sexta-feira, 20 de julho de 2012

Conto - Barulho e movimentos

Vem de longe a gritaria das crianças no intervalo das aulas. É quase música os sons que se misturam: gritos, chamados, cantigas e assovios. Um motorista buzina. Outro arranca e ronca o motor acima da potência do enlatado. Pneus rangem no asfalto e o sorveteiro entoa sua canção de improviso na gaita de plástico. Deve ter sol lá fora. Os dias de chuva são mais quietos.

A vida passa apressada diante dos olhos da velha senhora. Bons tempos aqueles de anos passados. Os barulhos podiam ser vistos. Sim, olhados com os olhos, da janela ou da porta, por cima do muro de cimento, pela fresta das cortinas ou sob a sombra das árvores da praça. E entre o final da tarde e o começo da noite, no momento em que a escuridão ainda é um manto transparente, ouvia-se até os beijos dos namorados e via-se casais abraçados.

A vida passa arrastada diante dos olhos do desempregado. Bons tempos aqueles. Saia-se do trabalho ainda com sol mesmo nas estações frias, quando a luz do dia se rendia mais cedo. E se ouvia e se via. Crianças na saída das escolas, ônibus estremecendo o asfalto, correrias, vida e outras cenas tão comuns quanto curiosas. Até os passeios dos casais de aposentados, lentos e de mãos dadas, contavam histórias de enredos variados: sucesso, estremecimentos, reconciliações, idas e vindas.

A vida passa empurrada para os desiludidos. Bons tempos. Quando havia possibilidades e ouvia-se música para ver o velho vinil rodar na vitrola, enquanto corações apaixonados entravam na melodia e assumiam a voz de quem cantava. Era ela cantando para ele e ele cantando para ela num palco íntimo. De tamanha exclusividade que até a agulha da vitrola encerrar o passeios pelos sucos que davam o som podia-se amar.

A vida passa. Bons tempos. O barulho agora não comove. Assume-se o silêncio. Nada se ouve e nada se vê. A sirene pede passagem. É mais um acidente em algum lugar. Nada mais que isso. Lá fora a vida passa. Aqui dentro nenhum som tem movimento.


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