quarta-feira, 25 de julho de 2012

Conto - Todos os dias da vovó

A preocupação risca o rosto de Alice de rugas. Marcas profundas tiram a lisura da pele da testa. Formam um mapa de sucos e relevos, quase horizontal, mas ovalados nos cantos. Completam o desenho os olhos negros, fixos no distante e ausentes do aqui. E como retoques, nos lados e abaixo dos globos oculares, as tiras se estendem simétricas, umas mais longas e outras curtas, carimbando a idade de uma mulher de abundante intempéries: muita chuva e muito sol castigaram aquela pele.

São traços marcantes. Dão a leitura de uma personalidade forte a Alice. Morena quase mulata, cabelos nem tanto pixaim mas ondulados a ponto de enroscar escova, ela parece guerreira no conjunto em que se apresenta: estatura de uns um metro e sessenta, pouco mais ou pouco menos, suportada por um peso equilibrado. Alice não passa de sessenta e dois quilos.

Veste-se com discrição. Moradora de um bairro que se não abriga a classe média está quase lá. Ainda lhe fica bem um jeans e uma blusa de malha, cuja cor invarialmente é sóbria. Azul escura, preta, cinza ou branca são as preferidas. Nada de estampas e muito menos modelos fora dos convencionais. Nos pés Alice caminha sobre sapatos fechados de meia altura, pretos ou marrons. Injusto dizer que ela passa despercebida. Apesar da simplicidade Alice ainda rouba olhares. E olha que ela já está além dos cinqüenta!

Projetá-la vinte anos mais nova levaria a um rosto delicadamente bonito num corpo perfeito nas medidas. Ou menos: quinze ou dez anos, por exemplo, arrancam cenas imaginárias promissoras. Sim, Alice sorri quando o momento exige. Mas não é um riso rasgado. Nunca. É medido. Ou melhor, contido. No resto é uma expressão serena que denuncia levemente a preocupação constante com alguma coisa, o que faz as rugas riscarem o seu rosto com mais sucos e elevações.

O que preocupa Alice? Os filhos já decidiram seus rumos. No passado alguns deles embranqueceram mais cedo alguns fios dos cabelos. Mas em circunstâncias contornáveis, tipo problemas familiares comuns, de soluções fáceis e curto prazo. As finanças estão em dia. Claro, carece de abundância, porém evita lamentações. O financiamento da casa depende de algumas parcelas, dezoito ou no máximo vinte. O carro, já quitado, nem custo elevado de combustível tem. O marido, aposentado, toca uma empresa de cópias e encadernações e venceu a fase de mexer com mulheres alheias para tentar usufruir do bom fruto.

O que será? Netos, é a resposta. Alice os assumiu como uma causa. Rouba-os dos pais, quer decidir na formação deles, briga com os filhos, as filhas, os genros e as noras quando teme perder o controle. E enfim, se estressa. Assim deixa de viver e permite que a vida estampe em seu rosto a cara de alguém que nunca se preocupa com ela própria, mas se entrega demasiadamente nas questões alheias.



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