde clara, de madeira, emoldurada por ramas de maracujá nas cercas de ambos os lados. Maracujá doce, que hoje é raridade nas feiras e no bom comércio deste lugar. Partia-se a fruta com canivete e bastava a vontade para chupar até deixar só a casca. E partia-se outra, mais outra e tantas outras até se saciar. Havia fartura, por que economizar? A fruta dava abundante e ninguém temia engordar.

Eu era um dos meninos da casa do maracujá. Brinquei muito no quintal e levei tombos do pé de manga rosa nos fundos depois dos varais. Ah se fiz travessuras, quantas mamonas usei para atirar na vizinha do lado de lá. Soltei pipa, levantei balão feito de jornal. Armei arapuca e colecionei aranhas caçadas nos buracos atrás da moita de cana rente ao pé de limão. Corri por ali atrás de vagalumes.

Só sei que um dia fui estudar. Voltei e só achei cinzas. A casa verde se foi comida por fogo que alguém botou no lugar. Disseram que foi arte de menino acostumado a aprontar. E eu que não fiz nada fiquei só. Penso que ainda me olham como se eu tivesse feito o fogo se espalhar. Por isso não passo lá. Faz vinte e poucos anos que não sei o que sobrou no lugar.


terça-feira, 3 de julho de 2012

Conto - Maquiagem

Acendeu em Ludovico a vontade de ser político. Porque diziam dele ser um homem de palavra. Ludovico falava pouco, mas quando articulava substantivos e verbos o objeto era sempre direto.

Homem simples, antes da intenção acesa vestia do jeito que se sentia bem: calças largas entre o social e o esportivo, camisa de tecido mole e leve e, nos pés, invariavelmente as tradicionais meias sociais pretas para proteger a pela das costuras dos tênis de pano.

Então recomendaram sapatos sociais. Se não fossem de couro que imitasse. Se os cadarços incomodam que sejam no meio termo, de calçar sem ter que se agachar. E camisa por dentro para evitar impressão de desleixo. Os cabelos, quando compridos, ajeitados com goma e penteados por trás das orelhas. Barba feita para parecer mais jovem.

E mais. Muito mais. No andar ombros levantados. Nada de abaixar a cabeça ao cumprimentar as pessoas. Olho no olho para conversar. E o conteúdo devia ser medido: sem brincadeiras sobre raça, gênero, altura, peso e preferência futebolística. Mais ouvir do que falar. Nunca ter pressa para dar uma resposta. Gesticular menos e abandonar de vez a mania de coçar a testa com a ponta do indicador sempre que indagado sobre alguma coisa.

Mais ainda. Muito mais ainda. Ludovico? Será que esse nome pega? Uns diziam que por ser fora de mora atrapalha. Outro defendiam: é um nome incomum hoje em dia e inspira confiança. Na verdade ninguém tinha razão. Por ele sairia Ludovico mesmo. Mas inventaram de abreviar. Como? Ludo? Luvi? Luco? Dovi? Doco? Vico? Vilu? Vido? Colu? Codo? Covi? Nada combinava.

Então ele decidiu, finalmente, fazer valer o seu jeito: “Nasci Ludovico, casei Ludovico, criei meus filhos Ludovico e vou sair candidato Ludovico”. Falou pausado, como sempre, sem se exaltar mas também com naturalidade, o que deu à frase um tom autêntico.

Depois disso, já em campanha, voltou ao tênis e a camisa balançou livre fora do cós das calças. Os cabelos cresceram sem gomalina e a barba marcou o rosto. Sentiu-se feliz por ser ele mesmo e nem se abalou com o resultado das eleições. Teve lá uns setenta votos.


segunda-feira, 2 de julho de 2012

Conto - Ver com medo de enxergar

Eu a vejo vez ou outra e nem sempre quando procuro por ela. São encontros coincidentes, mais ou menos do tipo dos eventos planejados pelo acaso. Aliás, estou equivocado: nada se planeja no acaso. As coisas acontecem. Só depois a gente soma tudo e diz, mais por dizer, que um foi feito para o outro e o destino estava traçado.

Ainda não sei o que sinto por ela. Percebo a necessidade de aproximação. Mas quando a tenho perto de mim nas raras ocasiões em que nos vemos desperto que estou travado. Seria amor platônico? Algo que perderia encanto se transformado em sólido? Ou medo de ter lido errado os olhos com os quais ela me olha? O olhar dela é mensageiro, só evito folhear as páginas que nele se mostram.

Preâmbulos costumam ser desprezados. Já fiz isso e tenho que essa substimação ao que é dito no começo tem seu preço. Pode ser que ela me veja apenas como alguém que inspire confiança. Pode ser que ela tenha pretensões. Pode ser tudo e pode ser nada. Eu devia ler o olhar dela.

Ou deixar amadurecer. Permitir que o sentimento continue platônico. Mas com tal intensidade a ponto de criar um mundo paralelo onde as intenções acabem sempre em sonhos impossíveis de virar verdades. E que assim ou possa vê-la, sempre, como alguém que me vê também como um amor impossível.