segunda-feira, 27 de abril de 2009

Conto - Destempero

Anderson atravessou o Calçadão de Londrina, de ponta a ponta, sem enxergar o começo e o fim. No fim da tarde de março, o bancário havia acumulado durante o dia acontecimentos infelizes.
Atendente do setor de abertura de conta corrente, ele chegou ao serviço às dez e meia. Usou os minutos que faltavam para assumir o seu posto apresentando aos colegas o balanço do fim de semana. Ironizou torcedores de times adversários que perderam jogos e pontos nos campeonatos que entopem os canais abertos de televisão aos domingos.
Depois, ainda sonolento, ouviu do primeiro cliente que atendeu uma queixa. O tipo se deu à ousadia de perguntar se o bancário não havia dormido, pois estava mole e disperso no manuseio dos documentos e do computador. Do segundo cliente recebeu uma negativa. O sujeito disse um não seco quando consultado se queria fazer um seguro de vida. O terceiro o tratou com ironia por causa de um procedimento aguardado para a semana passada, mas que nem havia saído da gaveta de Anderson para os encaminhamentos necessários. O quarto provocou a categoria. Vociferou que funcionário público é tudo uma merda.
Venceu o primeiro turno e Anderson foi para o almoço. Já de cara ouviu a voz fina da pedinte que todos os dias implorava uma comidinha. Percebeu encostado ao lado da porta da loja de departamentos o sanfoneiro que às vezes admirava. Mas daquela vez sentiu raiva, não do sanfoneiro, mas dele mesmo, porque não conseguiu identificar a canção que o homem executava no seu instrumento rouco de tanta poeira.
A meia quadra do restaurante foi batizado por um pombo, que deixou a marca marrom e verde da bosta na manga esquerda da camisa azul clara. Na fila do self service pensou entrar em conflito com um freguês, que não se poupava aos bons modos e resolveu comentar futebol em cima do arroz e do feijão. Encrencou com o garçon porque pediu um suco de laranja e recebeu um refrigerante. Reclamou do caixa porque o funcionário do estabelecimento perguntou se não tinha mais trocado.
No caminho de volta, pisou numa pedra solta do Calçadão e raspou o verniz do sapato direito. Na travessia da faixa quase foi atropelado por um motociclista. Na entrada do banco esqueceu o celular no bolso e foi barrado pela porta giratória.
Então o bancário decidiu que não era o dia. Resolveu fazer corpo mole e recebeu, às três e quarenta, minutos antes de encerrar o expediente, uma carta de advertência. Saiu da agência sem se despedir de ninguém. Chegou em casa sem ver nada do que acontecia em volta. Dormiu sem tomar banho e nem teve tempo para sonhar.

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