sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Crônica - Ironias...

Hoje assumi de vez a condição que camuflo há quatro meses. Com discrição e bom senso. Nada de acordar as seis, abrir a janela e gritar:

– Estou desempregado!

Também não extrai o trecho da música do inesquecível Gonzaguinha e pus a bunda na janela pra passar mão nela. Decidi consciente que era hora de mostrar o rasgo na camisa, lá no sovaco, onde nem agulha de ouro consegue segurar mais o desfiado.

Escondi essa situação o mais que eu pude. Devo ter engolido o veneno amargo da carapuça para tentar evitar a angústia, driblar o vazio e nocautear as dívidas. Tive a impressão que eu vencia ao esvaziar os cofrinhos para liquidar os boletos de cobrança. Que doideira equivocada! Ou melhor, que equívoco louco!

Nesse período de segredo, enfrentei sozinho o ar seco do desespero e contabilizei nas madrugadas não só as contas a serem pagas. Inclui nessa matemática simples, de receitas e despesas, também as dores no peito e a quantidade de batidas do coração no espaço de tempo entre a euforia de uma possibilidade de emprego e a ausência de resposta para a solicitação de análise do currículo.

Não foram poucas as vezes em que me peguei balbuciando perguntas sem respostas, do tipo, com que dinheiro pagar as contas, por que os coordenadores de recursos humanos nem se dão ao trabalho de responder secamente com um não os candidatos indesejados? Eu, por exemplo, daria a esse profissional até o direito de me xingar caso eu respondesse a um anúncio de vaga sem dispor dos requisitos enumerados.

Tenho aprendido muito com o desemprego, a ponto inclusive de redefinir alguns conceitos. A mais básica delas ouvi de um desconhecido numa dessas andanças por lugares incertos, pois o desempregado nunca tem trajeto definido. Ele disse, sem esconder expressão de amargura, justo no momento em que eu passava:

– Desempregado não tem amigos. Eles somem, cortam a volta para não darem de frente com a gente.

À queixa dele somei outro manifesto, este ouvido diante de um bar de cachaceiros de fim de expediente e dito por alguém que resolvera reencontrar ex-colegas para abrir o peito:

– Desemprego é igual doença contagiosa. Todo mundo te evita, amigos, colegas, vizinhos, parentes. Se não se cuidar até a mulher vai embora com outro.

Evidente, entre um gole e outro a platéia, pela expressão facial, se cochichava que ali, falando alto que nem um bêbado, estava um mala disposto a acabar com a paz dos convivas. E olha que o cara nem tinha roubado talagadas de copos alheios. Só havia tomado água de torneira naquele copo seboso que o atendente de balcão reserva para servir quem não tem dinheiro para gastar na mesa.

Mas sabe, os dois guris desprovidos de sorte no trabalho tinham razão. Diziam verdades que eu só assumiria após a consciência do desemprego. Ilustro isso com um acontecido. Outro dia encontrei um amigo de anos, ex-colega de trabalho. Conversa vem, papo rola e surge a pergunta fatal:

– E você, o que está fazendo agora?

Assumi o mané que existe dentro de mim e respondi com outra pergunta, aquela mais idiota que existe:

– Eu?

– É claro, você?

– Agora estou fazendo umas comprinhas pro fim de semana...

O duro era que, no meu cestinho, só tinha um pacote de papel higiênico da promoção leve quatro e pague três.

– Não. Perguntei onde você está trabalhando...

– Estou como... estou como free lancer. Estou trabalhando por conta. Mas está muito difícil ser autônomo nesta região.

No complemento do colóquio, durante o empurra de lá e de cá no corredor apertado do supermercado, aproveitei a deixa e desembestei a falar, misturando relatos e lamentos. Mas eu só havia dito ainda que já havia enviado mais de cem currículos. Mal comecei a reclamar que a minha experiência profissional de 30 anos de nada valia – acho que estava ainda na segunda vírgula – quando o meu interlocutor, com um jeito de enjôo e cansaço, atropelou:

– Tchau, tenho pressa. Qualquer hora a gente se fala...

E lá se foi o meu amigo empurrando um enorme carrinho de compras, que no desajeito quase atropelou o meu cestinho com pacote de higiênico.

Foi uma grande lição. Conclui que pessoas empregadas gostam de um equilíbrio nas conversas quando o assunto é a ocupação profissional. Se você está colocado no mercado de trabalho e a pessoa com quem conversa também, não se exponha a ponto de ele achar que está em pior condição que a sua. Ganhando menos, por exemplo. Ou, com cargo inferior ao seu. Isso desagrada.

E se você está sem trabalho e ele mantém um emprego, não faça cara de choro, não se lamente da situação. Seja tolerante consigo mesmo. Minta que está bem, pois uma boa mentira tem perdão. Não dê a impressão que está pedindo um favor. Não faça comentários brincalhões sobre o tamanho do carrinho de compras dele. Diga que está gozando de férias forçadas e só volta ao trabalho se algo muito bom surgir.

Assim, o seu amigo será tomado por uma inveja tão indisfarsável que ele vai deixar escapar que na empresa onde trabalha abriu uma vaga para o seu perfil. E você, trate de desfazer:

– Ah, mas ali paga muito pouco. Não sei como é que você aguenta.

Quando ele dobrar a esquina do corredor corra para procurar os contatos da tal empresa. Deixe ali mesmo o papel higiênico da promoção. Em último caso, usa-se jornal desses patrocinados por políticos e distribuidos gratuitamente.

Alguém me disse recentemente que colega empregado tem medo de perder a vaga para o colega desempregado. Isso já é exagero, pois que eu saiba o que regula a ocupação e a manutenção de um trabalho é a capacidade profissional. Mas, por favor, desviem o meu olhar de ironia quando escrevo isso.

Outro alguém reforçou que nos processos seletivos, um currículo excelente em experiência profissional é risco do postulante de uma vaga continuar desempregado. De acordo com essa tese, o candidato ao emprego pode crescer tanto e rápido e em pouco tempo ocupar a vaga do empregador. Que exagero...

Cá pra mim, o que vigora são outras coisas: analfabetismo e ignorância, que somados vão dar num cúmulo, sei lá, indescritível. É que nesta era da globalização e de perfis avaliados por títulos, se você não tem ingrês fruente é um guinorante, e se você não tem pós em qualquer coisa fatalmente é um grande narfabeto.

Infelizmente, sou de uma fase em que a experiência profissional, com o conhecimento cultural, o domínio da língua portuguesa e as habilidades técnicas escorando, valia muito mais. Não é assim que os empregadores pensam hoje. Então, chega, né? Tô fora e é onde, pelo jeito, eu vou continuar.

domingo, 13 de setembro de 2009

Crônica - Eu, aqui de baixo, só olhando

Conheço a voz de Georgia. Nunca a vi, mas concebo-a como uma pessoa educada e solícita. Foram oito ligações telefônicas para Georgia no espaço de dois meses. Antes de cada telefone eu hesitava: vou incomodá-la, ela não vai me atender bem. Mas a quase 400 quilômetros de distância, eu pude inclusive defini-la como um ser humano solidário. Georgia atendia educadamente.

Ela é secretária de uma empresa e como tal tem um chefe. Era com este que eu precisava conversar profissionalmente. À beira do desemprego, eu pretendia apresentar uma proposta de trabalho. Por isso recorria a Georgia, para que ela conseguisse agendar um horário com o chefe. Normalmente eu enfatizava para a secretária que dez minutos me bastavam.

Compreensiva, Georgia anotava o meu telefone de contato e prometia um retorno quando acertasse uma data e um horário com o chefe. Como o retorno não acontecia, eu assumi por sete vezes a carapuça de mala e voltei a ligar para a secretária. E por sete vezes Georgia me disse que o chefe ainda não havia definido uma data e um horário.

O que me faz ver Georgia como uma profissional íntegra é a consciência com a qual esta secretária se relaciona provavelmente com as dezenas de pessoas que falam diariamente com ela antes de terem suas ligações encaminhadas ao chefe. Nunca percebi nela algum tom de desdém. Pelo contrário, Georgia me explicava que havia anotado para o chefe a minha solicitação de uma reunião rápida mas ainda dependia de um retorno do fulano. E prometia a mim que reforçaria a solicitação.

Assim se passaram dois meses, com duas ligações por semana. Na última delas, Georgia, que só conhecia a minha voz, falseou um tom em sua voz que deu a entender uma espécie de solidariedade, de compreensão da minha necessidade de conversar com o chefe dela. Eu apostaria que Geórgia sentiu uma espécie de pena de mim. Prometeu mais uma vez lembrar o fulano e me dar um retorno. Então decidi ser paciente ao extremo.

E nessa espera já entro em mais dois meses além daqueles dos telefonemas. Geórgia não pode me retornar a ligação. No passado ela justificou que seu chefe andava muito ocupado, de uma reunião para outra. Ela até havia anotado pessoalmente na agenda dele a necessidade de uns minutos para mim.

Eu aposto que Geórgia tentou outras vezes. Ela, como eu já disse, é uma profissional comprometida com as suas tarefas, entre as quais a de tentar um horário para mim. Acredito que o chefe de Geórgia seja um cara que depende exclusivamente de reuniões para tomar decisões. Reúne-se até para decidir onde comer, o que vestir, com que carro sair.

Tentei relacionar o cotidiano desse cara com o produto que, por uma lógica profissional, deveria ter a cara dele no conteúdo e na embalagem, pois é ele, como chefe, que comanda subordinados e diz a eles se a fita das amarras deve ser vermelha ou azul.

Fique aliviado.O que ele faz, através da força de trabalho de seus comandados, não tem cara e nem cor. O que se dirá do conteúdo? E eu, se ele houvesse me atendido há quatro meses atrás, talvez fosse um dos subordinados desse chefe da Geórgia, que passa os dias metido em salas de reuniões e retorna à noite para casa reclamando de cansaço.

Eu heim?

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Crônica-reportagem - Isso aqui é bom demais (apesar da sujeira)


É do homem engravatado, feito um executivo, para ele andar sem se sentir constrangido do seu traje e sem constrangedor os que não podem usar um terno de fino corte.

É da mulher elegantemente vestida e escorada num par de sapatos altos difíceis de caminhar sem enroscar nas frestas do petit pavet.

É da balconista uniformizada que reflete charme enquanto vai em frente sob as marquises e usa a caneta como uma presilha nos cabelos longos e negros.

É do operário de macacão sujo de graxa e coração aliviado por ter como fugir alguns minutos do barulho das máquinas e descansar sob as árvores correndo o risco de ser alvo das fezes dos pombos que não estão nem aí para os de baixo.

É dos grupos de estudantes, tagarelantes e felizes pelo fim de mais um dia de aulas.
É da mulher que pede um dinheirinho para comer.

É do sanfoneiro batendo o pé no cimento para fazer o compasso do som e ganhar moedas que nunca vão cobrir todo o fundo da caixa de sapatos usada como coletor de doações.

É dos vendedores ambulantes que se safam da fiscalização e vez ou outras montam suas bancas nos locais de passagem dos pedestres.

É das estátuas vivas que só piscam para conferir o valor da moeda depositada por algum contribuinte.

É dos casais de namorados, que nem se importam com os olhares invejosos dos que estão sós e trocam abraços e beijos carinhosos no intervalo do almoço.

É dos bebês transportados em carrinhos por mães e babás cuidadosas e atentas aos buracos do piso.

É dos propagandistas que anunciam cartões de crédito, telefones celulares e compra de ouro usando a voz, os panfletos e as intervenções educadas das pessoas que passam a trabalho ou a passeio.

É dos religiosos que pregam as suas crenças com paixão pelo que fazem e até com certo radicalismo.

É dos sindicatos que levam suas campanhas contra os bancos, o governo, os salários baixos e as precárias condições de trabalho.

É dos artistas que mostram seus talentos na música, na pintura, na interpretação e sobretudo na sensibilidade e na criação.

É até dos políticos que aparecem apenas nas campanhas eleitorais e prometem muito mais do que podem.

É o Calçadão de Londrina, lugar de todas as cores, todas as faixas sociais, diferentes estilos, variados comportamentos, expressões inusitadas, amor, solidariedade, lazer, namoro,bem-estar, lucidez, devaneios, imaginações em olhares distantes. Lugar de muita vida.

