quinta-feira, 16 de abril de 2009

Conto - Vazio

As pessoas me irritam. As vozes delas me incomodam. O que elas falam me endoidecem. O jeito com que elas me olham me tira do sério. Alguém tentou me alertar na manhã de hoje. Usou até de suavidade para dizer que eu tinha problemas. Primeiro me rodeou, fez ensaios, falou do bom gosto do café que tomava no balcão da padaria, reclamou do clima quente da hora do almoço e chegou no ponto ainda de leve. Disse que meus olhos estavam esbugalhados, com as partes brancas avermelhadas, parecendo vidros saltados para fora das pálpebras.
Eu que já estava descontrolado ainda apertei as unhas na palma das mãos. Três delas perfuraram a pele grossa e áspera. Arrancaram sangue que sequei no brim desbotado do jeans. E a coxa da calça guardou a mancha escura, mais preta do que vermelha, parecendo um coágulo desenhado com um pincel de artista de fundo de quintal.
Era para eu fazer de conta que não havia entendido o alerta. Ficar rodeando, do tipo "de que você está falando", ou, "sempre que acordo antes das seis me dá isso, do olho ficar ardendo e saltando". Era para ficar por ai, mas liberei o bom modo e prossegui, dizendo que a situação piora "quando acordo cedo, com os olhos ardendos e um merda fica me enchendo o saco na minha frente logo que saio às ruas".
O cara se segurou de início, mas não se conteve e alfinetou que o que eu tinha passava de estresse, já caracterizava loucura. Isso ele podia poupar, mas admito que eu provoquei quando gritei que o nariz dele, pelo formato, parecia pedir um punho fechado carcado com uma direta.
Foi quando a xícara de café voou. Foi de quina e bateu de boca no canto do forro do lugar, repicou para a direita, alisou de raspão a parede descascada atrás do balcão, assustou a mulher que esquentava o pão do cliente postado na frente do mostruário de doce de leite e paçoca, tilintou no bico da chaleira torta e se espamarrou no piso de cerâmica cobrindo de cacos o estreito corredor onde os atendentes corriam com copos de leite e suco para servir os comilões.
Foi café para todo o lado. Na blusa branca da mulher de calça preta, no cabelo alisado da morena pintada de ruiva, na meia cinza do idoso de bermuda verde, no pão com mortadela do porteiro do edifício em frente que aproveitou uma folga para matar a fome e no pacote de biscoito que a colegial mal havia pago no caixa do estabelecimento.
A estas alturas eu já estava longe, a cena que descrevo me contaram muito depois. Eu lembro que a mão dele veio ligeira, sem tempo para defesa, e estatelou na minha cara. Dei no pé, sei lá com que cara, e fui provocar outro, nove quadras adiante, porque aquele dia acordei para irritar to mesmo tamanho que os outros me incomodavam. Doeu sim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

PARTICIPE: