quarta-feira, 15 de abril de 2009

Conto - Sintomas

A boca seca ao despertar foi o sinal. A língua pareceu mais áspera que o habitual. Um bochecho com água da torneira arrancou um gosto de nada, cuspido automaticamente enquanto as mãos umideciam a nuca. Tentativa inútil de aliviar a quentura da pele e a zoeira que fazia as pernas estremecerem.
Da janela, o quadro que se pôs em frente foi o de um dia nublado. Ao longe, à esquerda, os prédios à margem do lago suscitaram pensamentos inúteis. Quantos corações se partiram durante a madrugada? O que se deixou para trás? Projetos inacabados, corações amargurados e a vã possibilidade de seguir adiante, quando a vontade é de voltar.
Alice procurou o par de sandálias de tiras com os pés, sob o sofá atulhado de almofadas deformadas. Numa delas, o formato do rosto, depositado lateralmente na peça, permaneceu até a manhã, denunciando uma madrugada de cabeça pesada e falta de sono. O controle da tevê apareceu distante, caido num canto da sala. Dois jornais de edições passadas acumulavam nas páginas abertas migalhas de pão e cascas de laranja, cumprindo o papel de depósitos de lixo.
O telefone sem fio manteve o silêncio da noite anterior. Mas a posição em que se encontrava, deitado na frente do braço do sofá, indicou ter esperado por chamadas que nunca chegaram. Quantas vezes as mãos de Alice alisaram as costas do aparelho, na esperança de que ele desse sinal de vida?
Do último filme que Alice lembra ter visto durante a insônia só sobrou a cena comum do detetive durão, que após abater mais um bandido caiu feito um poeta alucinado nos braços da parceira. Entre a inveja do beijo ensaiado pelos atores e a indignação pela falta de criatividade nas produções comerciais, Alice optou pela preguiça de pensar. Acomodou o rosto na almofada e fechou os olhos, na esperança de dormir.
O sono seria a única fuga possível às quatro e meia da manhã. Sair da complicada engenharia da imaginação, em que todas as forças negativas pressionam para baixo as chances de um bom prognóstico, era tarefa demasiadamente pesada para alguém já debilitado por uma angústia que parecia corroer a alma.
Às oito, após se jogar desanimada sob o chuveiro, Alice deixou a água quente escorrer pelos ombros. Lavar para levar o sentimento que parecia um novelo girando dentro do coração, pensou, enquanto esfregava os braços com um toco de sabonete.
Deixou o banho quase prostrada, como se tivesse levado uma surra. Conferiu o visor do celular, que fazia par com o telefone fixo no silêncio perpetuado nos últimos dias. Nenhuma ligação perdida, nenhuma mensagem, nada de expectativa. Seguiu a pé ao trabalho, onde disfarçou a tristeza com sorrisos largos e postura de quem enfrentava um dia normal. Conferiu o celular por várias vezes, esperou pelo rompimento da trégua de notícias, imaginou em alguns momentos ter ouvido o toque e sentido o vibrar do aparelho.
Tudo engano. Retornou ao escurecer e se preparou, deixando a janta de lado, para mais uma noite e mais uma madrugada de espera. Pressentiu que a ligação que aguardava não teria mais sentido, pois representava o tilintar de um caso encerrado.

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