Inaugurado em 1977 e localizado entre as ruas Hugo Cabral e Minas Gerais, o Calçadão de Londrina tem o projeto original assinado pelo arquiteto Jayme Lerner, que foi prefeito de Curitiba e governador do Paraná.


Lugar de todos, os espaço público entrou nas propostas de todos os candidatos a prefeito, mas continua muito sujo e bastante perigoso.
Foto: Marcos Alves

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Crônica - Cocorécos e cocoricós

- Có có ró cóóó... Có có ró cóóó...

O canto, seguido de um bater de asas, foi um despropósito às 15 horas da tarde. Mas havia caído uma pancada de chuva em meio ao ambiente sombreado pelas árvores e escurecido pelas nuvens pesadas que desabaram após a ventania. O retorno do sol parecia o amanhecer.

Não foi por menos que o estridente boa tarde atravessou as janelas de vidro dos edifícios do outro lado da rua e incomodou moradores. Alguns deles, no descanso de depois do almoço, saíram da leve sonolência no sofá apenas com o desajeitado espreguiçar. Outros vociferaram e espraguejaram, embora, naquela hora, o ronco dos motores dos carros fosse mais perturbador.

O dono do fiasco foi, como nas ocorrências anteriores, o galinho carijó de pena marrom. Vaidoso, ele costumava se galantear no Bosque Central de Londrina, exibindo garbosamente a sua pescoceira preta, de penas tão brilhantes que ao sol puxavam para um esverdeado interessante.

O fulaninho era tão metido que estufava o peito entre uma ciscada e um bico, olhando rente para o horizonte enquanto engolia um inseto ou uma larva catada do chão balançando as cristas avermelhadas.

Poderoso, o galinho não era muito de dar ouvidos aos conselhos dos companheiros. Achava-se o tal e peitava, nas tardes de mais freqüência, os idosos que ocupavam as mesas de cimento para um jogo de cartas ou dominó. O fulaninho ia se metendo no meio, ciscando e atirando terra nas sandálias daqueles senhores.

Nem tão velho, mas tradicionalmente respeitado pela galinharada como um mestre, o galão de penas mescladas, com o preto predominado o cinza e o branco, não se conteve depois do despropósito do galinho. Chamou fulaninho para uma conversa e foi rigoroso:

- Có có... Cocoricó... Sabia que estão querendo tirar a gente do Bosque e mandar para alguma fazenda?

- Se for a fazenda da novela Paraíso eu vou, mestre. Lá tem fartura e emprego ali é o que não falta. Basta o cara anunciar que vai perder o emprego e chega um fazendeiro para dar um jeito...

- Ta certo. E tem patrão que dá terra para o empregado que vai casar. Mas não é para a fazenda do Paraíso que nós vamos. Os homens lá da Prefeitura só disseram que já tem gente interessada...

- Se for gente de bem, por que não? Ta certo que perdemos os restos das pipocas, mas vai que seja uma terra de minhoca abundante?

- Já se imaginou dentro de uma panela de pressão? Aquilo assobiando e você lá dentro, depenadinho?

- Ai complica, mestre...

- Já se imaginou dentro de um forno, todo pelado, coberto de molho e com as perninhas amarradas? Aquilo borbulhando, formando um torresmo? Então cante só ao amanhecer, mas cante baixo, porque o pessoal da vizinhança está reclamando da nossa cantoria.

Só assim o galinho recuou e se colocou abaixo do galão naquela conversa tida na parte de cima do Bosque, lá onde ninguém de sã consciência entra nem durante o meio da tarde com medo de ser assaltado. Estrategicamente, fulaninho se calou. Em outras ocasiões, ele teria enfrentado de igual para igual. Mas os dois exemplos, o da panela e o do forno, foram demasiadamente fortes.

Enquanto o galão se afastava, o galinho atrevido fez de conta que estava arrependido: bicou os pés, limpando torrões de terra grudados nas laterais dos dedos, coçou com o bico as costas, piscou simulando sono e armou as asas, pronto para bate-las. Mas só soltou um có có có.

Engoliu o resto e foi para as bandas das mesas de cimento, fazer média com alguns jogadores. Ciscou de leve, consumiu algumas moscas que incomodavam os presentes, exibiu a pescoceira preta esverdeada para algumas mulheres que acompanhavam crianças e terminou mais uma tarde no Bosque.

À noite, escorado em apenas um dos pés, dormiu como um galo enquanto homens queimavam pestanas para dar um fim na espécie que incomoda por estar em um lugar que os humanos consideram só deles, o meio urbano.

De manhã o galinho cantou, forte e estridente, como faz para anunciar a chegada de cada dia. Nos prédios ao lado, muita gente se virou na cama e xingou o prefeito, os vereadores, os ambientalistas e o companheiro ou companheira de leito, que mais se invocou com a implicância humana do que com a natureza.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Crônica - Na altura do chão

(Texto produzido em Jaraguá do Sul, Santa Catarina)

Os pés de Michelle balançam de cima para baixo. Sob a escrivaninha marfim, no rumo do monitor 14 polegadas que a empresa emprestou a ela para despachar relatórios, preencher planilhas e elaborar contratos. Ajeitados no bico fino do sapato social, sobem e descem insistentemente, anunciam o estado de espírito da moça de rosto fino e delicado.

Os pés de Michelle não balançam de um lado para o outro. Não dizem sim ou não. Não estão folgadamente expostos por sandálias rasteirinhas que deixam ver as unhas feitas. Ao lado do pé da mesa que comporta o conjunto de duas gavetas, apenas chacoalham apressadamente, escondem a expectativa da menina de concluir um manuscrito, envelopar uma carta, fechar o malote, encerrar o expediente e ir para casa.

Acomodados num automóvel confortável que corta a Epitácio Pessoa, ladeia a Getúlio Vargas, evita a Marechal Deodoro e foge do trânsito das seis até chegar em casa após um dia de trabalho, os pés de Michelle pedem o que o rosto dela manifesta com um olhar fadigado: descanso.

Os pés de João Antônio pedalam sem parar. Incomodados pelas tiras ressecadas das havaianas de pisos azuis e palmilhas brancas encardidas, rodam ordenadamente para fazer a bicicleta subir a Procópio Gomes de Oliveira: o lado esquerdo empurra, o lado direito descansa; o lado direito empurra, o lado esquerdo descansa e alivia a dor chata da unha encravada do dedão.

Escorados nos pedais gastos da condução de João Antônio, ajudam o ciclista a queimar calorias e arrancam expressões de esforços do rosto suado do catador de papel. Os pés de João Antônio não querem chegar a algum lugar que leve ao descanso após o expediente das seis da tarde. Não conduzem ele ao frescor de um banho e em seguida a um outro par de sandálias, mais novos e menos sujos.

Postados na beira da calçada, sustentam o corpo arcado, de pele grossa e enrugada, encostado na lixeira plástica que oferece reciclados: uma latinha de alumínio, uma caixa vazia de sapatos, um par de meias furadas que, no mínimo, dão numa bola redonda o bastante para os pés dos meninos de João Antônio chutarem na direção do gol marcado pelo pé de mamona no fundo do quintal.

Os pés do motorista do ônibus forçam na subida, exageram nas curvas e fazem dezenas de pés de Michelles e Joãos procurarem apoio no assoalho do coletivo. Os pés camuflados nos coturnos são incógnitas: podem esconder temperamentos incontidos de homens que chutam protegidos pelos coturnos.

Os pés da indiazinha sentada na beira do shopping apontam com os dedos o outro lado da Emílio Carlos Jourdan, onde as janelas mostram um homem de pés calçados mordendo um pedaço de esfirra.

Os pés do motorista do ônibus não pisam fundo no acelerador do velho Chevette que o transporta do terminal central urbano para a casa da Ilha da Figueira, onde os pés da mulher dele a fizeram ir de um lado ao outro, do fogão para o tanque de lavar, do tanque de lavar para a pia da cozinha, da pia da cozinha para o varal, até a janta ficar pronta e consistente para dar ao motorista do ônibus pés tão fortes amanhã, mas controlados o suficiente para evitarem o susto de alguém na faixa de pedestres da Reinoldo Rau.

Os pés enfiados nos coturnos não querem chutar, embora o homem que eles agüentam saiba que o menino de pés pequenos, puxado pelo pai de pés enormes, sinta medo de o soldado confundi-lo com um monstro que pode ser chutado por pés de coturnos que camuflam um homem de personalidade estranha para o menino dos pés que querem crescer para, talvez, calçar um par de coturnos.

Os pés da indiazinha não querem este lado da rua, onde ninguém se interessa pelas peças de artesanato enfileiradas para venda na calçada onde os pés vão e vem, apressados, levando pessoas de pés inchados tamanho é o peso do corpo de quem chega, de quem vai, de quem volta e gira a cidade um dia após o outro, usando os pés para andar e carregar sentimentos e aparências distintas: o olhar meigo de Michelle, a testa enrugada de João Antônio, a preocupação do motorista do ônibus com o estado de saúde do rapaz que perdeu chão e caiu na curva acentuada e feita com pressa depois da ponte Abdon Batista, a prepotência do homem de pés encapados com coturnos, o olhar assustado do menino de pés número 30, a indiferença do pai de pés 41.

É a vida que passa empurrada por pés, na altura do chão. De onde as pessoas saem ou chegam e fazem a vida girar, tocada por pés que não deixam ninguém ficar parado num só lugar.

Crônica-reportagem - De pulo em pulo chegamos lá


Dá uma guinada rápida para a esquerda e já puxa o volante à direita. Cuidado! Olha o meio-fio e a suspensão que custou mais de R$ 1.200,00 para ficar no ponto.

O motorista transpira e a mulher ao lado se enerva. A criança bate com a face na janela e solta um gemido. A batatinha escapou do saco plástico e invade o assoalho do carro. Tem várias delas batendo nos pés. A salsicha, depois dessa, só dá para molho.

Melancia? A verdona exibe assanhada o vermelho da polpa enquanto sacoleja sobre o carpete do automóvel, espumando o seu líquido doce e manchando o acabamento.

A aventura daquela família começou há meia hora, quando a mulher sujeriu ao homem que descesse pela avenida Tiradentes rumo ao centro. Ela queria aproveitar o trajeto para passar no supermercado.

O homem rosnou. Reclamou que já estava atrasado para a pelada do sábado com os amigos. O tempo fechou dentro do Golzinho. Mas o homem teimou e pegou a rua General Tasso Fragoso, de onde pretendia cair na avenida Maringá pela rua Ibiporã.

E as passocas, embaladas num cartucho de papel, voaram quando a roda esquerda bateu na quina de um buraco. Uma delas espatifou no teto, junto à cabeça do menino que no momento se preparava para uma mordida.

O trecho maldito da rua General Tasso Fragoso parece a foto da lua, com sua crateras intrigantemente expostas aos olhares dos curiosos. Fica entre a rua Foz do Iguaçu e a rua Professor Samuel Moura, esta paralela à avenida Maringá, na Zona Oeste de Londrina.

Dali, da Samuel Moura, a via recebe outro nome: Ibiporã, que corta no rumo do centro até terminar na avenida JK. O trecho, de duas mãos, é de intenso movimento. Passa carro sem parar de um lado e outro.

Alguns dos buracos no esfalto são enormes em profundidade e extensão. Como participantes de uma gangue, eles nunca estão sós. Se entrelaçam, encostam-se pela bordas e vão comendo a pista.

Há quem diga que os buracos são olhos gigantes à espeita dos descuidados: e lá se vai mais um amortecedor a ser pago com o cartão de crédito.

Outros comentam que os buracos do trecho maldito da rua General Tasso Fragoso são mandados. Bocas sussurram que os votos computados nas eleições não justificam uma obra séria e decente no lugar.

Aliás, o trecho maldito ladeia, um luxuoso condomínio habitacional, onde a maioria dos moradores se locomove com automóveis muito mais macios que o Golzinho da família da aventura do sábado, mas tão sujeitos a panes e danos sob condições de tráfego em terrenos acidentados.

Uma versão, não confirmada, imputa ao General Tasso Fragoso a responsabilidade daquele descuido do poder público com as famílias que moram perto e as pessoas que transitam pelo trecho.


Militar e escritor, Augusto Tasso Fragoso liderou um golpe lá por 1930 para impedir a posse de Júlio Prestes na presidência do Brasil. Assim ele chefiou uma Junta Governativa Provisória. Será que o homem foi tão ruim?

