domingo, 13 de setembro de 2009

Crônica - Eu, aqui de baixo, só olhando

Conheço a voz de Georgia. Nunca a vi, mas concebo-a como uma pessoa educada e solícita. Foram oito ligações telefônicas para Georgia no espaço de dois meses. Antes de cada telefone eu hesitava: vou incomodá-la, ela não vai me atender bem. Mas a quase 400 quilômetros de distância, eu pude inclusive defini-la como um ser humano solidário. Georgia atendia educadamente.

Ela é secretária de uma empresa e como tal tem um chefe. Era com este que eu precisava conversar profissionalmente. À beira do desemprego, eu pretendia apresentar uma proposta de trabalho. Por isso recorria a Georgia, para que ela conseguisse agendar um horário com o chefe. Normalmente eu enfatizava para a secretária que dez minutos me bastavam.

Compreensiva, Georgia anotava o meu telefone de contato e prometia um retorno quando acertasse uma data e um horário com o chefe. Como o retorno não acontecia, eu assumi por sete vezes a carapuça de mala e voltei a ligar para a secretária. E por sete vezes Georgia me disse que o chefe ainda não havia definido uma data e um horário.

O que me faz ver Georgia como uma profissional íntegra é a consciência com a qual esta secretária se relaciona provavelmente com as dezenas de pessoas que falam diariamente com ela antes de terem suas ligações encaminhadas ao chefe. Nunca percebi nela algum tom de desdém. Pelo contrário, Georgia me explicava que havia anotado para o chefe a minha solicitação de uma reunião rápida mas ainda dependia de um retorno do fulano. E prometia a mim que reforçaria a solicitação.

Assim se passaram dois meses, com duas ligações por semana. Na última delas, Georgia, que só conhecia a minha voz, falseou um tom em sua voz que deu a entender uma espécie de solidariedade, de compreensão da minha necessidade de conversar com o chefe dela. Eu apostaria que Geórgia sentiu uma espécie de pena de mim. Prometeu mais uma vez lembrar o fulano e me dar um retorno. Então decidi ser paciente ao extremo.

E nessa espera já entro em mais dois meses além daqueles dos telefonemas. Geórgia não pode me retornar a ligação. No passado ela justificou que seu chefe andava muito ocupado, de uma reunião para outra. Ela até havia anotado pessoalmente na agenda dele a necessidade de uns minutos para mim.

Eu aposto que Geórgia tentou outras vezes. Ela, como eu já disse, é uma profissional comprometida com as suas tarefas, entre as quais a de tentar um horário para mim. Acredito que o chefe de Geórgia seja um cara que depende exclusivamente de reuniões para tomar decisões. Reúne-se até para decidir onde comer, o que vestir, com que carro sair.

Tentei relacionar o cotidiano desse cara com o produto que, por uma lógica profissional, deveria ter a cara dele no conteúdo e na embalagem, pois é ele, como chefe, que comanda subordinados e diz a eles se a fita das amarras deve ser vermelha ou azul.

Fique aliviado.O que ele faz, através da força de trabalho de seus comandados, não tem cara e nem cor. O que se dirá do conteúdo? E eu, se ele houvesse me atendido há quatro meses atrás, talvez fosse um dos subordinados desse chefe da Geórgia, que passa os dias metido em salas de reuniões e retorna à noite para casa reclamando de cansaço.

Eu heim?

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