sexta-feira, 22 de maio de 2009

Crônica - Eu, amiguinho?

Ouça Caetano num volume abaixo do equilibrado, preferencialmente em início de noite de outuno, sem lua cheia. Escolha a faixa Chuvas de Verão. Confira o que o autor da letra, Fernando Lobo, escreve.
"Podemos ser amigos simplesmente / Coisas do amor nunca mais / Repetem velhos temas tão banais..."
Poesia pura, não é? Depois disso vem algumas doses de verdade e eu dou plena razão para o autor, que no momento da execução da música é endossado pelo Veloso. Vamos mexer com a personalidade:
"Ressentimentos passam com o vento / São coisas de momento / São chuvas de verão / Trazer uma aflição dentro do peito / É dar vida a um defeito / Que se extingue com a razão..."
Olha só! E como levar isso ao pé da letra? Então, se é para torturar, que venha o último trecho: "...Estranha no meu peito / Estranha na minha alma / Agora eu tenho calma / Não te desejo mais".
Confesso. A letra de Chuvas de Verão chama para a reflexão. Rancor e mágoa são coisas para serem descartadas. Angústia é para sentir por raros momentos. Depois ensacar e botar no lixo.
Ainda assim, nunca se consegue deixar todas as superfícies lisas. Sobram aparas a serem feitas. Algumas lascas se escondem e machucam. E o coração é frágil.
Refiro-me ao outro lado. Como encará-la? Podemos ser amigos simplesmente? Nem sempre. Às vezes algumas feridas não cicatrizam. Formam bolhas que explodem com muita facilidade. Estouradas, fazem um enorme estrago no sentimento.
Há também o lado irônico disso tudo. Imagine a fulana, depois de te dar um chute, propondo uma amizade? Ela vai dizer que se sente segura com você. Que você é o confidente dela. Que você sabe muito da intimidade dela.
Até aí, tudo bem. Depois vai argumentar que, quando estavam juntos, você até auxiliava na escolha das peças íntimas, no corte dos cabelos, na cor das unhas e no sabor da comida. E ela não pode abrir mão desse apoio.
Aceitando a condição de amigo, você terá que continuar ao lado dela, sugerindo, aconselhando, orientando e até levando broncas nos momentos em que der um fora. É capaz dela dar-se ao direito até de sentir ciúmes quando você conversa com outras.
Isso simplesmente significa que ela resolveu se apossar de você de uma maneira inteligente, inclusive para devolver as ruindades que você cometeu no passado. É uma forma de domínio, de posse, de locação da sua cabeça.
E ela te chama de "meu anjinho". De vez em quando grita lá de longe: "Oi meu lindo". Mesmo tendo dito para as colegas que você é feio, mas bonzinho.
Assim, sem saber realmente o que está acontecendo, você é transformado numa espécie de guru: dá o seu ombro, cobre-a de elogias, ajuda a escolher as roupas, diz se ela está no peso. Ela te usa à exaustão e depois sai passear com o outro.
E você, enquanto for um anjinho, apenas voa para longe. Mas quando virar um guru, cuidado: ao menor descuido você enche ela de virtudes e deixa-a gostosa, de forma que ela derrube o queixo dos marmanjos e seja o prato principal do outro.
E você, depois que ela se for, sai por ai rebolando e desmunhecando. Eitá... não me venha com esta história de amiguinho.

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