Esta rua é minha, sim senhor

Não moro no trecho maldito da rua General Tasso Fragoso e muito menos no decidão sacolejante da avenida Castelo Branco, que leva aos campus da Universidade Estadual de Londrina.


Estas duas vias, assim como tantas outras que cortam os bairros de Londrina e levam seus moradores de um lugar ao outro, têm constantemente seus buracos tapados.

Assim, quando não são as crateras, surgem as ondulações. Carro popular ou de luxo, motocicletas e até bikes sofrem os efeitos.

Em alguns trechos, os saudosistas lembram dos bons tempos das carroças de rodas de madeira e aro de aço. E como sacos de batata sacolejam. Bom para a digestão, desde que o passageiro ou o próprio motorista não estejam com o estômago ruim.

Esta e outras ruas de Londrina são minhas e de meus vizinhos, parentes, colegas de trabalho e de lazer.

Como cidadãos, pagamos impostos para caminhar por elas com tranquilidade e muita segurança.

Fazendo remendos e mais defeitos


Na manhã de terça-feira, dia 1 de setembro, o trecho maldito da rua General Tasso Fragosos recebeu a visita de uma equipe de operários para tapar buracos que se multiplicaram e cresceram após mais um período de chuvas.


Um caminhão basculante trouxe o material que foi jogado sobre as crateras. Se compactação, ele serviu como um quebra-galho, como das vezes anteriores, apenas suficiente para mascarar o problema. Após contínuos e frequentes tapa-buracos, o asfalto virou um queijo. Ficará assim até a próxima onda de chuvas.

A política editorial deste jornal é de retratar situações que são visíveis. Autoridades responsáveis poderão se manifestar na próxima edição.

No caminho de uma pedra


Por muito pouco Ivone dos Santos escapou de um pedra atirada pelos pneus de um carro que atravessou o trecho maldito.

Ela, que tem 42 anos, trabalha há 10 anos no condomínio residencial ladeado pela rua General Tasso Fragoso. Um dia Ivone ocupava-se de lavar a calçada. O carro veio, desviou de um buraco e ladeou no meio-fio onde ela estava.


Resultado da falta de compactação da massa que é jogada para tapar os buracos, as pedras escapam e ficam depositadas na beira do asfalto.

Com o impacto dos pneus, algumas são atiradas para longe e com força. Risco também para o pedestre que passa pelo local.

Reportagem - Civismo sem vez para a gripe


O tempo foi padastro e a preocupação com a gripe H1N1 não conseguiu manter parte dos londrinenses em casa na manhã de segunda-feira, 7 de setembro. Sob um sol brando, após o dia amanhecer com risco de chuva, pais, crianças, vendedores ambulantes e alguns políticos foram até a avenida Leste-Oeste, na região central de Londrina, para participar das comemorações da Independência.


Programado para iniciar às 9 horas, a parada cívico-militar começou com cerca de 40 minutos de atraso, só depois que o prefeito Barbosa Neto desfilou em um Jeep do 30º Batalhão de Infantaria Motorizada de Apucarana, ao lado do comando do batalhão. Foi o primeiro desfile do prefeito de Londrina após a sua posse e também o primeiro teste de popularidade diante de um público heterogêneo e em local aberto. Mas apenas um ponto do percurso alguns manifestantes exibiram cartazes cobrando atos de Barbosa como administrador público.


Anunciado como uma das atrações do desfile, o Batalhão de Apucarana abriu o desfile com a sua banda, tropas de homens armados a pé e muitos veículos. Escolares atendidos por programa do Exército desfilaram nos caminhões e ônibus do Batalhão.


O espetáculo militar teve sequência com os soldados do Tiro de Guerra de Londrina e as representações da Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e Polícia Civil. Entidades como a APAE de Londrina e o Instituto dos Cegos vieram em seguida, acompanhadas por grupos da terceira idade e escolas municipais.


Passaram pela avenida cerca de 3.500 pessoas representando os grupos que participaram das comemorações. Sem a presença das grandes fanfarras e bandas Marciais dos colégios estaduais, o desfile de Londrina, que terminou depois do meio-dia, também oportunizou colecionadores de carros e membros de grupos tradicionalistas a mostrarem os seus bens, as suas habilidades e o seu patriotismo. Cavalos e até um touro pisaram no asfalto da Leste-Oeste.


Pilotos da companhia Ases do Motociclismo proporcionaram um espetáculo à parte enquanto as entidades e as escolas desfilavam, com acrobacias que em alguns momentos conseguiram ajuntar na concentração um grande número de pessoas.

Nas calçadas, enquanto uma entidade passava com uma personagem fantasiada de mosquito da dengue, nem máscaras para proteger o nariz e a boca e muito menos álcool em gel. A semana, em Londrina, havia começado sem tanta preocupação com a gripe H1N1, após quase duas semanas de acesso limitado nas agências bancárias e uma dose de boatos em torno da doença.


Na política, um partido distribuiu panfleto pedindo "Fora Sarney" (senador José Sarney). Em um panfleto distribuído durante o desfile, manifestantes exigiram do governo Lula a quebra da patente do medicamento Tamiflu e a sua distribuição massiva para quem está com gripe.


O Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, com as participantes usando as cores rosa nas roupas, cantou a música “Maria, Maria”, de Milton Nascimento, em frente ao palanque. Movimento dos Sem Terra, pastorais do Migrante e dos Carcerários e grupos dos excluídos cantaram “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré.


Mais acima, alguns minutos antes do encerramento das comemorações na Leste-Oeste, o vendedor de balões e de cataventos com as cores da bandeira do Brasil fez um balanço: o movimento de vendas havia sido fraco.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Reportagem - Mulheres bordam a história

A vida se abriu feito um leque para Dona Rosa, 64 anos, uma moradora do Conjunto Habitacional São Lourenço, bairro da Zona Sul de Londrina. Ela não ganhou um prêmio milionário de loteria e também não foi contemplada com uma aposentadoria extraordinária. Dona Rosa, mãe de quatro filhos e avó de quatro crianças, ingressou há cerca de um ano e meio num grupo de mulheres da região que busca soluções de melhorias para o cotidiano das famílias do lugar.

A espera pela oportunidade de uma vida comunitária durou mais de seis décadas. Cabelos grisalhos na altura dos ombros, Dona Rosa distribui sorrisos e simpatia quando conta que antes de deixar o seu último emprego de doméstica nada podia fazer além das tarefas de casa nos horários de folga. Ela deixou de trabalhar há dois anos, depois de uma rotina de labuta diária iniciada quando criança, em uma propriedade rural de Apucarana, município do Norte do Paraná.
Nem a mudança para a cidade e tampouco o casamento a liberaram do trabalho. Sem qualificação, Dona Rosa ocupou-se de ser empregada doméstica. Limpava a casa de outras famílias de segunda-feira até sábado, numa jornada que se iniciava às 7 horas, no ponto de ônibus do bairro pobre e sem asfalto onde mora até hoje, até um dos conglomerados mais nobres da região central de Londrina, o Jardim Quebec. O retorno para casa se dava por volta das 19 horas. Só então ela se entregava às emergências de sua moradia simples, muito diferente dos sobrados da localidade onde passava o dia.

Na tarde de quarta-feira, dia 15 de julho, Dona Rosa cumpriu um compromisso diferente da rotina de dois anos atrás. Ela passou o período em companhia de outras mulheres da região na Biblioteca Virtual do Jardim Franciscato, bairro vizinho ao São Lourenço. Integrante de um curso de bordados, Dona Rosa usou sua habilidade com as agulhas e as linhas e somou tudo com a criatividade que aprendeu a colocar em prática desde que trocou as paredes de sua casa pelo prédio de um centro comunitário.

Bordou toalhas e exibiu, com indisfarçável orgulho, uma blusa de lã que custou no varejo cerca de R$ 40, mas com as flores confecciondas e aplicadas por ela pode ser revendida por até R$ 80. Dona Rosa já tem encomendas que devem garantir um substituto para o salário de doméstica, pois a aposentadoria não veio, por culpa de anos trabalhados nas casas alheias sem o registro na carteira do trabalhador.

Engana-se, porém, quem imagina que as cerca de 20 mulheres que repartem o espaço com Dona Rosa apenas bordam ou tricotam toalhas e peças do vestuário. O projeto comunitário tem um objetivo muito claro. Ensinar e estimular habilidades manuais é apenas uma parte. Mantida pela Associação das Mulheres Batalhadoras do Jardim Franciscato, a atividade é uma forma de proporcionar às participantes uma alternativa para melhorar a renda familiar e, ao mesmo tempo, conscientizá-las sobre as questões em torno de suas comunidades.

Há cerca de dois meses, a entidade incentivou a comunidade a acordar cedo. Num entroncamento próximo ao terminal de transporte coletivo da região um piquete foi formado pelos moradores, em protesto à alteração do trajeto de uma linha de ônibus. Horas depois a empresa concessionária retornou ao percurso anterior. No sábado, dia 11 de julho, a Biblioteca Virtual sediou uma “Tarde de auto-estima”, nome dado ao evento que reuniu mulheres que sofrem violência doméstica.

Questões coletivas, como asfalto, trânsito, energia elétrica, água, esgoto, saúde, escola e segurança, costumam ser solucionadas pelo poder público só depois das pressões feitas pelas mulheres batalhadoras do Franciscato. Dona Rosa, enquanto borda suas blusas, mantém com as companheiras do grupo diálogos que nem de longe incluem os capítulos das novelas. Os temas são os assuntos que preocupam a comunidade.

Essa dedicação pelo coletivo começou de uma maneira extrema e constrangedora em 1982. Personagem de um trama de discriminação e preconceito, uma outra mulher participante do grupo, a mineira Rosalina Batista, hoje com 62 anos de idade, era uma das moradoras do Jardim Franciscato, na época um loteamento sem a infraestrutura necessária e estigmatizada pela onda de violência. Habitada em sua maioria por pessoas que vieram da zona rural, como era o caso da família de Rosalina Batista, o loteamento, localizado na periferia de Londrina, era também moradia de pessoas envolvidas com o tráfico de drogas.

Magra, de baixa estatura e olhar firme, atrás dos aros redondos dos óculos, Rosalina havia enfrentado o inferno com seus pais e irmãos no Vale do Jequitinhonha, em Minas, trabalhando como meeiro em uma propriedade rural. A vinda para Londrina ocorreu pouco antes da revolução de 31 de março de 1964, que resultou no regime militar. Meses depois, o pai de Rosalina, Pedro Teixeira da Cruz, foi presos e detido por 55 dias por ter participado de uma reunião de trabalhadores rurais, cujo objetivo era de pedir aos patrões melhores condições de trabalho.

Os primeiros anos no Norte do Paraná foram também de sofrimento. Moradores de um sítio no então Distrito de Tamarana, hoje município vizinho de Londrina, a família foi vítima de exploração da mão de obra trabalhando nas lavouras de café. De Tamarana foram para outras propriedades rurais e numa delas, conforme lembra Rosalina Batista, os patrões permitiam que os empregados se reunissem num galpão, à noite, para assistir novela da televisão.

Nessa propriedade a família conseguiu ajuntar economias. Já casada, Rosalina Batista pegou a sua parte e comprou um lote no Franciscato, pois na área urbana de Londrina teria melhores condições para o estudo dos filhos. Nos primeiros tempos trabalhou como bóia fria, na roça. Depois se empregou como diarista.

Num dia de sol forte do verão londrinense, Rosalina chegou ao trabalho e foi demitida. A patroa justificou que não era conveniente manter como empregada doméstica uma pessoa que morava num bairro violento da Zona Sul. A mineira fez trecho do retorno para casa a pé, entre soluços e lágrimas que dificultavam o andar.

Após o pranto contido, decidiu que algo teria que ser feito não só por ela e por sua família, mas também por seus vizinhos. Estes tinham dificuldades de se empregar nas casas comerciais do centro da cidade por morarem no Franciscato. Alguns moradores emprestavam endereços de outros bairros, de conhecidos, para conseguir aprovar compras no crediário.

Quase dez anos depois, no dia 19 de dezembro de 1991, Rosalina se juntou a outras seis mulheres – Neuci, Lurdes, Cida, Dilva, Fátima e Neide – e fundou o então Clube de Mulheres Batalhadoras do Jardim Franciscato, que hoje é uma associação. Uma das primeiras iniciativas da entidade foi a implantação na comunidade do curso de alfabetização de adultos. Paralelamente as mulheres batalhadoras brigavam por direitos às condições básicas de higiene e saúde, transporte adequado, segurança e cursos de aprendizagem profissional.

