sexta-feira, 17 de abril de 2009

Conto - Os sapatos pretos

Há oito meses eles deixaram a banca de promoção de uma loja de preço popular. Tudo por R$ 19,90. Era o que anunciava o cartaz colado na parede do estabelecimento. A vendedora disse ao comprador que o par de sapatos pretos era de couro. De cadarços pretos e sola de borracha, os sapatos pretos pareciam realmente artigos de primeira. O couro sintético era perfeito na imitação. O forro, bem assentado, dava a impressão de um bom acabamento. Em cada pé, abaixo dos furos por onda passavam o cordão, na lateral externa, uma pequena fivela dourada encarregava-se de cumprir o papel de uma etiqueta sofisticada.
O produto foi pago à vista. A caixa que o acondicionou era branca, de papelão mole, com apenas uma etiquetae indicando o número e o nome do fabricante. O comprador não se importou com esse detalhe. Ele havia visto numa loja vizinha sapator parecidos: pontas quadradas, costura moldando os peitos dos pés, fivelinha, cadarço e o borrachão, inteiriço, já com o salto conjugado. A diferença gritante estava no preço: o par saia por R$ 79,90 na promoção. Ali também a moça garantiu que o produto era de couro legítimo.
O comprador tinha a mania de cheirar os sapatos que comprava. O artigo de R$ 19,90 tinha, conforme ele se recorda, mais cheiro de cola do que de couro. Diferente daquele de R$ 79,90. Pelo cheiro, parecia que o boizinho estava ali, dando forma no artigo. Mas com tanta diferença no preço seria muito exigir que o boizinho do R$ 19,90 tivesse qualquer cheiro. Além do mais, R$ 19,90 ele pagaria de uma só vez. Já os R$ 79,90 exigiriam um parcelamento de até cinco vezes.
Tem também que os sapatos pretos de R$ 19,90 não foram comprados para uso imediato. Aproveitou-se a promoção. O par ficou guardado embaixo da cama, no lado onde o comprador dorme. Por uns três meses os sapatos pretos ficaram dentro da caixa. Com o tempo a caixa se foi. Virou um papepão disforme, com risco de danificar o par, quando deveria conservá-lo. Então os sapatos pretos ficaram enfileirados, lado a lado, o pé esquerdo no lado esquerdo e o pé direito no lado direito, como realmente deveria ser. O comprador havia decidido guardar o par para uma ocasião especial.
Eis que chegou o dia, a festa de confraternização da empresa onde trabalhava, em comemoração aos 27 anos de fundação do empreendimento. O comprador dos sapatos pretos tirou do armário a calça jeans, também nova, que pagou R$ 25,90. Da mesma compra aproveitou a camisa pólo de R$ 17,90. Banhou-se, penteou-se e perfumou-se. Encapou-se com a leveza de um astro diante de uma câmera, vestindo a calça, colocando a camisa por dentro e ajeitando até as canelas as meias azuis. Usou um cinto preto, para combinar, fazer par e se alinhar com elegância que nos dias comuns era impossível manter.
Sentado na beira da cama, o comprador calçou o pé esquerdo primeiro, como era de hábito. O pé ficou um tanto frouxo, mas o cadarço, esticado ao limite, eliminou a diferença. O direito é que foi o problema: por descuido na hora de comprar o pé que veio era 40, um a mais que o esquerdo, já com folga suficiente.
Mais com raiva dele próprio pela compra errada, o comprador foi à festa de confraternização com os sapatos marrons, sem cardarço, de camurça manchada e salto entortado pelo uso. Os sapatos pretos, que até aquele dia ficaram sob a cama, debaixo da cabeceira, ganharam um lugar na área de serviços, sob o tanque de lavar roupas, bem onde uma goteira umidecia o chão.

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