quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Crônica - Cocorécos e cocoricós

- Có có ró cóóó... Có có ró cóóó...

O canto, seguido de um bater de asas, foi um despropósito às 15 horas da tarde. Mas havia caído uma pancada de chuva em meio ao ambiente sombreado pelas árvores e escurecido pelas nuvens pesadas que desabaram após a ventania. O retorno do sol parecia o amanhecer.

Não foi por menos que o estridente boa tarde atravessou as janelas de vidro dos edifícios do outro lado da rua e incomodou moradores. Alguns deles, no descanso de depois do almoço, saíram da leve sonolência no sofá apenas com o desajeitado espreguiçar. Outros vociferaram e espraguejaram, embora, naquela hora, o ronco dos motores dos carros fosse mais perturbador.

O dono do fiasco foi, como nas ocorrências anteriores, o galinho carijó de pena marrom. Vaidoso, ele costumava se galantear no Bosque Central de Londrina, exibindo garbosamente a sua pescoceira preta, de penas tão brilhantes que ao sol puxavam para um esverdeado interessante.

O fulaninho era tão metido que estufava o peito entre uma ciscada e um bico, olhando rente para o horizonte enquanto engolia um inseto ou uma larva catada do chão balançando as cristas avermelhadas.

Poderoso, o galinho não era muito de dar ouvidos aos conselhos dos companheiros. Achava-se o tal e peitava, nas tardes de mais freqüência, os idosos que ocupavam as mesas de cimento para um jogo de cartas ou dominó. O fulaninho ia se metendo no meio, ciscando e atirando terra nas sandálias daqueles senhores.

Nem tão velho, mas tradicionalmente respeitado pela galinharada como um mestre, o galão de penas mescladas, com o preto predominado o cinza e o branco, não se conteve depois do despropósito do galinho. Chamou fulaninho para uma conversa e foi rigoroso:

- Có có... Cocoricó... Sabia que estão querendo tirar a gente do Bosque e mandar para alguma fazenda?

- Se for a fazenda da novela Paraíso eu vou, mestre. Lá tem fartura e emprego ali é o que não falta. Basta o cara anunciar que vai perder o emprego e chega um fazendeiro para dar um jeito...

- Ta certo. E tem patrão que dá terra para o empregado que vai casar. Mas não é para a fazenda do Paraíso que nós vamos. Os homens lá da Prefeitura só disseram que já tem gente interessada...

- Se for gente de bem, por que não? Ta certo que perdemos os restos das pipocas, mas vai que seja uma terra de minhoca abundante?

- Já se imaginou dentro de uma panela de pressão? Aquilo assobiando e você lá dentro, depenadinho?

- Ai complica, mestre...

- Já se imaginou dentro de um forno, todo pelado, coberto de molho e com as perninhas amarradas? Aquilo borbulhando, formando um torresmo? Então cante só ao amanhecer, mas cante baixo, porque o pessoal da vizinhança está reclamando da nossa cantoria.

Só assim o galinho recuou e se colocou abaixo do galão naquela conversa tida na parte de cima do Bosque, lá onde ninguém de sã consciência entra nem durante o meio da tarde com medo de ser assaltado. Estrategicamente, fulaninho se calou. Em outras ocasiões, ele teria enfrentado de igual para igual. Mas os dois exemplos, o da panela e o do forno, foram demasiadamente fortes.

Enquanto o galão se afastava, o galinho atrevido fez de conta que estava arrependido: bicou os pés, limpando torrões de terra grudados nas laterais dos dedos, coçou com o bico as costas, piscou simulando sono e armou as asas, pronto para bate-las. Mas só soltou um có có có.

Engoliu o resto e foi para as bandas das mesas de cimento, fazer média com alguns jogadores. Ciscou de leve, consumiu algumas moscas que incomodavam os presentes, exibiu a pescoceira preta esverdeada para algumas mulheres que acompanhavam crianças e terminou mais uma tarde no Bosque.

À noite, escorado em apenas um dos pés, dormiu como um galo enquanto homens queimavam pestanas para dar um fim na espécie que incomoda por estar em um lugar que os humanos consideram só deles, o meio urbano.

De manhã o galinho cantou, forte e estridente, como faz para anunciar a chegada de cada dia. Nos prédios ao lado, muita gente se virou na cama e xingou o prefeito, os vereadores, os ambientalistas e o companheiro ou companheira de leito, que mais se invocou com a implicância humana do que com a natureza.

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