Em 1997, o nome da mulher que foi discriminada por morar num bairro pobre e com alto índice de violência ultrapassava fronteiras. Ela foi convidada a participar de um congresso internacional em Miami, nos Estados Unidos, cujo tema foi o desenvolvimento de lideranças comunitárias. Naquela ocasião, Rosalina foi provocada pelos organizadores a apresentar um projeto de novas tecnologias para ser desenvolvidos em comunidades. Cerca de oitocentos projetos foram inscritos. A de dona Rosalina, da construção da Biblioteca Virtual, foi o vencedor. O prêmio, oferecido pela Fundação Kellog’s, foi de 50 mil dólares.

Desde então Rosalina Batista já participou de oito eventos internacionais, fora os congressos e as conferências da qual fez parte, como convidada de destaque, em Brasília, São Paulo, Santa Catarina, Minas Gerais e outros estados brasileiros.

Na área da saúde, Rosalina Batista é representante dos usuários no Conselho Municipal de Saúde de Londrina e do Conselho Estadual de Saúde do Paraná. A mineira também é conselheira da mulher de Londrina. Na quinta-feira, dia 16, Rosalina foi procurada por uma empresa de informática, que propôs à sua entidade uma parceria para cursos.

Dois dias antes, ela ocupou as galerias da Câmara Municipal de Londrina, numa sessão que debateu o pedido de aumento, pelas empresas concessionárias, da tarifa do transporte coletivo urbano. Rosalina se acomodou num canto discreto, mas foi percebida pela maioria dos 21 vereadores. Em silêncio, ela se manteve atenta aos acontecimentos, mas decidiu não se pronunciar sobre o problema. Calada, a mineira criou constrangimento nos políticos, que trataram a questão com mais seriedade.

A Associação das Mulheres Batalhadoras do Jardim Franciscato enfrenta problema de caixa, pois os cursos oferecidos pela entidade são gratuitos. O fornecimento de água na Biblioteca Virtual, onde as atividades são realizadas, pode ser cortado a qualquer hora, pois quatro faturas mensais deixaram de ser pagas. O telefone foi cortado e a internet deixou de funcionar. Ladrões arrombaram os prédios e levaram os computadores.

Mineira, Rosalina Batista não se rende. Continua, com a ajuda da comunidade, a ensinar as mulheres a bordar e tricotar um jeito novo de enxergar o mundo e de viver. Ela poderia se inspirar em exemplos negativos de outras entidades, que não vacilam em recorrer aos políticos para resolver problemas que nem sempre são coletivos. Mas diz que não mistura política social com política partidária.

Na casa de Rosalina moram, além dela e do marido, três filhas casadas e alguns netos. Atualmente uma crise de desemprego passou por lá. A família enfrenta dificuldades. Mulheres como Dona Rosa, a outra personagem desta história, por enquanto só podem agradecer Rosalina com a solidariedade que não se toca, por ser sentimental, mas empresta mais força para bordar uma rede comunitária capaz de superar problemas.


Na foto, Rosalina Batista e a placa inaugural da Biblioteca Virtual

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Conto - O último dia

A lotação encostou no ponto com seis minutos de atraso. A chuva, quase garoa, havia comprometido por mais uma manhã a pontualidade do ônibus. O carro chegou lotado de trabalhadores e estudantes, cada um protegido a sua maneira do frio de começo de inverno. Bolsas, mochilas e sacolas, escoradas nos corpos de seus donos, engordavam mais as pessoas e tornavam o corredor do coletivo intransitável.
Eneida havia acordado, como de hábito, quinze minutos antes das sete. Banhou-se com a rapidez de costume e antes de alisar as roupas separadas na noite anterior e estendidas no encosto da cadeira enrolou-se no roupão e foi à cozinha preparar o café. A rotina só era quebrada com a tensão que dominava a mulher há dias. Embora tivesse jurado que não se deixaria afetar pela situação que a angustiava, Eneida obrigava-se a admitir que não se sentia bem.
Ainda assim, simulou normalidade nos seus atos e mecanicamente executou as tarefas necessárias para aprontar a sua primeira refeição do dia. Duas medidas de pó de café no filtro descartável, água suficiente para encher até a boca uma xícara de chá e o aperto do botão da cafeteira que, ligada, em segundos produziu os sons do líquido esquentando e escorrendo no recipiente de vidro.
Enquanto isso, alisou ligeiramente a faca no pão amolecido tirado da geladeira, após raspá-la muito superficialmente na mantegueira. O forno de microondas ao lado mal teve tempo de emitir o ruído do prato giratório para anunciar com três apitos que o produto já estava aquecido.
Esse passo a passo tendia ser cumprido sem enjôo e sensação enfadonha, quando feito ao som de um cantarolar ou acompanhado de um pensamento interessante: sobre um bom acontecimento do dia anterior ou sobre uma boa possibilidade no dia que surgia à frente, por exemplo. Não era o caso daquela quinta-feira.
Há trinta dias Eneida assinou na empresa onde trabalha a sua carta de demissão. O documento, apresentado pelo encarregado dos recursos humanos após uma rápida explicação sobre o motivo dela ter sido chamada ao setor, apareceu diante de seus olhos formal e genérico. Apenas comunicou sobre a dispensa e as opções para cumprir o aviso.
Eneida acabara de completar dezenove anos na empresa. Foi admitida ainda solteira, estudante do ensino médio ensaiando para o vestibular. Pretendia enfermagem, mas recepcionista de um grande escritório de representação comercial de produtos importados, preferiu cursar administração. Após duas tentativas fracassadas, trocou por secretariado e agradou os seus superiores.
Um ano e meio depois trocou a mesa da recepção por uma escrivaninha na sala de espera da diretoria. Ganhou a simpatia do chefe e o ódio das colegas que haviam ingressado na empresa muito antes dela. Foi vítima de falatórios quando se viu obrigada a fazer serão. Volta e meia alguém lhe perguntava com deboche se as horas extras estavam rendendo bem.
Mas Eneida tinha muito pouco para ser musa de patrão. Obesa desde adolescente, só havia passado pelo processo de seleção porque aquela era uma empresa de grande porte, com uma política de recursos humanos rigorosa. Eneida havia tentado muitas outras vagas, mas as oportunidades cessavam quando o entrevistador que se punha no outro lado da mesa era a pessoa que poderia ser o patrão ou o chefe.
Segura e com pleno domínio dos assuntos profissionais, Eneida era desaprovada no quesito beleza. Claro que nunca alguém justificou a ela: "Você não serve para a vaga porque é feia". Mas Eneida mesmo chegava à conclusão ao observar as concorrentes.
Por isso, quando a oportunidade chegou na multinacional, Eneida decidiu agarrá-la com unhas e dentes. Não foi por uma só vez que ela flagrou colegas comentando, aos risos: "O comitê de segurança no trabalho vai ter que mandar fazer uma cadeira reforçada para ela..."
Quanto às conversas maldosas sobre os serões de começo da noite, alguns diziam que o esguio diretor, casado com uma loira invejada, tinha lá as suas preferências por uma gordurinha.
Eneida estava para se formar em secretariado quando conheceu Alberto, um tipo pouco atraente, tímido e solteirão. Era um excelente técnico de informática e comunicava-se com as máquinas da empresa com um prazer espantoso. Magro, com os olhos destacados pelas grossas lentes dos óculos, mantinha-se com os cabelos despenteados devido à mania de passar as mãos na cabeça a cada enigma que decifrava durante as configurações dos equipamentos.
Zero em relações humanas, Alberto quedou-se por Eneida porque ela era a única pessoa que conseguia manter uma comunicação com ele. Alberto, na verdade, enxergou com os olhos da alma a simpatia e a beleza que o coração de Eneida carregava. Tanto que Alberto nunca enxergou a obesidade da namorada e os malditos comentavam nos cantos da empresa que, realmente, o amor era cego.
O anúncio do noivado, quase cinco anos depois, rendeu a Eneida uma promoção: ela ganhou o cargo de secretária executiva. Para criar a nova vaga o diretor usou de toda a sua honestidade. Justificou que tratava-se de uma excelente funcionária e respondia além da expectativa às necessidades da empresa. O diretor tinha ciência que Eneida era muito mais que isso. Ágil na execução das tarefas, confiável, criativa e sem frescuras, Eneida, tecnicamente, era a ajudante que qualquer chefe sensato gostaria de ter.
O casamento com Alberto fora marcado para setembro. Não do ano que vem. Do outro e do outro ano que vem, amarrando um noivado demorado e recordista em tempo de espera. Mesmo as boas línguas diziam que não havia fervura naquela relação e o que sobrava entre os dois era uma compaixão.
Talvez por isso mesmo, ainda noiva e já formada e pós-graduada, Eneida um dia mirou-se no espelho e percebeu que havia adquirido um sentimento que jamais havia experimentado, a auto-estima. Enfrentou dietas e aparelhos de academias, perdeu peso e ganhou, em pouco mais de quatro meses, nova fisionomia e contorno. A gordura desapareceu e o rosto, antes rechonchudo, ganhou um aspecto até sensual. Nascia uma mulher madura, cujas rugas, imperceptíveis, formavam um traço marcante.
Foi, porém, tarde quando ela percebeu que o sacrifício para ser bela afetara o desempenho profissional. Eneida, já beirando os quarenta anos e prestes a se casar com um sujeito de trinta que nunca tirava a cara da frente dos monitores estampados com programas da microsoft, também se tocou que a possibilidade de uma vida a dois estava com os dias contados.
Para piorar, o diretor, já grisalho mas ainda esguio, preparava sua transferência para a matriz. Solidário à fiel subordinada, ainda tentou convencer o seu substituto que Eneida passava por uma fase de mudança pessoal e logo se recomporia profissionalmente. Em seu discurso de despedida, até mencionou, diante de todo o quadro de funcionários, que a sua promoção ocorria graças à colaboração da secretária executiva que manteve por quase duas décadas.
Mas o substituto estava há muito tempo de olho na estagiária de administração, uma morena de vinte anos, corpo de modelo, cabelos alisados com progressiva e roupas de grife. Então Eneida, ainda no cargo de secretária executiva, passou a ser uma espécie de subordinada da morena, que ganhou uma mesa e um computador ao lado do dela.
Eneida deixou de ser requisitada pelo novo diretor, pois recebera a incumbência de ensinar a morena a lidar com o excel e outros programas complicados utilizados pela empresa. Quando a morena dominou os programas de controle de estoque e gestão, Eneida foi chamada pelos recursos humanos para assinar o aviso prévio. Ela teria prazo até o seu desligamento para ensinar a morena a mexer com as planilhas.
Eneida relaxou propositalmente na incumbência. Esperta, a morena recorreu às lições de Alberto, que seduzido pelos agrados da jovem que o chamava de lindo, esfriou a relação com Eneida e terminou com o noivado.
Nada mais restava. O diretor que enxergou o potencial de Eneida ganhou força e estabilidade na matriz, onde entregava-se à questões complexas inerentes a uma grande representação. Eneida, saudosa, imaginava que ele havia escolhido para auxiliá-lo uma secretária executiva feia e centrada nas suas ocupações. Daquelas de pouca conversa mole e uma objetividade irritante no cumprimento das tarefas. Assim como ela, uma secretária sem pernas de fora e seios saltados escapando dos decotes.
Alberto também mudou. Passou a frequentar bares e a procurar garotas de programas que em seu imaginário se pareciam com a nova secretária executiva que, depois de aprender a mexer com o básico das planilhas, nem olhava mais para ele quando passava ao lado.
Eneida assina o seu desligamento da empresa hoje. Se o ônibus não atrasar, será pontual com os recursos humanos. Ela deixou as dietas e as academias. Engordou não tanto quanto antes, mas já voltou a ser observada com olhar maroto quando se enrosca na roleta do coletivo. Eneida diz bom dia e sorri para os conhecidos durante o percurso até o trabalho. Uma mão segurando o pingente, a outra afaga de leve o coração. Ela sorri a cada curva enquanto tenta manter o equilíbrio. Mas o coração sente uma dor e verte uma lágrima que só quem conhece Eneida enxergaria. Este, porém, no seu equilíbrio profissional, é provável que esteja, na matriz, trabalhando a valorização de outra Eneida.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Crônica - Tens razão, senhores...

Hoje vesti por alguns minutos a carcaça de vagabundo. No bom sentido. Sabe, aquele vagabundo inofensivo, que não subtrai do alheio, não incomoda ninguém e deixa de fazer sem causar danos aos outros.
Repórter de um jornal de porte médio, há anos cai num bairro de Londrina e fui trabalhar uma enquete. Nesse procedimento o profissional chega, sonda o ambiente, analisa as pessoas e escolhe aquelas que podem dar história. Foi quando ouvi de um sujeito algo mais ou menos assim: "Esses caras de jornal não fazem nada na vida. Só ouvem os outros".
Engoli, pois não vi condições de dizer ao fulano que produzir uma reportagem é muito mais do que ouvir. Aliás, ouvir é uma arte e só ouve quem não quer ser surdo. Saber ouvir é um dom. Ouvir, em algumas histórias, é essência.
Ainda assim, entre reflexões e exercícios mentais rigorosos para absorver de uma forma positiva a etiqueta de vagabundo, coisas que pratico quase que todos os dias ao acordar, andar, comer, sentar, sair, escrever e deitar na espera do sono, mantenho no potinho da memória a cara irônica do sujeito e, às vezes, me arrependo muito por ter me calado.
Recentemente essa lembrança me bateu com muita força quando uma outra cara, muito mais raivosa do que irônica, apertou a mesma tecla. Talvez porque o bom profissional trabalhe no sîlêncio. Ou porque somos, como qualquer trabalhador de outras áreas, uma maioria de anônimos, que desenvolve sua atividade sem estardalhaço, sem almejar o pódio e passando longe do vedetismo.
Acontece que nesses casos o trabalho passa por processos esgotantes. Pensa-se muito, pesquisa-se mais ainda para botar um texto pronto nas páginas do jornal ou para colocar no ar uma fala. O exercício inclui a análise de cada caso: quantas pessoas serão beneficiadas se eu produzir esta reportagem? Que tipo de interesse eu vou atender assinando uma matéria dessa? Qual é o impacto que a minha abordagem vai gerar?
São questões relacionadas à ética e à responsabilidade social de uma profissão que mexe com informações e opiniões. Escrever ou falar, sem se preocupar com elas, isso sim é coisa de vagabundo. Escrever ou falar de acordo com interesses estranhos ou próprios, ai tem um problema muito sério.
Falta agora alguns minutos para às dezessete horas. Um estrondo no final da tarde de ontem, em Londrina, foi noticiado por uma emissora de televisão. Um site noticioso repercutiu. Nenhum jornal tocou no assunto. E ninguém sabe o que aconteceu. Tremor de terra?
Alguém me diz que uma pessoa foi baleada no centro de Londrina lá pelo meio da tarde de hoje. Havia um burburinho nas proximidades do Bosque central de Londrina, onde a vítima ainda esperava por socorro. Os meios de comunicação prometem informações em tempo real nesta febre comunicacional provocada pela internet. Mas nada de informação nos sites. Será que o cara baleado era um cidadão comum?
Repercute também a informação sobre a determinação do prefeito da cidade de cobrar taxa para liberar a realização das procissões de Corpus Christi na quinta-feira, quando as ruas por onde os fiéis caminham levando as suas crenças são enfeitadas.
Mas, dá licença por alguns minutos, por favor. Desci e fui vagabundear. Fiquei por alguns momentos olhando o outro lado da rua. Carros com motoristas afoitos por uma vaga, motociclistas sobre as calçadas, a Zona Azul espoliando, a vida correndo, a moça passando, o rapaz encarando, o desocupado voltando e a minha cabeça, por frações de segundos, isenta de preocupações.
Sabe por que? Naquele momento, se alguém me chamasse de vagabundo, eu responderia com muito orgulho: "Sou, com muito prazer."

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Crônica - Dia seguinte

As vésperas são dias estranhos. Pode-se experimentá-las de maneiras diferentes, mas prefiro vê-las das duas pontas, pois delas medimos o tamanho das expectativas acertando o dial no ponto que mais interessa. É como acertar a sintonia de uma emissora de rádio, girando o botão de um lado a outro e tentando colocar na ponta dos dedos a sensibilidade exigida para se chegar aonde se quer. A operação é complicada tanto num caso quanto no outro. Sintonizar uma AM é tarefa extenuante. Uma girada mais rápida e nada se capta. As rádios com transmissores mais potentes, muitas mantidas por instituições religiosas, dominam a maioria dos pontos e invadem até os alheios. Insistem com seus sermões e suas receitas de curas para todo e qualquer tipo de mal. Apelam e te denigrem por não estar alinhado a algum tipo de fé.
Pois é, que pecado. Houve um tempo em que eu não ousava sonhar. O meu dial ficava sempre no mesmo lugar em todos os sentidos da minha vida. No futebol, eu torcia para o Londrina, que só perdia, e mantinha na capa do meu caderno um emblema do Palmeiras. A minha fidelidade para com estes times era religiosa. Não se admitia falsidade. Nas vitórias, eu comemorava com euforia, mas dentro dos limites da moderação. E isso é muito difícil, pois nos torna uma figura quase pacata e, às vezes, fria diante de qualquer grau de felicidade. Nas derrotas, eu dava a outra face, assumindo uma espécie de perda consciente, do tipo, se não ganhou é porque faltou alguma coisa: fôlego para os boleiros correrem noventa minutos, chutes certos no rumo das traves, técnica, sorte ou uma equipe inteira com habilidade suficiente para atacar e se defender.
Quando muito, em alguns momentos eu me permitia palavrões. Mas depois vinha a penitência. Se doeu o dente, foi por castigo. Se bateu com os dedos dos pés na perna da mesa, foi para lembrar que temos que ser comedidos. Se cortou o dedo com a faca, foi um lembrete para zelar pelos bons costumes. Não me recordo se isso trazia felicidade. O que eu tenho na memória é que esse comportamento alegrava os outros. Mamãe, por exemplo, era uma euforia. Afinal de contas, quando é que eu deixei de capinar o quintal depois de um período de chuvas só porque na noite da última quarta-feira o meu time havia perdido? Nunca. Sempre fui assíduo nas minhas obrigações, o que me dava um contentamento e um alívio por ter feito o que eu devia fazer. Isso é parecido com felicidade?
Carreguei esse comportamento por muitos anos. Até mesmo na época em que, estudante universitário, escondi debaixo do colchão exemplares do tablóide Movimento e de publicações da Convergência Socialista, bem quando esse tipo de leitura era um crime. Aliás, talvez esta opção tenha me valido muito, pois os livros de auto-ajuda nunca me assanharam. Lendo sobre o materialismo eu mantinha sempre um pé no espiritual. Assim experimentei uma interessante contradição, na medida em que bebia Coca Cola na cantina do campus universitário e na sala de aulas condenava as multinacionais.
E então, qual é o diagnóstico, doutor? Já me disseram que eu sofro de transtorno bipolar. Alguém pode me dizer se isso é bom? Por que, por exemplo, linhas atrás eu comentei sobre a véspera e não sobre o hoje ou o amanhã? Raul Seixas, nos áureos tempos em que a música popular brasileira ainda tinha conteúdo, confessava preferência em ser uma metamorfose ambulante. Eu rodeei, circulei, andei de costas e digo, agora, que o mutante, livre dos compromissos, é mais feliz que o engajado. No passado chamavam os boas vidas de alienados. Hoje não se sabe se o sujeito é descompromissado porque assiste o Faustão no domingo ou por gastar em telefonema para votar no paredão do BBB.
Que loucura! Não acredito que escrevi isso. Amanhã provavelmente eu consiga produzir algo claro, conciso, objetivo e coerente. Hoje é véspera de amanhã. Caramba... pqp... tanta besteira...

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Crônica - Eu, amiguinho?

Ouça Caetano num volume abaixo do equilibrado, preferencialmente em início de noite de outuno, sem lua cheia. Escolha a faixa Chuvas de Verão. Confira o que o autor da letra, Fernando Lobo, escreve.
"Podemos ser amigos simplesmente / Coisas do amor nunca mais / Repetem velhos temas tão banais..."
Poesia pura, não é? Depois disso vem algumas doses de verdade e eu dou plena razão para o autor, que no momento da execução da música é endossado pelo Veloso. Vamos mexer com a personalidade:
"Ressentimentos passam com o vento / São coisas de momento / São chuvas de verão / Trazer uma aflição dentro do peito / É dar vida a um defeito / Que se extingue com a razão..."
Olha só! E como levar isso ao pé da letra? Então, se é para torturar, que venha o último trecho: "...Estranha no meu peito / Estranha na minha alma / Agora eu tenho calma / Não te desejo mais".
Confesso. A letra de Chuvas de Verão chama para a reflexão. Rancor e mágoa são coisas para serem descartadas. Angústia é para sentir por raros momentos. Depois ensacar e botar no lixo.
Ainda assim, nunca se consegue deixar todas as superfícies lisas. Sobram aparas a serem feitas. Algumas lascas se escondem e machucam. E o coração é frágil.
Refiro-me ao outro lado. Como encará-la? Podemos ser amigos simplesmente? Nem sempre. Às vezes algumas feridas não cicatrizam. Formam bolhas que explodem com muita facilidade. Estouradas, fazem um enorme estrago no sentimento.
Há também o lado irônico disso tudo. Imagine a fulana, depois de te dar um chute, propondo uma amizade? Ela vai dizer que se sente segura com você. Que você é o confidente dela. Que você sabe muito da intimidade dela.
Até aí, tudo bem. Depois vai argumentar que, quando estavam juntos, você até auxiliava na escolha das peças íntimas, no corte dos cabelos, na cor das unhas e no sabor da comida. E ela não pode abrir mão desse apoio.
Aceitando a condição de amigo, você terá que continuar ao lado dela, sugerindo, aconselhando, orientando e até levando broncas nos momentos em que der um fora. É capaz dela dar-se ao direito até de sentir ciúmes quando você conversa com outras.
Isso simplesmente significa que ela resolveu se apossar de você de uma maneira inteligente, inclusive para devolver as ruindades que você cometeu no passado. É uma forma de domínio, de posse, de locação da sua cabeça.
E ela te chama de "meu anjinho". De vez em quando grita lá de longe: "Oi meu lindo". Mesmo tendo dito para as colegas que você é feio, mas bonzinho.
Assim, sem saber realmente o que está acontecendo, você é transformado numa espécie de guru: dá o seu ombro, cobre-a de elogias, ajuda a escolher as roupas, diz se ela está no peso. Ela te usa à exaustão e depois sai passear com o outro.
E você, enquanto for um anjinho, apenas voa para longe. Mas quando virar um guru, cuidado: ao menor descuido você enche ela de virtudes e deixa-a gostosa, de forma que ela derrube o queixo dos marmanjos e seja o prato principal do outro.
E você, depois que ela se for, sai por ai rebolando e desmunhecando. Eitá... não me venha com esta história de amiguinho.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Conto - Destempero

Anderson atravessou o Calçadão de Londrina, de ponta a ponta, sem enxergar o começo e o fim. No fim da tarde de março, o bancário havia acumulado durante o dia acontecimentos infelizes.
Atendente do setor de abertura de conta corrente, ele chegou ao serviço às dez e meia. Usou os minutos que faltavam para assumir o seu posto apresentando aos colegas o balanço do fim de semana. Ironizou torcedores de times adversários que perderam jogos e pontos nos campeonatos que entopem os canais abertos de televisão aos domingos.
Depois, ainda sonolento, ouviu do primeiro cliente que atendeu uma queixa. O tipo se deu à ousadia de perguntar se o bancário não havia dormido, pois estava mole e disperso no manuseio dos documentos e do computador. Do segundo cliente recebeu uma negativa. O sujeito disse um não seco quando consultado se queria fazer um seguro de vida. O terceiro o tratou com ironia por causa de um procedimento aguardado para a semana passada, mas que nem havia saído da gaveta de Anderson para os encaminhamentos necessários. O quarto provocou a categoria. Vociferou que funcionário público é tudo uma merda.
Venceu o primeiro turno e Anderson foi para o almoço. Já de cara ouviu a voz fina da pedinte que todos os dias implorava uma comidinha. Percebeu encostado ao lado da porta da loja de departamentos o sanfoneiro que às vezes admirava. Mas daquela vez sentiu raiva, não do sanfoneiro, mas dele mesmo, porque não conseguiu identificar a canção que o homem executava no seu instrumento rouco de tanta poeira.
A meia quadra do restaurante foi batizado por um pombo, que deixou a marca marrom e verde da bosta na manga esquerda da camisa azul clara. Na fila do self service pensou entrar em conflito com um freguês, que não se poupava aos bons modos e resolveu comentar futebol em cima do arroz e do feijão. Encrencou com o garçon porque pediu um suco de laranja e recebeu um refrigerante. Reclamou do caixa porque o funcionário do estabelecimento perguntou se não tinha mais trocado.
No caminho de volta, pisou numa pedra solta do Calçadão e raspou o verniz do sapato direito. Na travessia da faixa quase foi atropelado por um motociclista. Na entrada do banco esqueceu o celular no bolso e foi barrado pela porta giratória.
Então o bancário decidiu que não era o dia. Resolveu fazer corpo mole e recebeu, às três e quarenta, minutos antes de encerrar o expediente, uma carta de advertência. Saiu da agência sem se despedir de ninguém. Chegou em casa sem ver nada do que acontecia em volta. Dormiu sem tomar banho e nem teve tempo para sonhar.

Crônica - Cheiro do outono

Eu me pego nostálgico nestas tardes de abril e não sei ao certo se é pela proximidade de maio ou por ser outono. Maio por me colocar mais perto da velhice. O outono por me devolver a infância.
Veja que, tão contraditória quanto a vida, as sensações que nos dominam também ocupam extremos opostos. Da mesma forma, às vezes os pólos se juntam e colocam dois tempos num mesmo momento: eu quero ser criança para sentir o cheiro do outono, mas preciso viver mais um mês de nascimento para perceber que estou vivo e pronto para recapitular, a todo o instante que me der vontade, os maios das diferentes fases da vida.
É provável que isto ocorra por vigorar nesta época a possibilidade de se enfrentar as diferenças de uma hora para outra. Por isso maio e outono são interessantes.
Às seis, por exemplo, no despertar, o corpo treme de frio e as mãos buscam a coberta, movidas pela preguiça de acordar, ver, pensar, planejar e ir adiante. Às nove o sol já venceu a sua batalha e se impôs, dominante, quebrando a frieza do dia. Às doze, o calor acompanha o almoço e queima a pele enrugada, forçando um bronzeado falso e de nenhum charme. Às quinze os termômetros relutam, mas descem os seus mercúrios numa vagarosidade de testar paciências.
Assim, de três em três horas chega-se às dezoito. Em clima de estiagem, dá-se nesse momento o encontro da luz e da sombra, chamando um anoitecer que estica-se ainda quente até lá pelas vinte e uma, mas rende-se ao frescor da penumbra até, no máximo, à meia-noite.
Salvo engano, mas é às dezoito que as principais contradições se enfileiram no mesmo espaço e tempo. O inverno de pouco frio do Norte do Paraná invoca nesta hora a preocupação: que blusa eu visto? Mas ainda estamos no outono, nos últimos dias de abril, e tenho maio pela frente.
Por enquanto, desprezo a busca no armário para desengavetar blusas e meias de lã. Mas remexo a memória quando uma queimada de fim de tarde levanta um cheiro de eucalipto queimado. Então eu lembro da minha casa velha de madeira muito mais velha ainda na Vila Nova, em Londrina, onde um fogão de lenha aquecia o jantar preparado pela minha mãe. Sinto vontade de ser criança, às vésperas de completar mais um ano de vida, data que eu aguardo também com ansiedade para fugir deste tempo que só me faz lembrar o passado e esperar o futuro.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Conto - Os sapatos pretos

Há oito meses eles deixaram a banca de promoção de uma loja de preço popular. Tudo por R$ 19,90. Era o que anunciava o cartaz colado na parede do estabelecimento. A vendedora disse ao comprador que o par de sapatos pretos era de couro. De cadarços pretos e sola de borracha, os sapatos pretos pareciam realmente artigos de primeira. O couro sintético era perfeito na imitação. O forro, bem assentado, dava a impressão de um bom acabamento. Em cada pé, abaixo dos furos por onda passavam o cordão, na lateral externa, uma pequena fivela dourada encarregava-se de cumprir o papel de uma etiqueta sofisticada.
O produto foi pago à vista. A caixa que o acondicionou era branca, de papelão mole, com apenas uma etiquetae indicando o número e o nome do fabricante. O comprador não se importou com esse detalhe. Ele havia visto numa loja vizinha sapator parecidos: pontas quadradas, costura moldando os peitos dos pés, fivelinha, cadarço e o borrachão, inteiriço, já com o salto conjugado. A diferença gritante estava no preço: o par saia por R$ 79,90 na promoção. Ali também a moça garantiu que o produto era de couro legítimo.
O comprador tinha a mania de cheirar os sapatos que comprava. O artigo de R$ 19,90 tinha, conforme ele se recorda, mais cheiro de cola do que de couro. Diferente daquele de R$ 79,90. Pelo cheiro, parecia que o boizinho estava ali, dando forma no artigo. Mas com tanta diferença no preço seria muito exigir que o boizinho do R$ 19,90 tivesse qualquer cheiro. Além do mais, R$ 19,90 ele pagaria de uma só vez. Já os R$ 79,90 exigiriam um parcelamento de até cinco vezes.
Tem também que os sapatos pretos de R$ 19,90 não foram comprados para uso imediato. Aproveitou-se a promoção. O par ficou guardado embaixo da cama, no lado onde o comprador dorme. Por uns três meses os sapatos pretos ficaram dentro da caixa. Com o tempo a caixa se foi. Virou um papepão disforme, com risco de danificar o par, quando deveria conservá-lo. Então os sapatos pretos ficaram enfileirados, lado a lado, o pé esquerdo no lado esquerdo e o pé direito no lado direito, como realmente deveria ser. O comprador havia decidido guardar o par para uma ocasião especial.
Eis que chegou o dia, a festa de confraternização da empresa onde trabalhava, em comemoração aos 27 anos de fundação do empreendimento. O comprador dos sapatos pretos tirou do armário a calça jeans, também nova, que pagou R$ 25,90. Da mesma compra aproveitou a camisa pólo de R$ 17,90. Banhou-se, penteou-se e perfumou-se. Encapou-se com a leveza de um astro diante de uma câmera, vestindo a calça, colocando a camisa por dentro e ajeitando até as canelas as meias azuis. Usou um cinto preto, para combinar, fazer par e se alinhar com elegância que nos dias comuns era impossível manter.
Sentado na beira da cama, o comprador calçou o pé esquerdo primeiro, como era de hábito. O pé ficou um tanto frouxo, mas o cadarço, esticado ao limite, eliminou a diferença. O direito é que foi o problema: por descuido na hora de comprar o pé que veio era 40, um a mais que o esquerdo, já com folga suficiente.
Mais com raiva dele próprio pela compra errada, o comprador foi à festa de confraternização com os sapatos marrons, sem cardarço, de camurça manchada e salto entortado pelo uso. Os sapatos pretos, que até aquele dia ficaram sob a cama, debaixo da cabeceira, ganharam um lugar na área de serviços, sob o tanque de lavar roupas, bem onde uma goteira umidecia o chão.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Conto - Vazio

As pessoas me irritam. As vozes delas me incomodam. O que elas falam me endoidecem. O jeito com que elas me olham me tira do sério. Alguém tentou me alertar na manhã de hoje. Usou até de suavidade para dizer que eu tinha problemas. Primeiro me rodeou, fez ensaios, falou do bom gosto do café que tomava no balcão da padaria, reclamou do clima quente da hora do almoço e chegou no ponto ainda de leve. Disse que meus olhos estavam esbugalhados, com as partes brancas avermelhadas, parecendo vidros saltados para fora das pálpebras.
Eu que já estava descontrolado ainda apertei as unhas na palma das mãos. Três delas perfuraram a pele grossa e áspera. Arrancaram sangue que sequei no brim desbotado do jeans. E a coxa da calça guardou a mancha escura, mais preta do que vermelha, parecendo um coágulo desenhado com um pincel de artista de fundo de quintal.
Era para eu fazer de conta que não havia entendido o alerta. Ficar rodeando, do tipo "de que você está falando", ou, "sempre que acordo antes das seis me dá isso, do olho ficar ardendo e saltando". Era para ficar por ai, mas liberei o bom modo e prossegui, dizendo que a situação piora "quando acordo cedo, com os olhos ardendos e um merda fica me enchendo o saco na minha frente logo que saio às ruas".
O cara se segurou de início, mas não se conteve e alfinetou que o que eu tinha passava de estresse, já caracterizava loucura. Isso ele podia poupar, mas admito que eu provoquei quando gritei que o nariz dele, pelo formato, parecia pedir um punho fechado carcado com uma direta.
Foi quando a xícara de café voou. Foi de quina e bateu de boca no canto do forro do lugar, repicou para a direita, alisou de raspão a parede descascada atrás do balcão, assustou a mulher que esquentava o pão do cliente postado na frente do mostruário de doce de leite e paçoca, tilintou no bico da chaleira torta e se espamarrou no piso de cerâmica cobrindo de cacos o estreito corredor onde os atendentes corriam com copos de leite e suco para servir os comilões.
Foi café para todo o lado. Na blusa branca da mulher de calça preta, no cabelo alisado da morena pintada de ruiva, na meia cinza do idoso de bermuda verde, no pão com mortadela do porteiro do edifício em frente que aproveitou uma folga para matar a fome e no pacote de biscoito que a colegial mal havia pago no caixa do estabelecimento.
A estas alturas eu já estava longe, a cena que descrevo me contaram muito depois. Eu lembro que a mão dele veio ligeira, sem tempo para defesa, e estatelou na minha cara. Dei no pé, sei lá com que cara, e fui provocar outro, nove quadras adiante, porque aquele dia acordei para irritar to mesmo tamanho que os outros me incomodavam. Doeu sim.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Conto - Sintomas

A boca seca ao despertar foi o sinal. A língua pareceu mais áspera que o habitual. Um bochecho com água da torneira arrancou um gosto de nada, cuspido automaticamente enquanto as mãos umideciam a nuca. Tentativa inútil de aliviar a quentura da pele e a zoeira que fazia as pernas estremecerem.
Da janela, o quadro que se pôs em frente foi o de um dia nublado. Ao longe, à esquerda, os prédios à margem do lago suscitaram pensamentos inúteis. Quantos corações se partiram durante a madrugada? O que se deixou para trás? Projetos inacabados, corações amargurados e a vã possibilidade de seguir adiante, quando a vontade é de voltar.
Alice procurou o par de sandálias de tiras com os pés, sob o sofá atulhado de almofadas deformadas. Numa delas, o formato do rosto, depositado lateralmente na peça, permaneceu até a manhã, denunciando uma madrugada de cabeça pesada e falta de sono. O controle da tevê apareceu distante, caido num canto da sala. Dois jornais de edições passadas acumulavam nas páginas abertas migalhas de pão e cascas de laranja, cumprindo o papel de depósitos de lixo.
O telefone sem fio manteve o silêncio da noite anterior. Mas a posição em que se encontrava, deitado na frente do braço do sofá, indicou ter esperado por chamadas que nunca chegaram. Quantas vezes as mãos de Alice alisaram as costas do aparelho, na esperança de que ele desse sinal de vida?
Do último filme que Alice lembra ter visto durante a insônia só sobrou a cena comum do detetive durão, que após abater mais um bandido caiu feito um poeta alucinado nos braços da parceira. Entre a inveja do beijo ensaiado pelos atores e a indignação pela falta de criatividade nas produções comerciais, Alice optou pela preguiça de pensar. Acomodou o rosto na almofada e fechou os olhos, na esperança de dormir.
O sono seria a única fuga possível às quatro e meia da manhã. Sair da complicada engenharia da imaginação, em que todas as forças negativas pressionam para baixo as chances de um bom prognóstico, era tarefa demasiadamente pesada para alguém já debilitado por uma angústia que parecia corroer a alma.
Às oito, após se jogar desanimada sob o chuveiro, Alice deixou a água quente escorrer pelos ombros. Lavar para levar o sentimento que parecia um novelo girando dentro do coração, pensou, enquanto esfregava os braços com um toco de sabonete.
Deixou o banho quase prostrada, como se tivesse levado uma surra. Conferiu o visor do celular, que fazia par com o telefone fixo no silêncio perpetuado nos últimos dias. Nenhuma ligação perdida, nenhuma mensagem, nada de expectativa. Seguiu a pé ao trabalho, onde disfarçou a tristeza com sorrisos largos e postura de quem enfrentava um dia normal. Conferiu o celular por várias vezes, esperou pelo rompimento da trégua de notícias, imaginou em alguns momentos ter ouvido o toque e sentido o vibrar do aparelho.
Tudo engano. Retornou ao escurecer e se preparou, deixando a janta de lado, para mais uma noite e mais uma madrugada de espera. Pressentiu que a ligação que aguardava não teria mais sentido, pois representava o tilintar de um caso encerrado.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Crônica - O vigilante

Eleutério é um nome fictício, mas encaixa como se feito sob medida na personalidade daquele fulano. Um parentesis: nenhuma intenção de denegrir batizados Eleitérios que possam existir por aí. O nome veio de arranque, numa engatada de primeira, quando bati agora mesmo o olhar no sujeito.
Rabugento o dito cujo. Eu diria que ele nasceu para irritar. Faz perguntas impertinentes e age com inconveniência. Repete tiradas e nem uma boa piada consegue contar. Vira um desastre quando tenta ser agradável e simula inteligência. Então imagina quando assume a burrice e escancara a deselegância?
Eleutério não é dotado de "setocameu". Tenta ser a razão e vira piada. Acha-se o centro das atenções e não percebe que, devido à inconveniência, fica sempre jogado nos cantos. Tenta se enturmar achando que tem carteirinha de sócio e pode chegar impondo.
O fulano, na verdade, é um zero bem grande. E ele sabe que eu sei disso. Por isso, me olha de lado e me espiona. Eu faço de conta que isso não me incomoda, mas de tão mala que eu sou na maioria das vezes eu provoco só para derrubar o coitado. Sempre ganho dele nas chatices.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Conto - O cantador

A única corda da viola já não dava afinação. Desfiada numa das pontas, prendia-se com um nó desajeitado no cavalete. Via-se no cravelhame, lá no outro extremo, o risco da ruptura iminente denunciado pelo desgaste do fio levemente esticado, de forma que o aperto não resultasse no baque seco do rompimento.
Arlindo ainda batia a derradeira com as pontas dos dedos soltas. As unhas desgastadas e encardidas, não por causa do ofício de extrair sons de uma corda envelhecida, ficavam à mostra e compunham um cenário interessante. Nos últimos sete anos Arlindo vira-se obrigado a trabalhar na coleta de materiais reciclados, após labutar por mais de 30 anos na roça, sempre como parceiro.
As unhas sujas de antes traziam o cheiro da terra roxa, onde a mandioca era arrancada no braço e as raízes recebiam a carícia das mãos calejadas para abastar a terra que as cobriam. Os restos encardidos de agora às vezes cheiravam azedo, oriundo da comida que apodrecia nos sacos plásticos de lixo depositados diante dos condôminios.
Nos velhos tempos, sobrava para Arlindo a camisa clara e engomada nos fins de semana, de mangas longas e golas levantadas. Com ela e a calça de casemira azul marinha, Arlindo assistia as missas nas manhãs dos domingos. As mangas arregaçadas até o meio do antebraço mostravam parte da pele queimada pelo sol. Colocadas por dentro da calça, a camisa formava um vácuo na altura do abdomen e escancarava um homem magro, levemente corcunda, sob um chapéu de feltro ajeitado sobre os cabelos que começavam a rarear.
Depois da missa, havia o tempo certo para olhar a horta e a criação, mais por costume, menos por necessidade. Na varanda sem piso, sobre a terra umedecida e batida, um banco de madeira tosca, com as pernas estacadas no chão, esperava o seu dono já com o trago da branquinha ajeitgado, pronto para descer queimando a garganta e limpar a voz prejudicada pelos pigarros do fumo enrolado em palha seca e fina guardada da última colheita de milho.
A viola ainda tinha todas as cordas. Arlindo viera do interior de São Paulo e o modelo que trouxe com ele era de dez cordas, formando as cinco duplas. A fervura do frango no fogão a lenha era o sinal das mulheres para providenciar o tempero. Para Arlindo, o chacoalhar da tampa de alumínio da panela de ferro indicava o dedilhar de ensaio, com habilidade suficiente para extrair um som que entrava nos ouvidos cativante, prendendo a atenção. Dali vinha a voz, aguda, afinada, quase gritada, cantando igual Tião Carrero e Pardinho ou Tonico e Tinoco. Mesmo nas letras tristes o rosto mostrava felicidade, não da branquinha ou do frango assanhando no cheiro da fervura. O sorriso dos olhos emoldurado pelas rugas grossas e marcantes era por cantar, batendo com carinho nas cordas da viola.
Resta agora um trapo da camisa branca e nada sobrou da calça de casemira. O sapato Vulcabrás foi há muito trocado por um par de chinelos de dedo. Arlindo tem um carrinho de mão e anda quilômetros por dia atrás do seu sustento. Nem sempre sobra disposição para limpar o corpo da viola com um trapo encardido, encostá-la no peito feito um amante e dedilhar a única corda, talvez a última, que tira um som melancólico mesmo que a letra da música fale de alegria.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Crônica - Do lado de lá do riacho

O coração, às vezes, é como um carro conduzido em alta velocidade por uma estrada esburacada. Requisita frenagens bruscas e nem sempre a ação ligeira do pé sobre o pedal do freio evita o açoite: um baque, o assobio do ar escapando, a roda torta, os pneus murchos e os solavancos no asfalto são as consequências.
Há um momento de pânico em seguida ao acontecimento. Depois o arrependimento, a angústia e uma espécie de vazio. O que aconteceu? Por que não evitei isso? Se eu tivesse tido mais cuidado... O que faço agora?
Constantin era o seu nome. Ninguém da família sabia explicar de onde os pais, já falecidos, haviam extraído aquela marca de batismo. No banco as moças atendentes chamavam-no de Constantino. Na escola, quando a distante Constantinopla entrou nas aulas de história, alguns colegas diziam que Constantin nada tinha a ver com o imperador romano que deu nome à hoje Istambul.
Para os amigos Constantin era Tin. Alguns, meio desajeitados, costumavam insistir: "Tin do que mesmo? Tin de Souza? Tin Maia? Tintim por tintim?" Não havia nada de estranho em se chamar Constantin, mas ela, agora com vinte anos, achava-se fora dessa embalagem esquisita. Às vezes se perguntava: "De onde veio a inspiração para me batizarem de Constantin".
O problema era a moda. Num tempo de forte influência da televisão, predominavam nomes sotisficados, alguns de raízes estrangeiras. Na internet, Constantin chegou a encontrar um fulano chamado Robin Batmanzino Ferraz. Isso sim, seria o absurdo, pois deixava de ser sofisticação, era a pura cafonice. Constantin localicou Yasmyn, escrito assim mesmo no tempo em que a lei permitia exageros. E teve até o filho de um fotógrafo lambe-lambe, num canto qualquer do Brasil, que recebeu o nome de Photocor Branco de Almeida.
Constantin nunca havia se preparado para o momento em que encontrasse uma namorada. Aos vinte anos, cedo ou tarde a paixão aconteceria, mesmo para ele que morava no braço esquerdo da estrada da curva à direita no povoado do centro do município do fim do mundo.
Foi na volta da escola, já de noitinha, depois de descer do ônibus que trazia os estudantes de Londrina já no momento em que a lua se preparava para deitar diante do sol. Constantin não havia percebido aquela menina sentada no banco de trás, usando calça de moleton verde e blusa de lã cor de rosa. Ela, vizinha recém-chegada, desceu no mesmo ponto. O coração bombeou sangue, a nervura esquentou a cara, os olhos ficaram esbugalhados e Constantin puxou conversa.
Pergunta pra lá, pergunta pra cá e olha que eu faço esse caminho todas as noite e nunca me aconteceu nada, mas para você que é mulher é bom ter companhia. Constantin convenceu a donzela, até porque as folhas balançando ao vento do início da madrugada causavam um zumbido assustador. Justo naquela tarde Alzita, a mãe da estudante, havia recontado história contada pela avó dela, que era a bisavô da moça: dizia da cantoria, sempre em noite de Lua Cheia, da moça que havia perdido o namorado numa briga e morreu de desgosto cinco dias depois, ao descobrir que a causa da briga não era ela, mas uma bicicleta azul e branca com ferrugem nos aros da frente e de trás.
Engraçado, não haviam se perguntado os seus nomes. Foi ela quem teve a iniciativa:
- Como é seu nome?
- Só falo se você disser o seu primeiro?
- Ah não, você primeiro.
- O meu nome é feio?
- E isso importa?
- Você vai dar risada?
- Claro que não. E se eu gostar? Fala o seu nome...
- Está bem. Começa com C.
- Não enrola, fala logo o seu nome.
- Termina com N.
- Fala, eu quero saber.
Quase murmurando, Constantin desabafou:
- Constantin...
- Heim... não entendi.
- Constantin.
- Consentin?
- Constantin...
- Por que acha que eu ia rir do seu nome? Por que acha o seu nome feio?
- O pessoal sempre gozou do meu nome.
- Eu não acho feio. Assim eu é que fico envergonhada...
- Por que? Como é seu nome?
- Começa também com C e termina com A.
- Carina?
- Não, Constantina.
Riram-se muito até cada um deles chegar em suas casas. A partir daquele riso decidiram entregar os seus corações para as curvas e as derrapagens do amor, dentro do ônibus que os trazia da escola pela estrada esburacada, no canto da sala de aula, atrás da moita de cana-de-açúcar, na beirada do carreador e na mina d'água abaixo da cabeceira do pasto.
Sem medo das frenagens bruscas, dispostos aos solavancos e aos zumbidos do vento que vinha do norte e balançava as folhas nas noite de outono. Chegaram logo à conclusão que até nos nomes eles davam certo.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Crônica - Onde é que eu me enquadro?

Entro nos cinquenta e três a exatamente vinte e nove dias, algumas horas, tantos minutos e consequentes segundos. Contados de agora, perto das quatorze horas do dia três de março de dois mil e nove. Há um ano eu estava longe da minha terrinha, sentado na frente de um computador numa sala refrigerada artificialmente por dois aparelhos de ar condicionado.
O palco deste cenário é a redação de um jornal, em Jaraguá do Sul, Santa Catarina. A cidade do melhor jogador de futsal do planeta é cercada por morros. O mais famoso deles é o Morro das Antenas. Nada a ver com a emissão dos sinais que permitem os aparelhos de televisão daquele lugar captarem alguma coisa. Muito menos em função das enormes torres de telefonia celular que fazem os aparelhinhos tilintarem dia e noite e em qualquer lugar, inclusive nas salas de exibições dos cinemas. A fama vem dos parapentes. Jaraguá do Sul sedia eventos internacionais de gente que se pendura naquelas asas enormes e pula lá de cima. Em dia de tempo bom, esses trecos tomam os céus da cidade. Jaraguá tem a mais conceituada fábrica de parapentes da América Latina, não por pura coincidência, mas por estratégia do empreendedor.
Daqui a um ano devo estar em algum outro lugar. Londrina, a minha terrinha, já me deu bastante e agora está impossibilitada de me oferecer algo. Bem que eu gostaria ficar por aqui. Trabalhando, é claro. Londrina não é lugar de gente parada. Só fica parado aqui que não tem emprego. Este é o meu caso. Preciso praticar jornalismo de redação. Preciso buscar informações nas ruas e voltar para o jornal com as anotações em papéis amassados e manchados de suor. Preciso pegar aqueles papéis, decifrar as anotações, e escrever. Preciso ser interativo com as pessoas que ouço para escrever as minhas matérias e preciso ter interatividade com os leitores, usando dos recursos que um jornal impresso me oferece.
Cinquenta e três anos... idade de mais para pleitear uma vaga? Tenho trinta e três anos de registro em carteira, tirando os meses que fiquei desempregado e os períodos de free lancer. Desse total, durante seis anos fui bancário. O resto foi no jornalismo, com a predominância dos impressos, depois a televisão, a assessoria de imprensa, as aulas na Universidade de Londrina e o rádio. Em um dos jornais entrei repórter e sai chefe de redação, após dezoito anos de casa e uma renúncia ao cargo. Claro, sem a possibilidade da empresa reduzir aquele baita salário que eu tinha - assumi a chefia de redação para ajudar a empresa a sair de uma crise financeira, com um salário muito inferior ao de mercado para o cargo -, a única alternativa para mim que ela tinha era a demissão.
Na epoca, eu ainda pensava que em jornalismo a experiência era uma boa referência profissional. Dei com a cara, pois as coisas mudaram. Hoje, em jornalismo impresso, existe a neurótica concorrência - assumida inclusive por alguns jornalistas - com a internet. Nessa doença, há quem diga que o impresso é atualmente apêndice da internet. Por isso os empresários diminuiram o tamanho dos textos, encheram as páginas de penduricalhos, inventaram a interatividade burra e os jornalistas assumiram.
Para fazer textinho de nota concordo que o jornalismo impresso não precisa de talentos. Contrata-se mais barato para preencher o quadro. Para retomar a força do jornalismo impresso é preciso, antes de tudo, inteligência do dono do jornal. Não é preciso dizer mais nada. Enquanto isso, os bons profissionais, na medida em que vão perdendo seus empregos, deixam a cidade ou montam um bar na esquina mais próxima do último emprego. Será que a juíza que sentenciou o fim da obrigatoriedade do diploma tinha razão?
Engraçado. Eu não encontro emprego porque sou velho. Um conhecido, recém-formado e ainda nas fraldas, queixou-se outro dia que não consegue trabalho porque é inexperiente. Outro conhecido, no meio termo da idade e da experiência profissional, disse recentemente que em Londrina só tem vaga por QI, o famoso quem indica. Algo está errado. Espero que não seja a minha análise.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Crônica - Londrina de todos os londrinenses

Nem alto e nem baixo, peso lá pelas tabelas, o curitibano recentemente conhecido me diz que Londrina lembra muito São Paulo. Pergunto em que, ele explica que a semelhança está nos cafés do centro da cidade.
- Como assim?
- No jeitão das pessoas encostarem nos balcões dos bares para tomar café enquanto conversam...
Olha só! Eu, londrinense do meio do ovo, aos 52 anos de idade já tomei café em bares de terras distantes. Jamais sentado e escorado numa mesinha, embora tenha passado por shoppings requintados de Brasília, Curitiba, Joinville, Blumenau, Florianópolis, Porto Alegre, Uberlândia, Uberaba, Goiânia e até mesmo São Paulo.
Distração deste macaco velho? Pode ser. O que interessa é que este conhecido curitibano levantou dentro da minha alma aquele pó vermelho da terra roxa, que me enche de orgulho e me dá um indisfarçável contentamento quando a comparação do londrinense é com os paulistas.
Coisa da cultura pé vermelha. Nem entendo esse meu eu como uma discriminação contra o Sul e a minha capital. O que acontece é que a ligação com São Paulo está encralacada no londrinense feito um encardido que não sai. Temos aqui mineiros que viraram londrinenses de coração. Temos baianos, alagoanos, cariocas, gaúchos e catarinenses. Temos curitibanos, presbiterianos, adventistas, espíritas e pseudo-intelectuais. temos praticantes de capoeira e de artes marciais.
Mas a ligação com o paulista é marcante. Até no café tomado no balcão, barriga escorada no vidro com doces ou refrigerantes, enquanto rola a conversa sobre o campeonato paulista.
E vai que o conhecido curitibano tenha razão.

terça-feira, 31 de março de 2009

Enxurrada

Precisava de chuva para lavar a cidade. Daquelas que chegava mansa, após o inesperado apagar do sol por nuvens desordeiras e desordenadas vagando no espaço no rumo que o vento leva. Depois matreira e persistente, do tipo molha e não molha, refrescante no começo, fria depois de algum tempo. Até o encharque, quase grossa feito varetas caindo na diagonal e batendo na pele como pedriscos.
Simone desceu a Sergipe a pé, na direção o prédio velho da Delegacia de Polícia. A terça-feira, logo após o almoço, era de fervura no clima e no destempero dos pensamentos. As roupas expostas nas portas das lojas se confundiam com varais improvisados nas calçadas. Adiante, alguns passos à frente, o cheiro forte de gordura queimada tostava uma massa de pastel de carne. Suores empapavam as costas do pasteleiro na denuncia que fazia a mancha molhada da camisa, enquanto a costa da mão esquerda enxugava as gostas que caiam pelo rosto e a mão direita, escumadeira em punho, virava a guloseima boiando no tacho de óleo escuro.
Simone sentiu náuseas. Cabeça cheia e estômago atravessado, havia reduzido a dieta a uma salada de agrião. A colherada de arroz que colocou no prato sobrou ilesa e ganhou o latão de lixo. A quase abstinência gastronômica tinha um motivo: Simone estava com os dias contados.
Há duas semanas ela havia assinado o aviso prévio na loja onde trabalhava desde o começo do ano retrasado. No momento, Simone encarou a demissão com naturalidade, pois já vinha planejando mudanças e o projeto incluia novos ares, inclusive na profissão. Formada em biblioteconomia, ela havia tentado concursos públicos, com desempenhos desestimulantes nas provas. Então decidiu que se continuasse vendedora, fosse uma comerciária com boa comissão e vendas recorde.
Apostou que não ficaria parada, antes da rescisão haveria de ter um novo emprego. E olha que ela tentou. Visitou empresas de conhecidos, recorreu a colegas, esmiuçou os classificados dos jornais e gastou tempo na internet procurando oferta de vagas. Nos contatos pessoais diziam que havia uma crise mundial e uma mudança local de prefeito. Simone teria que esperar a crise acabar e o prefeito mudar. Nos e-mails a maioria das mensagens com o currículo anexado não retornou. Simone chegou a ter dúvida se aquele negócio estava chegando ao destino. Em algumas empresas Simone deixou o currículo na portaria. Ela se questionava se o envelope havia passado da recepcionista.
Então naquele dia ela se desesperou. Da Sergipe pegaria a Duque de Caxias, subindo para o lado da JK sem se importar com o atraso no retorno do almoço. Passaria de loja em loja se oferecendo. Conseguiria alguma vaga, pois caminhada ao lado da própria persistência. Mas não evitou que os retoques nos olhos manchassem a pele feito olheiras, por causa do suor que desceu da testa e se misturou primeiro com as lágrimas, depois com a chuva e por último com os respingos jogados pelos pneus dos carros, à velocidade sempre acelerada e sobre poças d'água formadas pelas imperfeições do asfalto. Choveu muito naquele dia.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Conto - Uma história defecante

Com quarenta e um anos cravados na carteira de identidade e no registro de nascimento, mas, vejam só, uma carinha de apenas quarenta, Ariete era daquelas que mantinha a boa forma física na base de muito diurético e laxante. A receita fora passada por uma amiga, postulante a anoréxica, que carregava em um dos compartimentos da bolsa uns vinte envelopes de lacto purga.
Eu lembro que Ariete perguntou para a Vanessa, meio irônica: "Você é ressecada? Ou isto serve só para a tanajura não perder a forma?" Mais do que rápida e com a rudeza que a vida lhe havia ensinado, Vanessa retrucou: "Não meu amor. Isso é para eu cagar toda a gordura que me sobra no meu corpinho. Senão eu acabo ficando igualzinha a você. Toda torta e pelancosa."
Eu saí de perto e nunca soube o resto da conversa. Vanessa fazia programas com empresários. Cobrava em dólar. Ariete só saia com alguém por prazer. E olha que o prazer dela era constante, frutificante, persistente e melequento. Bastava o olhar mais firme de um macho para ela ter desejos.
Encontrei Ariete dias depois daquela conversa remelenta com Vanessa. Esperei que ela dissesse alguma coisa a respeito. Esperta, ele percebeu a minha curiosidade e ficou quieta. Da minha parte, não dei carga e apenas pensei, disfarçando o olhar de súplica com um gesto de desdem: "Cago na tua cabeça, mas não te dou chance, polaca..."
Bobagem. Não de um minuto e Ariete emendou: "Eu estou só na base de fruta, muita água e fibra. Então não precisa me convidar para aquela pizza que você me deve faz uns cinco anos. Ou mais... Dispenso." Era a chance de eu entrar no assunto da briga com a Vanessa, mas antes eu precisava fazer firula: "O que há? Sempre morta de fome e pronta para um boca-livre? Agora que eu ia saldar a minha dívida me dispensa?
Boca suja aquela Ariete. Foi no sopetão que ela revidou: "É para eu cagar muito, babaca. Cagar as banhas e as gorduras no vaso sanitário que é você, entende? Quero ficar fininha e te jogar na lata de lixo. Ainda vai se ajoelhar aos meus pés."
Eu não podia deixar por menos: "Não querida. Eu não uso lente de contato. Pois só se perdesse a minha vista artificial me ajoelharia aos seus pés procurando por ela o mais depressa possível. Imagina se você me pisa nela com essa gordura toda?"
Veja, a minha relação com Ariete era assim mesmo. Defecante. A gente não sabia se falar de outro jeito. "Você é um bosta e quer fazer de mim uma privada?" - agredia a malvada. "Pare de me olhar com essa cara de merda senão eu dou descarga" - costumava eu dizer quando ela me encarava com aquele olhar de peixe congelado.
Na verdade, a gente não tinha nada um com o outro. Talvez esse fosse o problema. Nunca havia atentado Ariete e ela, tampouco, alguma vez na vida me olhou com olhar que não fosse de parceiro. Mas, parceiro no que?
A gente até se evitava. Lembro que por algumas vezes eu dava volta por três quarteirões no retorno para casa, lá pelas onze da noite, só para não correr o risco de encontrá-la. A danada percebeu e passou a fazer ponto na quitanda quase em frente de onde eu morava. Quase sempre estava com o Tarciso, uma espécie de bobo do corte daquela rainha sem trono e sem corpo de majestade. Às vezes as pelancas caiam por cima do cós da calça de cintura baixa. Ela ficava esquisita. Tenho minhas dúvidas, mas Ariete chamava Tarciso de Meu Guru. Para mim, guru tem muito a ver com um cara que não quer nada com o sexo oposto e vive encostado em mulheres, para aconselhar sobre a cor da calcinha ou o formato do sutiã.
Teve uma noite que eu driblei a Ariete com muita peripécia. Evitei passar em frente da quitanda invadindo o quintal da dona Alvinda, que dava nos fundos do meu quintal. A coitadinha estava assistindo televisão quando eu passei agachado pela janela da sala. Na verdade, ela cochilava. Senti as babas escorrendo pelos cantos da boca murcha, pois as dentaduras descansavam num copo de vidro em cima do aparelho de TV.
Cheguei em casa e acendi a luz do quarto, com janela de frente pra rua, só para avisar que eu havia chegado e ela não tinha conseguido me atasanar no caminho. E fui na janela da sala, de luz apagada, espionar. A maldita deu uma encarada para a luz acesa e começou a provocar. Vi a Ariete se roçando no Zé da Calha, apalpando o cara na frente de todo o mundo. Não sei, mas senti uma espécie de ciúme e pensei: "Que bosta, ela me torra o saco, pede para eu pagar a conta da luz do quarto dela, empresta dinheiro para comprar preservativo e na hora do bom é com esse merda?"
Nem eu entendi a minha reação. Que eu saiba, eu não estava afim daquilo. Jamais encararia uma sessão de roçagem com a Ariete, sob o risco de ficar impotente, tamanha era a feiura da dita. Depois analisei que era o jeito dela provocar que me incomodava. Vi Ariete e Zé da Calha subindo para a rua marginal, de onde se ia a um motel de quinta categoria. Imaginei o babado e decidi dormir, sem banho e sem jantar.
Na manhã seguinte corri à quitanda, ainda com remela nos olhos e os cabelos parecendo um monte de capim engomado. Mal pisei o tapete da porta e senti o clima. Só se falava naquilo. Na noite anterior, meia hora depois de sair com Ariete, o Zé da Calha retornou emputecido, soltando faísca para todo o lado.
A revolta do rapaz: Ariete havia tomado um purgante depois de um lanche reforçado, como era seu costume após as refeições dos dias em que não havia programado nada com alguém. Era o caso da noite anterior, mas para fazer fidusca comigo ela resolveu sair com o Zé. Advinha o que aconteceu? O efeito do medicamento bateu bem na hora em que ela chegou com o Zé no motel.